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Em 2020, comemora-se o aniversário de 80 anos de Abbas Kiarostami. Para comemorá-lo, publicaremos três ensaios magistrais escritos pelo crítico australiano Adrian Martin, que, gentilmente, autorizou a sua tradução e reprodução. Hoje divulgamos o primeiro desses textos.
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A Terra Treme (2003/2004)
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por Adrian Martin, traduzido por Miguel Forlin
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No começo do excelente documentário Abbas Kiarostami – A Arte de Viver (2003), de Fergus Daly e Pat Collins, o mestre iraniano diz: “Para mim, a câmera é exatamente como uma caneta. Ela pode ser usada por uma pessoa comum ou por Baudelaire para compor um grande poema. No Irã, temos o seguinte ditado: se você deseja se tornar um bom escritor, tem de escrever, escrever e escrever. Portanto, respondendo à questão do desenvolvimento de uma boa visão estética, o que posso dizer é que você deve ver, ver e ver”.
Mas, nas obras de Kiarostami, o que significa, exatamente, “ver”? Em janeiro de 2000, para uma votação da revista Film Comment, sem hesitar, selecionei-o como a pessoa que, para mim (e, como ficou claro, para muitos outros), melhor e mais decisivamente definiu o cinema da década de 1990. Acrescentei: “Ele foi o cineasta que usou os mais modestos e humildes elementos da vida, da paisagem e do cinema para criar os gestos mais profundos, comoventes e radicais do nosso tempo”.[1]
Porém, em seu cinema, a precisa natureza da estrada que vai da simplicidade à complexidade permanece enigmática e difícil de definir. Sobrecarregar essa simplicidade é um problema ? como se ele fosse um ingênuo frade franciscano ou um Andy Warhol hiper humanitário, que simplesmente “encontrasse a realidade” (onde ela está?) e deixasse a câmera gravar enquanto ele se ausenta como um demiurgo. E é igualmente problemático sobrecarregar a complexidade, como se os únicos filmes bons da atualidade tivessem de passar através de um filtro de artifícios barrocos e intricados paradoxos desconstrutivistas. Entre os jogos reflexivos de Close-up (1990) e Através das Oliveiras (1994), e o osso que apenas flutua na correnteza, o que diz tudo em O Vento nos Levará (1999), algo nos escapa nesse magnífico conjunto da obra ? o que é bom, pois trata-se de uma demonstração do grande artista que ele é.
Para mim, há um lado televisual no trabalho de Kiarostami ? mesmo que, por um longo tempo, ele, literalmente, não tivesse nenhuma relação com produções televisivas ? e um lado cinematográfico. Creio que muito da discussão sobre a sua obra privilegia o que estou chamando de “lado televisual” ou o transforma numa espécie de “tele-artista”, ignorando, assim, o lado cinematográfico. Isso talvez seja um ponto cego gerado pela inescapável associação e afinidade de Kiarostami com Roberto Rossellini, que foi do neorrealismo para um cinema intimista e deste à televisão. Mas ele não está indo ? assim espero ? para o mesmo lugar que Rossellini.
Explicarei melhor. Se considerarmos Kiarostami como, essencialmente, um cineasta “transparente” ? se o que ele está mostrando são fatos cotidianos da vida de uma maneira simples e não ostensiva, por mais complexo que seja o efeito ou a visão final ?, então, é fácil assistir aos seus filmes na televisão e recepcioná-los completamente dessa maneira (como se assim fosse). Pois a TV reduz a estética a meras informações. Daí a ideia da tela de cinema como uma espécie de telejanela estática e móvel que tanto alimenta os escritos sobre o diretor, até mesmo reflexões sofisticadas como as do filósofo Jean-Luc Nancy (para quem Kiarostami, numa virada conceitual, é o mediador de um mundo já midiatizado).[2]
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O próprio cineasta foi vítima do mero televisual ? ABC Africa (2001), que considero ser o seu pior filme ? é pura reportagem de TV. Como qualquer equipe televisiva, Kiarostami e seus assistentes são engabelados por alguns dias, como turistas num passeio guiado e cuidadosamente planejado. Eles não desenvolvem nenhuma visão sobre a África, não investigam: nesse sentido, é uma reportagem ruim, um documentário ruim. E Kiarostami abraça a pior tentação da filmagem digital, isto é, entrar num local e começar a filmar, imediatamente, tudo o que aparece à frente, achando que isso será expressivo ou narrativo apenas porque se trata de uma “visão virginal”, do primeiro olhar sobre algo. Mas um primeiro olhar, em si mesmo e por sua espontaneidade, não garante nada. Frequentemente, Jonas Mekas comete o mesmo erro.
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Costumamos esquecer que Kiarostami (em seus melhores momentos) faz cinema. Apesar de ter assistido a alguns dos seus filmes somente em vídeo ou DVD, tive a imensa sorte de ver Onde Fica a Casa do meu Amigo? no Festival de Cinema de Singapura, no começo dos anos 1990, e Gosto de Cereja (1997), seu melhor filme, no Festival de Cinema de Melbourne, no final da mesma década. Para mim, essas foram as experiências formativas e essenciais da obra do diretor. Nessas sessões, eu percebi que, em seu trabalho, há monumentalidade e não apenas minimalismo. É por essa mesma razão que devemos sempre assistir (sempre que for possível) aos filmes de Tsai-Ming-liang e Hou Hsiao-hsien numa tela grande.
Nos filmes de Kiarostami, a terra não apenas existe: ela treme. É essa vibração ? os tremores secundários imperceptíveis, por assim dizer, de E a Vida Continua (1991) ? aliada à quietude ou firmeza do plano, aos fluidos movimentos de carro, à duração das imagens e ao seu ritmo e às trocas instáveis entre sentimentos internos e a postura externa dos seus atores que cria o monumental efeito de cinema.
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E é essa sensação que finalmente explode em Dez (2002), filme que surpreendeu muitos dos seus seguidores e anunciou uma virada nova e radical em sua carreira. Assim como os outros, Dez é elétrico em sua forma. Reduzindo o cinema ao essencial absoluto da mise-en-scène binária (two point mise-en-scène) e da montagem básica, ele faz do carro um aparato cinematográfico variável: há um ângulo de visão (tão importante à arte de dirigir!) e um corte indicado por cada abertura e fechada de porta que são como raios toda vez que articulam uma cena.
Nós facilmente nos esquecemos ou negligenciamos a aura de ameaça, o medo do desconhecido e o temor da morte que dão vida ao cinema de Kiarostami, como uma correnteza subterrânea. Isso está na jornada do garoto em Onde Fica a Casa do meu Amigo?, na frágil e colapsada terra de O Vento nos Levará. E, acima de tudo, está enquanto Badii se deita na cova que ele mesmo cavou em Gosto de Cereja, uma cena que não sobrevive à sua transferência para a TV, o VHS ou DVD: com os seus flashes de luz na escuridão da noite, com o som tipo Sensurround-Dolby dos trovões, com o seu insuportável e pungente mistério sobre o destino da vida daquele homem, se ele morrerá ou não, essa cena nos leva a uma experiência absoluta (e absolutamente cinematográfica) de negação existencial, mais poderosa do que qualquer filme de horror. É quase como adaptar Emil Cioran ao cinema, são os cumes do desespero! E é a transição de tirar o fôlego entre essa experiência cinematográfica limítrofe, essa intimação de um apocalipse solitário, e a leveza arejada de um vídeo-em-progresso que torna o final de Gosto de Cereja tão radical ? não apenas a comparação entre (ou continuidade de) ficção e realidade.
Sem essa infusão de cinema, os filmes de Kiarostami podem passar por banalidades, por filmes com o selo de aprovação da ONU sobre paz mundial ou compaixão individual (mais uma vez, a banalidade de ABC Africa). Kiarostami (as suas entrevistas deixam isso muito claro) não é um especialista em diferenças e especificidades culturais ou em qualquer outra coisa que os intelectuais da área gostam. É um erro sobrecarregar seus filmes com esse tipo de bagagem. Ele se importa somente com o que está presente no mundo ? o mundo como um ente cotidiano e filosófico ?, em como registar essa consciência e as relações (as histórias kiarostamianas) que dela procedem. Ele filma interações casuais, encontros e conversas aleatórias que sutilmente mudam o destino das pessoas.
No documentário A Arte de Viver, o crítico francês Alain Bergala comenta que todos os filmes de Kiarostami são sobre um estranho “arranjo”: alguém com um problema se depara com uma pessoa ? geralmente, desconhecida ? que tem a chave que irá resolver esse problema.[3] Em Dez, pela primeira vez, esse processo de arranjo tem uma reviravolta sombria, pois o filme trata das condições patriarcais da cultura iraniana. Uma mulher (Mania Akbari) dirige ao local onde pegará Amin (Amin Maher), o seu filho tagarela. Quando ela estaciona, nós vemos, através da porta do carro, uma van da qual Amin sai para chegar na estrada. No trânsito, há uma conversa intensa e barulhenta entre a mulher e o ex-marido sobre quantas horas ela pode ficar com o filho e em que momento e lugar deve deixá-lo. A mulher vai embora. Momentos depois, a van para ao lado do carro; mais discussões ocorrem em movimento, e a van se afasta.
Essa cena está em perfeita ressonância com as restrições formais e peculiares escolhidas por Kiarostami durante a realização de Dez. Nenhuma cena se passa fora do automóvel da mulher. Mas também diz muito sobre a vida moderna e o papel do carro como o último espaço privado ? é mais uma casa funcional do que qualquer outra coisa que tenha quatro paredes sólidas. E as câmeras digitais, posicionadas no painel, registram não só a intimidade da vida em carros, como também sugerem o olhar frio da câmera de vigilância ? em outras palavras, a convergência do que sociólogos chamam de esferas privada e pública.
É uma coincidência curiosa que tanto Kiarostami quanto Claire Denis em Sexta-Feira à Noite (2003) fizeram do carro, no mesmo momento, o tema central de um filme. É também uma coincidência curiosa que ambos tenham sido os únicos cineastas sobre os quais Jean-Luc Nancy escreveu extensivamente. Nancy é um comentador cujo trabalho aborda obsessivamente o tema do encontro com “o estranho” e a dificuldade de formar uma comunidade funcional num mundo fragmentado ? temas que são importantes para países como a Austrália, que enfrenta a chamada crise dos refugiados.
Realmente, como Meaghan Morris, teórica australiana, uma vez disse, o carro é, em termos culturais, um tipo curioso e incerto de região fronteiriça: encerra os passageiros em rígidos papéis sociais (Dez evoluiu de um projeto sobre um psicanalista e os seus pacientes), mas também não consegue evitar que as multifacetadas influências do mundo exterior e da sua história em movimento entrem.[4]
Isso é, em parte, o que Dez ? o filme urbano mais agressivo que Kiarostami já fez ? aborda. A vida cotidiana é retratada como uma guerra em pequena escala, mas interminável (cada uma das dez cenas é introduzida com o sino de uma luta de boxe), na qual valores tradicionais e progressistas entram em conflito, principalmente em relação ao papel da mulher na atual sociedade iraniana. E apesar de haver uma vitória dura do patriarcado, o mundo agitado que, através das janelas do carro, constantemente força a sua presença nos personagens e em nós sugere outras possibilidades. Kiarostami encontra uma maneira simples, mas brilhante, de expressar essa dinâmica: faz seus atores interagirem com ruas de verdade, com o trânsito e com estranhos, retirando-os do interior de suas pequenas vidas e histórias e colocando-os numa relação constante e surpreendente com o mundo real.
À luz de tudo isso, podemos reler a declaração dada por Kiarostami sobre o tempo que passou na África, uma declaração que é tão poética quanto os seus melhores filmes, poemas e fotografias: “Naquela estranha atmosfera, não acho que eu ou qualquer outra pessoa pudesse lembrar que era cineasta. Eles não me conheciam e eu não conhecia a mim mesmo. Nós testemunhávamos cenas que deixavam uma forte impressão. Era como o Dia do Juízo Final. Nesse dia, quem poderia se lembrar com o que trabalhava?”[5]
Nós esquecemos da tensão que constitui o cinema de Kiarostami e dos filmes daqueles que foram influenciados por ele. Uma tensão inacreditável, fruto daquele sutil tremor, o qual sempre se transforma em uma aparição, uma “visão”, nos momentos finais de seus filmes. O que nós vemos nesses momentos, nesses planos derradeiros, nunca é o que esperávamos ver, e isso suspende o que nós achávamos que seria resolvido ? esse é, em ação, o seu imenso, e imensamente astuto, talento de narrador. A persona de Kiarostami pode evocar o simples contador de históricas folclóricas ou o recitador de poemas, mas, em termos cinematográficos, ele é o criador de “gestos” tão potentes quanto os que aparecem nos filmes de Pedro Almodóvar, Bertrand Bonello e David Lynch.
Não me refiro aos gestos físicos dos atores, mas à sensação de um “momento epifânico” que surge lentamente, cuidadosamente trabalhado e entregue com a claridade de uma mística oriental que, finalmente, aponta o dedo à aparição, no mundo, de algo que vinha sendo preparado na mente do espectador: algo incrível e impressionante, uma “revelação”, como aquelas lamuriosas figuras andando e altercando (de maneira indecisa) à distância na conclusão de Através das Oliveiras.[6]
Esse plano final é um plano de ponto de vista (do alter-ego do diretor) “talvez não literalmente, mas, em efeito… porque o que não é possível na vida real se torna possível no cinema”, como Mehrnaz Saeed-Vafa comentou.[7] Não é o mesmo que dizer que um plano de ponto de vista prosaico (“humilde”) pode se transformar, mágica e dramaticamente, em um momento “visionário” ? transbordando com toda a tensão constitutiva do mundo vivo e imanente, mas também permitindo o vislumbre ou a intuição (quando, por fim, deixa o espectador) de um vazio transcendental?
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Notas:
[1] Ver arquivo digital da Film Comment.
[2] Jean-Luc Nancy, Abbas Kiarostami: The Evidence of Film (Bruxelas: Yves Gevaert, 2001). O livro inclui a melhor e mais abrangente entrevista do diretor que eu conheço.
[3] Outros comentários de Bergala sobre Kiarostami estão incluídos no livro La Création Cinéma (Crisnée: Yellow Now, 2015).
[4] Meaghan Morris, Personal Relationships and Sexuality, em Scott Murray (ed.), The New Australian Cinema (Melbourne: Nelson, 1980), pp. 138-151.
[5] Movie Mutations (Londres: British Film Institute, 2003), p. 38.
[6] E não apenas a mística oriental. Em uma bela homenagem ao filósofo Norman O. Brown, Kristin Ross descreve o ritual das “árduas caminhadas pela montanha” durante as quais ele travava discussões intensas com alunos e colegas: “Ele adorava esses momentos em que a conversa reproduzia a paisagem. Quando, suspensos entre os vetores da poesia e da teoria, nós olhávamos e nos deparávamos com um trecho difícil, tentando atravessar um tronco caído sobre um abismo.”
[7] Mehrnaz Saeed-Vafa, em Abbas Kiarostami (Urbana: University of Illinois Press, 2003), p. 88.
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