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por Miguel Forlin
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“Desejo agora regressar ao que é meu: pois não deixei,
ao partir, ninguém para velar pelos meus haveres;
e receio que na busca de meu pai divino eu pereça,
ou que do meu palácio se perca algum tesouro valioso.”
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‘Canto XV’, Odisseia, de Homero
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“Estou calmo, tranquilo. Dormi bem: oito horas. Não tive nenhum pesadelo. Estou pronto para ir. Pronto para trabalhar da melhor forma possível. Me concentro apenas no essencial e estou alheio a todo o resto. Só tomarei decisões pragmáticas. Não permitirei me distrair. Não me permitirei pensar em coisas que não são importantes. Não vou contar com ninguém ou nada. Não estarei sujeito a erros.”
Enquanto diz essas palavras, Roy McBride (Brad Pitt), protagonista de Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019), está com a cabeça baixa, olhando para o chão. Vemos, intercaladas ao seu relato, imagens de uma mulher (Liv Tyler) deixando a casa onde ambos moravam juntos. Na progressão da cena, o reflexo de capacetes espaciais, posicionados organizadamente, se sobrepõe à figura do personagem. Embora o tom monocórdico da voz e a ausência de gestos bruscos indiquem calma e tranquilidade, Roy McBride não está bem. A sua expressão é melancólica, a esposa o deixou e o trabalho é tudo o que ele tem.
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Assim como o pai, H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), Roy é astronauta. O controle emocional e a capacidade de manter o equilíbrio em momentos de tensão, requisitos da profissão, são duas das suas principais características. Quando o filho ainda era criança, H. Clifford partiu numa jornada para encontrar vida extraterrestre e nunca mais retornou. O longo período sem comunicação fez com que as autoridades o dessem como morto e considerassem a missão, intitulada Projeto Lima, cancelada. Recolhendo as migalhas que compunham as pegadas do pai, Roy seguiu os seus passos, mas não sem pagar um preço.
O trauma de ser abandonado e o treinamento profissional resultaram numa postura fechada, introspectiva e solitária, o que, provavelmente, custou o seu casamento. A sua voz é muito mais ouvida como um monólogo interior do que como uma das partes de um possível diálogo. Em certo momento, ele diz para si mesmo e para nós, espectadores da sua solidão: “Eu fui treinado para compartimentar as coisas. Me parece que é assim que abordo a vida”. É difícil dizer até que ponto o homem influenciou o astronauta ou este, aquele. Possivelmente, os dois se confundem, de uma maneira quase indissociável. Não coincidentemente, na primeira cena, descrita no segundo parágrafo, o seu rosto e os capacetes espaciais se justapõem.
Quando o astronauta está em queda livre, o homem está em queda livre. A sua trajetória vertical vai dos céus ao chão, o mesmo chão que fita durante a fala inicial. O que o tira dessa zona de (des)conforto é a notícia de que o pai ainda esteja vivo e seja o responsável por uma catástrofe de proporções globais. A sua missão, agora, é reencontrar a figura paterna, perdida na noite eterna do espaço, e com ele retornar à Terra. Essa espécie de Telêmaco moderno, à procura do pai divinizado, é o herói de uma odisseia íntima, um explorador de planetas e estrelas, tanto os que compõem a moradia celestial quanto os que abrigam os demônios interiores.
A jornada que realiza, feita de cores, luzes e sombras, é como um espelho à frente da face. No lado escuro da lua, há o reflexo das trevas, da escuridão que consome parte do coração humano e se manifesta, externamente, no interminável embate físico entre os homens, na migração dos nossos ímpetos mais primitivos e mundanos; em direção a Marte e já no planeta vermelho, o encontro com um primata enraivecido e a descoberta de que os seus superiores mentiram a respeito da missão revelam a fúria do protagonista, a cólera que a tristeza e os anos lhe ensinaram a conter. “Aquele ataque foi cheio de ira. Eu entendo aquela ira. Eu a vi no meu pai e eu a vi em mim”, é como Roy descreve o seu contato com o animalesco; em Netuno, a vastidão azul é o convite ao fim, a sugestão da desistência, a sedução da melancolia.
O espaço sideral são como os olhos do personagem, a alma do universo é a alma de Roy. Quando decide não repetir um discurso pronto e falar sinceramente, através de um comunicador, ele olha para o teto estelar, como se olhasse para dentro de si mesmo. Desnudado, diz: “Pai, gostaria de revê-lo. Lembro que víamos juntos filmes em preto-e-branco. Os musicais eram os seus preferidos. Lembro que me ensinava matemática. Você me ensinou a ser ético no trabalho. “Trabalhe duro, brinque depois”, você falava. Deve saber que escolhi uma carreira que você aprovaria. Dediquei a minha vida à exploração espacial. Agradeço-lhe por isso. Espero poder ainda falar contigo. Do filho que te adora”.
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De certo modo, Roy é uma figura infantilizada, presa ao pai e à infância interrompida. Numa das cenas em que conversa com Helen Lantos (Ruth Negga), cientista que compartilha do mesmo drama, estão presentes brinquedos e uma gaiola, símbolos dessa natureza acriançada e do aprisionamento originado por um passado mal resolvido. A vida inteira de Roy foi moldada por uma escolha egoísta do pai, escolha que nunca chegou a compreender e que ditou a sua carreira, uma necessidade insaciável de aprovação e a frieza do seu comportamento, inacessível para qualquer laço emocional.
Para um sujeito atormentado por perguntas, é preciso encontrar os porquês. E é apenas quando decide confrontar o pai que o seu renascimento começa a ocorrer. Antes de invadir a nave que o levará a ele e cuja entrada lhe foi negada pelos seus chefes, Roy mergulha num lago e segue o cordão que o colocará no caminho de uma via de acesso. É um retorno ao útero, é a possibilidade de nascer novamente, de levantar as perguntas cruciais. O fogo da propulsão é o fogo da sua descida ao inferno, da etapa necessária para o que paraíso seja conquistado.
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Nesse momento, a sua trajetória se inverte. O movimento é de baixo para cima. O espelho não é mais o espaço e sim a face da figura paterna. Ao reencontrá-lo, o plongée e o contra-plongée restabelecem a hierarquia que o protagonista tão bem conhece, o pai está numa posição superior, o filho, numa inferior. Como resultado da indiferença e crueldade das palavras de Clifford, cai, dos olhos de Roy, uma lágrima, mas, como ele virá a descobrir posteriormente, essa lágrima não é a prova de uma tristeza, mas a última gota de um oceano que enfim transbordou. Os olhos concentrados, oscilantes nos momentos em que o nome do pai vinha à tona, expulsam a secreção que não mais salpicará o seu interior, mas apenas o chão de uma velha e enferrujada estação espacial.
Em seguida, Roy se ergue e, diante de Clifford, tenta convencê-lo a voltar para a Terra, sem sucesso. Clifford acha que fracassou, que não foi capaz de completar o seu objetivo. Na verdade, ele não consegue enxergar a sua real descoberta: de que os seres humanos estão sozinhos no universo. Como diz Roy:
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“Ele conheceu mundos estranhos e distantes em detalhes nunca vistos. Mundos belos e magníficos, cheios de surpresas e maravilhas. Mas, sob suas superfícies sublimes, não havia nada. Nem amor, nem ódio. Nem luz, nem escuridão. Ele só conseguiu enxergar o que não estava lá, e não viu o que estava na frente dos seus olhos.”
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Clifford encarou o abismo por muito tempo, para ele, não existia mais salvação. No seu gesto final, uma mistura de egoísmo e altruísmo, ele finalmente rompe o cordão umbilical que prendia Roy e se integra mortalmente ao único espaço que preencheu o seu horizonte, porém, abandona, mais uma vez, o filho, que, seduzido temporariamente pelo canto da sereia, pela promessa de paz que a morte traz, não se permite perecer e decide retornar ao palácio onde guardava os seus tesouros. “Mal posso esperar o dia em que a minha solidão terminará e eu chegarei em casa”.
No entanto, dessa vez, Roy não é mais Telêmaco e sim Ulisses, de volta para Ítaca. O confronto com o pai é também a sua superação. A trajetória inverte-se novamente, parecida com a do início, dos céus à Terra, mas não em queda-livre e sim deliberadamente, com um propósito. Ao chegar, o primeiro contato é um aperto de mão caloroso, que não é só um gesto amigo, como também a confirmação das suas intenções. O mundo é o espelho.
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Há um retorno ao começo. Roy faz um discurso muito similar ao primeiro, porém, a sua cabeça está erguida, o seu olhar é altivo. Vemos, intercaladas ao relato, imagens da sua mulher reencontrando-o, para conversar, para transformar monólogos interiores em diálogos. E não há mais capacetes espaciais sobrepostos. Pelo contrário, a câmera se aproxima. O que temos são os seus olhos e a sua face. Iluminados e livres.
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“Estou calmo, tranquilo. Eu dormi bem, sem pesadelos. Estou alerta e comprometido. Estou ciente de onde estou e de quem está ao meu redor. Estou atento. Me concentro no essecial e permaneço alheio a todo o resto. Não sei o que o futuro reserva, mas isso não me preocupa. Vou contar com os mais próximos a mim e vou compartilhar dos seus problemas, assim como eles compartilham dos meus. Eu vou viver e amar.
Enviar”.
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