PERSONA CINEMA: A alma é sempre estrangeira – Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola

A beleza que se quer revelar, o esforço por adivinhar o que está na camada do não dito e do não mostrado, o silêncio contemplativo, a solidão, o tédio. Lost in Translation, por Lucas Petry Bender, na parceria entre o Estado da Arte e a Persona Cinema.
Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com a Persona Cinema.

por Lucas Petry Bender

Na sua recém-publicada autobiografia, Apropos of Nothing, Woody Allen inclui entre os predicados de Scarlett Johansson uma “radioatividade sexual”, que o diretor soube explorar, sobretudo em Match Point (2005). Sob a direção de Sofia Coppola, no entanto, a jovem atriz, às vésperas de completar dezoito anos de idade, não emanava energias tão avassaladoras – nem por isso se fazia menos notável. Em Encontros e Desencontros (2003), ela é Charlotte, recém-formada em Filosofia e existencialmente à deriva, uma personagem marcada por uma melancólica doçura — ainda que temperada com um eventual toque de acidez — e por uma discreta e cálida centelha interior.

Intuindo tudo o que a atriz já podia oferecer e tudo o que ainda viria a desabrochar na sua plenitude, a diretora abre o seu filme com um demorado plano preenchido com a calcinha semitransparente que veste as nádegas de Johansson. Soa vulgar com as minhas pobres palavras, mas a imagem é de uma elegância, placidez e singeleza exemplares. Surge na tela o título original do filme – Lost in Translation – como a apropriada legenda do que sente o espectador diante de um plano tão audacioso em sua simplicidade, clássico e provocante como o plano de abertura de Stanley Kubrick para Lolita. Há, nessa única imagem estática, um sabor de sonho misturado ao de cotidiano, uma força espiritual impregnada na carne, uma doçura peculiarmente insinuante. Os principais elementos do filme já estão sugeridos aí: a beleza que se quer revelar, o esforço por adivinhar o que está na camada do não dito e do não mostrado, o silêncio contemplativo, a solidão, o tédio.

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(Reprodução)

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Em busca do sono perdido

Na imagem seguinte, Bob Harris (Bill Murray) aparece no interior de um táxi que chega a Tóquio. Despertando de um cochilo, ofuscado com os neons multicoloridos, esfrega os olhos como para certificar-se de que não sonha. Mais tarde, o acaso vai reunir Bob e Charlotte no bar do hotel em que ambos se hospedam. No primeiro diálogo entre eles, os contrastes se impõem nas diferenças de idade, perspectivas, experiências de vida, expectativas. Todas as diferenças, no entanto, convergem para a suave melancolia e crise existencial que os dois compartilham. Concretamente, porém, todo o drama existencial se resume a um problema bastante prático e trivial: não conseguir dormir, devido ao fuso horário de Tóquio. “Gostaria de poder dormir”. “Eu também”. Quando o diálogo finalmente chega nesse ponto de concordância e identificação, há um silêncio seguido por um corte para o dia seguinte, acentuando que esse será o motivo narrativo que vai costurar a relação entre os personagens: em busca do sono perdido. Parece banal, mas por trás do sono perdido está o sonho perdido, como está a alegria por trás da melancolia, a esperança por trás da desilusão, a doçura por trás do enfado.

Desde o começo do filme, plasmaram-se em nosso imaginário as panorâmicas de Charlotte contemplativa junto às janelas do hotel, com a metrópole cinzenta se estendendo abaixo como um mar impassível, o retrato da solidão contemporânea.  E assim como os neons e os reflexos luminosos impregnam a fotografia com focos de vivo colorido sobre o fundo acinzentado, também Charlotte se maquia, passa batom, e Bob escolhe uma camiseta cor de laranja, como se ambos descobrissem que por trás do desbotado de suas existências há cores expressando suas vitalidades semitransparentes. As noites insones terminam depois que as cores são levadas para o interior da vida noturna. Em duas cenas encantadoras, os vemos finalmente realizando seus desejos: ele dorme no táxi que os leva de volta ao hotel, e esse fato, aparentemente tão intranscendente, revela toda a sua graça no doce sorriso de Charlotte ao vê-lo adormecido; em seguida, ela dorme quando chegam ao hotel, e é carregada por ele até a cama para uma boa noite de sono – e agora é Bob quem transmite todo o significado desse momento com seu terno olhar. O sono e o encanto recuperados.

Com essa adorável sequência marcando a metade do filme, o encontro entre as duas almas perdidas está selado, e o espectador, por sua vez, cativado. Encontros e Desencontros alcançou o status de filme cult contemporâneo, graças sobretudo à sutileza do sentimento despertado entre Bob e Charlotte – algo que está além da amizade e aquém da paixão -, bem como pela capacidade de expressar íntimos anseios de gerações que vivenciam a precariedade dos laços afetivos, a falta de sentido do trabalho, a futilidade das relações sociais, a solidão das multidões, a vulgaridade do materialismo, a confusão simultânea de sentimentos opostos.

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(Reprodução)

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Era uma vez em Tóquio

Não se limitando a posturas simplistas como a estetização sentimentalista ou cínica, o filme procura se equilibrar sobre as distintas perspectivas da juventude e da maturidade, da melancolia e do humor. Às vezes criticado por ridicularizar os personagens japoneses, a verdade é que o humor do filme zomba igualmente dos coadjuvantes ocidentais e mesmo de Bob; no fundo, o que vemos é Bob tentando ensinar Charlotte a rir de si mesma, o melhor modo de lidar com a absurdidade da vida e não ser massacrado pelo desencanto (um aceno para Woody Allen, novamente).

Quando Charlotte confessa a Bob que está estagnada na vida e pergunta se a situação fica mais fácil com o tempo, Bob responde que não, mas logo volta atrás e diz que sim. Fala sobre como a dificuldade de manter um casamento e criar filhos é compensada pelo encanto de participar de suas vidas em formação. O tom franco da conversa, o assunto envolvendo pais e filhos, a atmosfera suavemente melancólica e até a presença da capital japonesa remetem ao marcante diálogo de Era uma vez em Tóquio (1953), em que a personagem interpretada por Setsuko Hara tenta consolar uma jovem que se revolta contra a indiferença cruel dos adultos. “A vida é decepcionante?”, pergunta a garota, expectante. A resposta ouvida: “Sim, frequentemente é”. Não há consolo maior que o desconsolo, e a musa de Yasujiro Ozu expressa tal lucidez com uma doçura desconcertante.

Na essência do filme de Sofia Coppola está a relação com o tempo, com a sua ausência de sentido, com o tédio que consome o entusiasmo da vida, cuja expressão mais evidente se dá pelo desajuste com o fuso horário. A viagem a um local muito distante e distinto proporciona algo como uma renúncia à vida ativa irrefletida, uma espécie de bolha no espaço-tempo, que confronta os protagonistas com o vazio de suas vidas, mas que também clama por uma vivência de um espírito mais contemplativo, capaz de extrair beleza, alegria, serenidade e liberdade interior onde parece não haver nada, ou onde parece haver tão somente a inadequação que se choca contra os atos da vida cotidiana.

Charlotte angustia-se por não saber que profissão desempenhar, o que lhe parece uma inaptidão pessoal, mas o sucesso profissional e a prosperidade de Bob demonstram que a questão não é tão simples. Não sabemos o que fazer do tempo quando ele se mostra nu diante de nós, expondo o seu vazio essencial. O primeiro passo, no entanto, está justamente no que o desajuste do fuso horário nos ensina: não podemos controlar o tempo, ao contrário do que maquinalmente costumamos pensar. Há sempre um outro tempo, para além das pretensões humanas. Tanto Bob quanto Charlotte consomem a autoajuda de um audiolivro intitulado A Soul’s Search, mas o que vão realmente aprender é que a alma é sempre uma estrangeira neste mundo sublunar de tempos perdidos.

(Reprodução)

Saber perder-se

Acompanhar o percurso errante e livre de Bob e Charlotte por Tóquio transmite algo do singular prazer existencial em ser apenas mais um na multidão que passa pelas ruas, restaurantes, bares. Paralelamente, há a indizível satisfação de ser a pessoa escolhida por alguém, de encontrar um outro que seja absolutamente outro e, ao mesmo tempo, uma extensão do eu, a ele intimamente ligado e por ele profundamente compreendido. A solidão, no filme de Sofia Coppola, não é lamentada nem idealizada. É a manifestação de um estado de espírito de deriva existencial que fica nos limites entre um estado depressivo (quando Charlotte chora ao telefone e diz não sentir nada) e uma liberdade efusiva (como nas festas da vida noturna). Conduzido por trilhas sonoras etéreas como Sometimes (My Bloody Valentine), Girls (Death in Vegas) e Just Like Honey (The Jesus and Mary Chain), o filme está impregnado de uma modesta melancolia – despida de perspectivas cosmológicas e patológicas como o filme de Lars von Trier –, esperançosa de um encontro com o outro, esperançosa de ser resgatada do fundo acinzentado indistinto.

O cinema nos legou cenas de despedidas inesquecíveis, entre as quais inclui-se o desfecho de Encontros e Desencontros, pela força emocional com que arremata todos os aspectos mencionados, encerrando o filme com um sabor agridoce e um sentimento ambivalente. A alma estrangeira, em sua suave melancolia, sai a andar a esmo e anonimamente entre a multidão, observando que somos estrangeiros, que todos são estrangeiros de algum modo – sem que isso conduza ao desespero ou à indiferença, mas às candentes lágrimas da consciência de que há uma casa, um lar, um destino, apenas não sabemos onde, quando, como; talvez não nos caiba saber, assim como não nos é dado saber o que Bob sussurra no ouvido de Charlotte. Gosto de imaginar que ele diz algo no sentido do que Simone Weil escreveu em A Gravidade e a Graça: “Você não poderia ter nascido numa época melhor do que esta, em que tudo se perdeu”. Pois quando tudo está perdido, todos os caminhos levam a um encontro.

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