por Jeffis Carvalho
Se não tivesses nome/ Se não tivesses história/ se não tivesses livros/ se não tivesses família/Se fosses apenas tu/ Nu sobre a grama/ Quem serias então?/ Eis o que ele perguntou/ E eu disse não ter realmente certeza/ Mas eu provavelmente estaria/ Frio/E agora estou congelando/ Congelando
A canção Freezing, de Philip Glass e Suzanne Vega, não está em Blade Runner – 2049, a tão aguardada sequência do clássico de ficção científica dos anos 80 do século passado, mas poderia estar nos créditos finais – e recorro a ela para sintetizar de forma poética a proposta do novo filme. Nome, história, livros, família. Identidade, memória, conhecimento, pais e filhos. O real, o virtual, o atual.
O que é um replicante? Essa foi a pergunta que me fiz quando revisei, há 34 anos, como revisor de texto na Abril, a resenha de Veja sobre o filme de ficção científica Blade Runner, de Ridley Scott, até então conhecido pela direção do também emblemático Alien, O Oitavo Passageiro, de 1979. A resposta, claro, está logo na abertura do filme. Replicante é a evolução dos robôs da série Nexus que se tornaram virtualmente idênticos aos humanos. O filme é baseado no conto Os andróides sonham com ovelhas elétricas? de Philip D. Dick, no qual não há o termo replicante – que foi criado pelos roteiristas do filme. Em Blade Runner, o replicante é o antagonista do herói do filme, que vai caçá-lo, o policial Rick Deckard (Harrison Ford). Deckard aprende, no cultuado final do filme, que ninguém valorizava mais a vida humana do que Roy Batty (Rutger Hauer), o líder inteligente do renegado grupo de replicantes da série Nexus-6. O que Roy almejava era poder viver – e a sua série estava limitada a uma vivência de apenas quatro anos.
Três décadas depois, e isso faz toda a diferença, o protagonista do filme não é mais Deckard. É o replicante K (Ryan Gosling), um novo modelo criado exclusivamente para obedecer a ordens e que trabalha como “blade runner” para o Departamento de Polícia de Los Angeles. A sua tarefa, como era a de Deckard, também é caçar e aposentar – o eufemismo para executar – antigos modelos que sobreviveram, misturando-se à população. Em 2049, os replicantes estão integrados à sociedade humana e cabe a eles a execução do trabalho pesado e em ambientes perigosos. Quando não está caçando e aposentando outros, sua vida pessoal resume-se a conversar com sua namorada virtual, Joi (Ana de Armas), fabricada pela Wallace Corporation, sucedânea de Tyrell Corporation do primeiro filme.
Desde o primeiro momento, 2049 se distancia do seu original. Para isso, o diretor Dennis Villeneuve trabalha seu estilo num tripé chave: a fotografia, a montagem e a música. Com uma paleta de cores mais neutras, onde predomina o cinza para depois trazer o âmbar e esquentar a textura, o filme tem na fotografia do grande Roger Deakins um dos seus pontos altos, porque ela consegue ser ao mesmo tempo épica e intimista, com poucas sequências noturnas em comparação com Blade Runner. A montagem de Joe Walker evita os cortes ultra rápidos tão comuns no cinema de ficção científica atual (vide o Star Treck deste século), e contribui decisivamente para a proposta de Villenueve de trabalhar com tempos mortos e estender a narrativa. O filme tem quase três horas de duração, o que provocou críticas de que ele é muito lento – mas o diretor propõe um tempo de descoberta e reflexão, não só de ação. Já a trilha sonora de Hans Zimmer e Benjamin Wallfish (que também criaram a trilha do maravilhoso Dunkirk, de Cristopher Nolan) privilegia mais os acordes dissonantes com forte percussão acústica em detrimento da melodia, diferente da proposta de Vangelis no primeiro filme. Na cenografia, temos a alternância de lugares completamente deteriorados e ambientes mais clean e assépticos. Desse modo, o diretor Dennis Villeneuve deixa claro que o seu filme, embora seja uma sequência, tem vida própria, com musculatura suficiente para ombrear com o filme de Ridley Scott – que aqui assina como produtor executivo.
Nome, história, livros, família.
Se no primeiro filme a principal discussão/reflexão era mesmo sobre a eterna questão colocada pelo acelerado progresso das tecnologias criadas pelos humanos – homem versus máquina – agora Villeneuve expande esse debate, com a ajuda do roteirista Hampton Fancher – co-autor de Blade Runner – que aqui divide a escrita com Michael Green. Da questão criatura/criador e seus desdobramentos, da duração da vida à identificação do que realmente é humano, presentes em 1982, os trinta e cinco anos que separam os dois filmes promovem todo um caldo novo, que Villeneuve sabe como trazer à tona. Se antes o mimetismo – um replicante é um androide que sabe imitar perfeitamente o humano – permeava o debate e punha em primeiro plano o trabalho de identificar quem é quem, em 2049 a questão se sofistica ainda mais, colocando em foco a humanidade dos replicantes. É uma tremenda e ousada inversão.
Em 1983, o meu ex-professor e ensaísta Laymert Garcia dos Santos, em artigo na Folha de S. Paulo, escrevia que “a filosofia autocrática das técnicas é o próprio tema de Blade Runner. Mas o mais importante é quem porta a sua discussão dentro do filme, quem tira as consequências de sua dominância, quem enuncia a proposta de uma nova relação com a tecnologia. Não são os humanos… mas Roy, o líder replicante, a criatura exponencial de tecnologia, modelo de combate”.
Em 2017, o tema de Blade Runner – 2049 é, como no título da obra do filósofo Henri Bergson (1859-1941), a memória e a matéria. Alma e corpo, se quisermos simplificar. Para Bergson, trata-se da materialização da memória em um corpo. É o espírito feito corpo. Ora, o policial-replicante K vai se revelando mais e mais humano – e chega mesmo a acreditar que é metade humano – porque a sua bioengenharia genética está tão evoluída que ele se torna a materialização da memória em um corpo. Ele tem alma? Se a pergunta que ficou do primeiro filme é se Deckard era afinal também um replicante, em 2049 a questão é sobre a alma de K. No novo filme, ainda que deixe no ar a questão da humanidade de Deckard, por questão de verossimilhança, ou seja, a lógica interna da narrativa, podemos apostar que não, ele não é um replicante – pelo menos não como os demais. E K? Ele tem alma? Outros replicantes têm alma? E Luv, a replicante mais forte e ágil, a serviço de Wallace (Jared Leto), o criador e produtor dos novos replicantes. E Joi, o holograma que deseja ser matéria? O que pode a memória? Aí está a chave de 2049.
Nome, história, livros, família. Identidade, memória, conhecimento, pais e filhos.
K é k porque não tem nome. Não ser nomeado, então, é o que o qualifica como replicante, um ser sem identidade, produzido para obedecer, cumprir ordens. Mas, calma lá, de repente percebemos que K tem história. Algum tipo de história ele tem e ela vai surgindo; somos informados de que ele teve infância, tem a lembrança de ser um garoto que, por medo, esconde o seu cavalinho de madeira. Memória. Mas se ele é um replicante como pode ter sido a criança que se esconde? Com pode ter memória? Ah, sim, ela pode ter sido implantada. Mas com toda aquela carga emocional? K sente profundamente aquela lembrança e sai em busca dela, sai à procura do cavalinho; ele sabe onde o escondeu. Ele encontra o cavalinho no local exato em que tinha deixado tantos anos antes. Memória materializada no seu corpo. Conhecimento e consciência. K se indaga: ele é mesmo só um replicante? Precisa de respostas. Identidade.
A identidade de K – aquilo que torna o que ele acha, então, que é – se faz da lembrança do cavalinho. O novo replicante, parece nos dizer Villeneuve, é mesmo diferente. Herdeiro emocional de Roy Batty – que morre no final de Blade Runner –, K não precisa lutar para continuar vivo – não há limites de vivência. Mas a sua demanda é mais complexa, porque ao se descobrir com uma história, tudo o que ele quer é ser. Não basta a possibilidade da vida. Ele precisa da subjetividade. Se em Blade Runner o policial Deckard aciona o seu aparelho fotográfico para decupar uma foto em busca de pistas, as pistas de K já estão impressas em sua memória, impregnadas em sua retina.
Recorro a Gilles Deleuze em sua obra Bergsonismo:
“Citemos um texto admirável, no qual Bergson resume toda sua teoria: quando buscamos uma lembrança que nos escapa, “temos consciência de um ato sui generis, pelo qual nos destacamos do presente para nos colocarmos, inicialmente, no passado em geral, depois em certa região do passado: é um trabalho tateante, análogo à preparação de um aparelho fotográfico. Mas nossa lembrança permanece ainda em estado virtual; dispomo-nos, assim, a simplesmente recebê-la, adotando a atitude apropriada. Pouco a pouco, ela aparece como uma nebulosidade que viria condensar-se; de virtual, ela passa ao estado atual [… ]”
O real, o virtual, o atual.
O virtual é também real. Assim, a imagem Joi (Ana de Armas) é real porque, como já nos disse Bergson – relido por Deleuze e retomado por Pierre Lévy –, o contrário de virtual não é o real. O que se opõe ao virtual é o atual. E para fazer amor com K, Joi precisa sair de sua virtualidade, que é real, para se atualizar. Numa belíssima sequência, Joi vai se atualizar no corpo da da também linda replicante Mariette (Mackenzie Davis). Vemos essa atualização – uma fusão entre imagens que nunca se concretiza completamente, porque atualizar é um processo, um movimento incessante – o virtual e o atual – diante dos olhos de K e dos nossos próprios. K e Joi fazem amor pelo corpo de Mariette. Virtual. Real. Atual.
Essa virtualidade, depois, retorna na sequência chave do filme, em Las Vegas, onde começamos a entender o tema de 2049. Como escreveu Umberto Eco, em Viagem na Irrealidade Cotidiana, “Las Vegas concentra-se sobre o jogo e o espetáculo, sua arquitetura é totalmente artificial e foi estudada por Roberto Venturi como um fato urbanístico completamente novo, uma cidade “mensagem” toda construída de signos, não uma cidade como as outras, que comunica para poder funcionar, mas uma cidade que funciona para comunicar. Mas Las Vegas é ainda uma cidade ‘verdadeira’.
É em um cassino abandonado dessa cidade que K encontra o refúgio de Deckard. O momento em que o protagonista Ryan Gosling se vê diante do mito Harrison Ford. Com seu rosto de esfinge e petulantemente consciente de que é dotado de mais recursos como ator do que Ford, Gosling se rende ao carisma do veterano e, num impressionante jogo, nos mostra admiração e afeto no enfrentamento do envelhecido blade runner. O embate de K com Deckard se dá em meio a virtualidades, que são reais e que, talvez, desejassem se atualizar, para estar no presente por um instante. Participações especialíssimas de Elvis Presley, Frank Sinatra e Marilyn Monroe, nos palcos daquela cidade feita de artifícios. Aqui, Villeneuve atinge mesmo o sublime, porque como lembra George Steiner, citando Roman Kakobson, “toda obra de arte séria descreve a gênese de sua própria criação”.
A alma. Ah, a alma. Um replicante pode ter alma? Sim, nos diz Villeneuve, sob a ótica da filosofia de Bergson. Para o filósofo, a memória (que é espírito, que é alma) não se conserva no cérebro.
Volto a Deleuze, em Bergsonismo:
“A questão: onde as lembranças se conservam? implica um falso problema, isto é, um misto mal analisado. Procede-se como se as lembranças tivessem de se conservar em alguma parte, como se o cérebro, por exemplo, fosse capaz de conservá-las. Mas o cérebro está por inteiro na linha de objetividade: ele não pode ter qualquer diferença de natureza com os outros estados da matéria; tudo é movimento nele, como na percepção pura que ele determina. (Além disso, o termo movimento não deve, evidentemente, ser entendido como movimento que dura, mas, contrariamente, como um “corte instantâneo). A lembrança faz parte, ao contrário, da linha de subjetividade. É absurdo misturar as duas linhas, concebendo o cérebro como reservatório ou substrato das lembranças. Mais ainda, as lembranças só podem se conservar “na” duração. Portanto, é em si que a lembrança se conserva.”
Quando K vivencia aquela lembrança do cavalinho escondido, ele se torna sujeito porque dotado de subjetividade. Memória é espírito. E se matéria é corpo, memória é alma. O cavalinho é, assim, o signo da conquista maior de K: sim, ele possui alma, e não importa se aquele lembrança é ou não sua. Ele a tem, mais ainda, toma-a para si e faz a história original de Blade Runner avançar. Se a subjetividade nos faz humano, 2049 é um espelho para nós, sob a visão de K, o replicante que se humaniza diante de nós.
Villeneuve e a dupla de roteiristas sabem que lançaram muitas pistas e informações e, precisam – afinal trata-se de um filme hollywodiano – amarrar as pontas. Mas o fazem com a parcimônia necessária, esclarecem os principais pontos, mas deixam em aberto, mais uma vez, toda verdade sobre Rick Deckard.
E agora estou congelando/ Congelando
Na belíssima sequência final, K – que se apresentou a Deckard como Joe, para depois sentir a dor de continuar sendo K – leva Deckard ao seu destino. Ouvem-se os acordes da trilha do filme original, de Vangelis. Villeneuve, então, estabelece K como herdeiro emocional e legítimo de Ray. Sob nevasca, K se humaniza completamente diante de nós, porque o seu sacrifício é fruto de uma escolha. Em sua máscara, sua persona, Gosling nos dá a imagem do que é conquistar a alma e descobrir o seu peso.