por Rodrigo de Lemos
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Perversão e moralismo, baderna e arbítrio; o Brasil de Ruy Guerra em Os Cafajestes (1962) oscila entre esses pólos opostos e mais complementares do que podem parecer, numa semelhança perturbadora com o país brutal e desconhecido que nos chega pelos jornais de tempos em tempos. Essa história de humilhação de mulheres por dois picaretas inescrupulosos que usam como arma a sexualidade feminina faz pensar nas deprimentes continuidades que marcam nossa sociedade, como sugerem as notícias de abusos a mulheres estrangeiras infligidos recentemente por playboys brasileiros no exterior.
De fato, a trama malévola do pobretão ambicioso Jandir (Jece Valadão, no papel definitivo de sua carreira) e do playboy tão fracote quanto cruel Vavá (Daniel Filho, surpreendente) lembra de perto episódios recentes, como o dos torcedores brasileiros que filmaram russas repetindo palavrões em português na Copa de 2018 ou como o do médico e influencer bolsonarista no Egito há apenas poucas semanas. No filme, os dois cafajestes levam Leda (a linda Norma Bengell, mais parecida que jamais com Jeanne Moreau), amante do tio de Vavá, a uma praia deserta na Barra da Tijuca (aonde mais?). Convencem-na a despir-se, roubam suas roupas, fotografam-na nua, exposta e frágil à beira-mar; seu objetivo: chantagear o velho rico em troca das fotos da amante. A Jandir, Vavá prometera o seu conversível caso a trapaça funcionasse; sua família estava na pior, e aquela seria sua chance… Leda, por seu lado, persuade os dois cafajestes de que com ela não conseguiriam nada. Deveriam atacar Wilma (Lucy de Carvalho), filha do tio de Vavá. Ocorre que o asqueroso filhinho de papai também tem um coração, e a prima Wilma é sua paixão recolhida (além de ter um pai rico)…
No centro da tramoia, a perversão brasileira em sua face mais crua. Por um lado, Jandir e Vavá são jovens “modernos” às raias da amoralidade: dirigem carros velozes, consomem drogas, frequentam o submundo, zombam da Igreja, bolam planos contra endinheirados e contra sua própria família: estariam além do bem e do mal? Por outro — e a presença bela e animalesca do jovem Jece Valadão o sugere por si só —, trazem em si o que há de mais arcaico no machismo à brasileira.
O mundo de Jandir e de Vavá é estranho; nele, a opressão da mulher tem pouco a ver com a supressão de sua sexualidade, como é o caso em certas sociedades tradicionais do Oriente, com sua concepção da mulher como “pérola na concha”; no caso dos brasileiros, trata-se antes da exposição do seu corpo e do uso público da sua sexualidade contra ela mesma. É o que nos interroga no ato transgressor dos dois: o que, afinal, faz com que a nudez de Leda seja objeto de chantagem? O que há nisso de escandaloso? Afinal, não haveria o mesmo potencial de escândalo se fosse um nu masculino… (E nos casos reais da nossa atualidade: para certa mentalidade brasileira, haveria ainda hoje algo de humilhante em uma mulher repetir palavrões que curiosamente não soam obscenos na boca do homem que lhes dita.). Dirigindo o último carro, vestindo-se na última moda, ouvindo a última música, Jandir e Vavá carregam o velho e o antiquado sob a carapaça do novo.
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Na realidade, o novo não é apenas envoltório do arcaico; ele é o seu modo de realização. O moderno aparelho fotográfico de Jandir e de Vavá é significativo disso. A dupla é exímia em seu manejo; conhece seus meandros técnicos, não para de falar de lentes e de diafragmas. E, no entanto, opera a câmera motivados por representações sexuais das mais antiquadas. A importância do longo e estonteante travelling circular sobre o nu frontal pioneiro de Norma Bengell ultrapassa a do mero fait divers do escândalo que causou à época. Seu valor estético é imenso. A lente da câmera de filmagem do diretor Ruy Guerra corrige o sentido mentiroso das imagens captadas pela lente da câmera fotográfica dos dois brutamontes. As poses de Leda nas fotos tiradas por eles podem sugerir ilusoriamente luxúria e provocação sexual para o olhar masculino lúbrico; são, entretanto, limitadas pelo seu aspecto pontual e não representam a ação na sua duração. Por outro lado, em sua continuidade, a filmagem revela os verdadeiros sentimentos da vítima abusada: humilhação, vergonha, súplica, desespero. Enquanto a primeira lente, ao captar fragmentos, encobre a realidade moral do ato, a segunda revela a sua verdade ao representá-lo totalmente, em sua continuidade.
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Não que a miséria moral se restrinja à dos dois malandros. Ainda os liga alguma cumplicidade. Numa longa cena noturna e onírica reunindo os quatro protagonistas entre as dunas da praia — cuja imensidão funciona paradoxalmente como um huis clos sartriano, onde as pulsões eróticas e destrutivas dos personagens afloram, revelando sua noite escura da alma —, Jandir convida Vavá a estuprar Wilma em seu lugar. Vavá recusa, tenta dispor da prima pelo convencimento: é bom rapaz… Em vão. É que a burguesa Wilma se deixa atrair pelo atlético pé-rapado Jandir, o mesmo que abusara dela; quer entregar-se a ele — é o fascínio sexual do plebeu sobre a princesa. E consegue. O viril Jandir estava humilhado; há pouco falhara sexualmente com Leda (uma catástrofe para um cafajeste que se preze). Por que não provar a si e a Leda que continuava homem? Antes de beijar Wilma, Jandir troca olhares com Vavá, como se pedisse sua permissão para possuir sua priminha amada. Acaso Vavá é tomado pelo ciúme, sai nos punhos, tenta barrar o amigo? Nada disso; apenas desvia o olhar e desmorona no carro — aquiesce tristemente, e o pacto dos machos não se rompe.
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Já as mulheres… Leda é aquela que arma a arapuca para entregar a filha do amante ricaço aos crápulas. Quer em troca as suas fotos e quer também atingir o tio de Vavá, com quem estava brigada. Wilma tampouco é movida por qualquer “sororidade” (a palavra já existia?) com relação à amante do pai: consegue enfim fazer sexo com Jandir, e isso na frente de Leda, que já tentara duas vezes dormir com o machão; esta assiste à cena com o olhar de uma derrotada; decide então se consolar com o magricelo Vavá.
Mas, neste huis clos sórdido de Ruy Guerra, as alianças não são tão estáveis. Os homens se unem; as mulheres se desunem — até que outra poderosa lógica tipicamente brasileira, a de classe, traga uma dose de bagunça a esse coreto. Vendo que a amada priminha está decidida a dormir com Jandir, Vavá não deixa de apelar à profunda ligação que o une a Wilma, a de meio e a de origem, em oposição à viralatice do amigo zé-ninguém: “O Jandir não é homem pra você. Você merece coisa melhor. Ele não é do nosso nível. É capaz de tudo”. Por um momento, é como se não fosse Vavá o principal interessado no esquema e que não fosse ele a ter corrompido Jandir (afinal, só um zé-ninguém) em troca de um conversível. É como se ele também não fosse capaz de tudo. O discreto charme da burguesia é o de uma hipocrisia deslavada. Ou, como diz uma encantadora espécime da nobreza romana decadente em La Dolce Vita, de Fellini: fazemos tudo o que os outros fazem, mas com boas maneiras…
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É comum se associarem estes dois dos monumentos que Ruy Guerra legou ao Cinema Novo cada um a uma tendência do cinema europeu: Os cafajestes — com seus jovens em conversíveis acompanhados de armas e de garotas —, à nouvelle vague francesa dos Jean-Paul Belmondo e das Jeanne Moreau, elegantes e amorais; Os fuzis (1964), obra-prima de cru realismo sobre a seca nordestina, às crônicas da realidade social nos cafundós italianos que encontramos em mestres do neorrealismo, como em Roberto Rossellini e em Luchino Visconti.
E, no entanto, nossa catástrofe sociorracial ronda Jandir e Vavá mais de perto do que o que acontece com a pobreza francesa nos filmes contemporâneos de um Louis Malle, de um François Truffaut e de um Jean-Luc Godard, mais homogeneamente (pequeno?) burgueses. Nos seus passeios de conversível pelo Rio de Janeiro, Jandir e Vavá tomam suas pílulas estimulantes e falam de grana e de garotas enquanto assistem às caras sofridas do povo pobre e preto nas ruas, e um cortejo fúnebre de negros chega a forçá-los a parar. O mundo pobre e preto está lá, como um cenário ao mesmo tempo próximo e estranho para as tramoias da elite (apesar de Jandir ter conhecido esse mesmo mundo de perto…). Para esses dois escroques, tudo o que é exterior a seu meio imediato é objeto do supremo desdém — exterior seja porque vem socialmente de baixo (os pobres, os pretos), seja porque vem de muito acima: daí o desinteresse animalesco de Jandir pelas notícias da política nacional e mundial que lhe chegam pelo rádio. Mesmo o que emerge deles próprios — é o que sugere a sua introversão angustiada sob o efeito da maconha na cena magistral no Forte de São Mateus, em Cabo Frio — lhes parece desconhecido e ameaçador. Sua miséria moral se acompanha de uma miséria intelectual sem remissão, representação da miséria irremissível da nossa elite, cujo tipo social mais característico — o do picareta — Jandir e Vavá representam com tintas fidedignas e que, a julgar pelas notícias, passa muito bem, obrigado, sessenta anos depois.
Miséria irremissível? Talvez a beleza visual desse filme inovador e esculpido como o melhor Antonioni, assim como a música soberba de Luiz Bonfá, sejam ambas tão absolutamente sem falhas pelo desejo de fazer alguma coisa que preste com o que não tem perdão em nossa sociedade, transformando em objeto estético o espetáculo de baixeza que era e é o nosso e que o roteiro revela sem concessões. Uma arte superior teria nascido assim da nossa compulsão à repetição na picaretagem; não é um feito menor. Nem nos deixa muitas esperanças: os cafajestes de ontem são os de hoje e agora ocupam os mais altos postos da nação; serão os de amanhã?
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