por José Francisco Botelho
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A primeira parte do especial pode ser lida aqui.
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Por que o Japão é um país tão fascinante? Há anos me faço essa pergunta. Sendo leigo em nipologia, posso apenas dar uma resposta impressionista: me fascina, na cultura japonesa, a combinação entre o rigor e a imaginação. É um casamento de qualidades que busco na poesia e na arte em geral: o efeito de variedade aparentemente infinita dentro de padrões estabelecidos, o jogo de elementos reconhecíveis que resulta na eterna possibilidade da surpresa. Assim é com o cinema japonês, cujo sistema de classificação de gêneros é vasto, confuso e hipnoticamente saboroso. A melhor amostra desse dédalo é precisamente o “filme de samurai”, de cuja complicada definição vamos tratar hoje.
“Cinema samurai” é uma expressão criada por críticos norte-americanos, para indicar um vasto e múltiplo volume de filmes que nem sempre se encaixam mansamente nesse rótulo. O Japão, tradicionalmente, costuma separar sua produção cinematográfica em duas grandes categorias: os jidaigeki ou “dramas de época”, e os gendaigeki, filmes de temporalidade contemporânea. Grande parte dos jidaigeki se passa no período Edo (1603-1868), durante o qual o Japão foi governado pelo xogunato Tokugawa. É o caso de dois dos filmes mais populares de Akira Kurosawa, Yojimbo, o Guarda-Costas (1961) e sua continuação, Sanjuro (1962) ? que talvez sejam a melhor porta de entrada para neófitos no gênero. Outros filmes são ambientados na época imediatamente anterior, o período dos Estados Beligerantes ou Sengoku (1467-1615), como Os Sete Samurais (1954) e Kagemusha, a Sombra de um Samurai (1980).
Também há jidaigeki passados em tempos muito mais antigos. É o caso do magnífico e perturbador Retrato do Inferno (1969), de Shirô Toyoda, que se desenrola no período Heian (794-1185). O filme conta a história de um pintor coreano, Yoshihide, interpretado por Tatsuya Nakadai, e de sua relação trágica com seu mecenas, o tirânico Lorde Nakamura, espécie de primeiro-ministro do Japão imperial. Baseado num conto de Ryûnosuke Akatagawa, a obra parece uma inversão metafísica de Agonia e Êxtase (1965): se no filme de Carol Reed a tensão entre o Papa Júlio II e Michelangelo acaba trazendo à Terra uma visão das esferas celestiais, o clássico de Toyoda mostra que a arte também pode ser uma maneira de descer ao inferno.
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Também são descritos como jidaigeki os filmes passados no início da Era Meiji (1868-1912), após a queda do xogunato e a abertura comercial do Japão ? é o caso do maravilhosamente selvagem Lady Snowblood: Vingança na Neve (1973), de Toshiya Fujita, uma das inspirações para Kill Bill, de Quentin Tarantino. Alguns títulos marcantes retratam precisamente o traumático momento da abertura do país, em que séculos de tradição guerreira foram postos em cheque e o antigo mundo dos samurais entrou em colapso. Talvez o melhor exemplo seja Assassinato ou Ansatsu (1964), de Masahiro Shinoda, diretor associado à chamada Nouvelle Vague japonesa da década de 60. O filme acompanha as andanças de um enigmático espadachim, interpretado pelo grande Tetsurô Tamba, que parece uma espécie de vira-casacas contumaz, oscilando entre as facções políticas que se enfrentavam na época (os últimos defensores do xogunato decadente e os restauradores da autoridade imperial). Aqui, vale deixar um caveat. Se filmes como Yojimbo são imediatamente apreciáveis aos não iniciados ? até por suas semelhanças narrativas com o faroeste americano ?, há muitos jidaigeki que exigem algum conhecimento do período histórico para a fruição ou mesmo a compreensão do enredo. E o labiríntico Ansatsu é um exemplo rematado desse tipo de obra mais ou menos esotérica, que demanda ao menos algumas páginas de pesquisa prévia para ser apreciado.
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Para se compreender as misteriosas categorias do cinema de época japonês, não apenas importa o recorte cronológico, mas também o tipo de história contada. A categoria dos jidaigeki tem grande variedade narrativa e comporta filmes muitíssimo diferentes entre si. O Intendente Sansho (1954), obra-prima de Kenji Mizoguchi, é um devastador drama familiar passado no século XII, mas que funciona como um comentário crítico sobre o Japão do Pós-guerra. Contos da Lua Vaga (1953), também de Mizoguchi, e Kwaidan – As Quatro Faces do Medo (1954), de Masaki Kobayashi, são recriações oníricas e transcendentes de histórias fantásticas do folclore japonês. Já Onibaba – A Mulher Demônio (1964), de Kaneto Shindô, é um dos maiores filmes de horror de todos os tempos. Durante o período Sengoku, duas mulheres (sogra e nora) vivem sozinhas num pântano de gramas altas, à margem de um incessante campo de batalha, e sobrevivem atraindo guerreiros extraviados à morte ? para em seguida vender suas armaduras. Quando a mulher mais jovem arranja uma amante, a mais velha ? tanto por ciúmes quanto por receio de perder a cúmplice ? resolve atormentá-la até a loucura. O resultado é uma jornada de claustrofobia sexual e alucinação fantasmática que cria para os espectadores a sensação perfeita de um pesadelo na vigília.
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E, enfim, há os jidaigeki com elementos próximos ao que no Ocidente se chama de “filme de ação”. Essa subcategoria do drama histórico japonês é conhecida como chambara, ou “filmes de esgrima”, já que a espada é a arma predileta dos heróis e anti-heróis japoneses. Grosso modo, chambara é um filme cujo protagonista é um espadachim ? e, por consequência lógica, também o são seus antagonistas. Quando falamos em “cinema samurai”, geralmente nos referimos a esse tipo de obra – mas, na prática, também se usa o termo para designar filmes cujos protagonistas raramente (ou nunca) puxam uma espada, como Ran (1985) e Kagemusha, de Kurosawa. Além disso, em alguns chambara o espadachim-protagonista não pertence à classe aristocrática e, portanto, não pode ser considerado um samurai. É o caso de clássicos como A História de Zatoichi e suas muitas continuações. Entre os exemplos essenciais de chambara, estão os já citados Yojimbo e Sanjuro, e muitos outros clássicos de que falaremos mais adiante ? como A Espada da Maldição (1966), de Kihachi Okamoto, Rebelião (1967), de Masaki Kobayashi e Tirania (1969), de Hideo Gosha.
Por difícil que seja sua definição, talvez possamos buscar uma espécie de denominador-comum narrativo ou filosófico às obras que encaixamos na categoria de “cinema samurai” ? ou, ao menos, a muitas delas. O “filme de samurai” trata de indivíduos presos a um mundo regulado pelos rituais da violência, onde a aceitação da morte como realidade rotineira vem atrelada a um estranho e às vezes perturbador culto à beleza; são filmes cujos personagens muitas vezes se debatem entre os impulsos individualistas e o espírito do dever; personagens sempre envolvidos em dilemas que não aceitam soluções indolores e que parecem oscilar entre o abismo niilista e o desejo por um sentido moral no mundo.
Não por acaso, portanto, é o gênero favorito de muitos aficionados de William Shakespeare, como o autor destas linhas.
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