por Jocê Rodrigues
“Ainda bem que a gente só visita os museus na lua-de-mel. Depois, nunca mais!”, desabafa Augusta Malfenti, personagem do romance A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. De modo bastante natural, ela acaba por expressar o que muita gente ainda hoje pensa sobre o que acredita ser um mero depósito de velharias. Talvez falte o entendimento de que um museu não é um asilo da arte – ou pelo menos não deveria ser. Dentro dele, a marcha da história desfila diante de olhos hipnotizados e somos transportados a outras épocas e instalados em lugares inteiramente diferentes daqueles em que vivemos.
No Brasil existem pouco mais de 3.300 museus – dentre eles o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro, um dos mais visitados em todo o mundo. Número que pode ser considerado abaixo da média se comparado a outros países, mas que chega a ser um tremendo acontecimento, considerando a dificuldade que boa parte deles enfrenta para que continuem a funcionar. Por um lado, graças a administrações despreparadas e desastrosas; e por outro, pelos famosos litígios políticos e, em alguns casos, o baixo número de visitantes.
Com gênese na Grécia Antiga, o museu é um espaço que delineia diferentes contextos históricos e os expõe sob as luzes do agora. São guerras, crises, enredos de amor, morte e traição, tudo representado pelo aparato artístico presente em mostras e exposições que têm lugar na instituição que reúne parte da trajetória do desenvolvimento temporal e intelectual da humanidade.
Seu nome deriva da palavra grega mouseion, usada para designar o templo das nove musas, filhas de Zeus e Mnemosine, deusa da memória – que ironicamente jaz esquecida entre tantas outras divindades. Os objetos que ele guarda e exibe trazem consigo a égide da arte, que os eleva a um status metafísico, seja para os Antigos, com sua concepção de arte mediada pela razão, seja para os Modernos, para os quais a comunhão com a arte só é possível pela experiência sensível do toque e da participação.
Em meio às inúmeras reflexões sobre espiritualidade, história e condição humana que costuma fazer em seus trabalhos, o diretor russo Alexander Sokurov dedicou dois títulos da sua vasta filmografia para discutir a importância do museu nessa espécie de manutenção do espírito e da memória.
O primeiro foi o monumental Arca Russa (2002), onde o diretor e historiador por formação explora de modo bastante íntimo e peculiar, ao longo dos mais de 90 minutos do plano-sequência construído com cuidados arquitetônicos, a memória da Rússia através de uma de suas grandes joias e motivo de orgulho: o Hermitage. Sua imponente construção, situada às margens do rio Neva, em São Petersburgo, era antes usada como residência oficial dos czares, até que a imperatriz Catarina II, em 1764, deu início a uma primeira coleção de 225 pinturas. Aberto ao público em 1862, conta hoje com mais de 3 milhões de obras sob sua guarda.
Durante o desenrolar do filme, nos deparamos com os mais variados personagens, quase sempre deslumbrados e imersos diante das suntuosas peças expostas na antiga residência da realeza russa. Eles estão lá, capturados, absorvidos por suas leituras particulares; envoltos pela aura – tipicamente benjaminiana – que emana de cada metro quadrado do lugar e dos objetos ali preservados. O “guia” que nos leva por 35 salas do Hermiatage é o marquês de Custine (Sergei Dontsov), diplomata francês do século XIX que viajou à Rússia e escreveu o célebre La Russie en 1839, uma crítica severa ao governo autocrático do czar Nicolau I. Custine, com seu jeito meio ranzinza, é a representação do olhar estrangeiro, que perambula na busca por interpretar e aproximar aquilo que lhe é distante.
Para responder como seria viver dentro de um lugar tão importante e significativo não apenas para a Rússia, mas para todo o mundo, Sokurov nos posiciona junto ao rabugento marquês e a um observador atemporal (Leonid Mozgovoy) para então dar vida a personagens históricos que passaram a habitar aqueles aposentos apenas em forma de tinta e mármore.
Já o segundo filme se passa durante o início da ocupação nazista na França, em 1940. Encomendado pelo Louvre, tem o mesmo como protagonista. Com foco em duas personalidades reais, o então diretor do Louvre Jacques Jaujard (Louis-Do de Lencquesaing) e o curador e historiador de arte alemão, Franz Wolff-Matternich (Benjamin Utzerath), a obra busca debater, entre outras coisas, a relação da Rússia com o restante da Europa e o valor da arte comparado ao valor da vida, tudo isso enquanto um amargo e por vezes apagado Napoleão (Vincent Nemeth) dialoga com Marianne (Johanna Korthals), representação da República Francesa, em um passeio nos corredores da instituição.
Francofonia (2015), segundo o próprio diretor, não é sobre a História propriamente dita, mas sobre os seus sentimentos pessoais em relação a ela. Profunda admiração, horror e uma pitada de ironia. Está tudo lá, filmado e conservado pelas lentes do inquieto diretor.
Caso antigo
O museu é um elemento que está ligado à estética e à trajetória pessoal do cineasta mesmo antes destes dois títulos. Apaixonado por pintura, Sokurov defende que os cânones dessa arte deveriam ser os principais modelos para um filme. “Estritamente falando, a superfície da tela cinematográfica e da tela de pintura são uma mesma coisa”, disse certa vez. Em suas películas, não faltam referências a Rembrandt, Bruegel, Caspar David Friedrich, Van Gogh, entre outros. Os grandes pintores são pioneiros, desbravadores que abriram caminho para que a fotografia e o cinema pudessem existir. E foi visitando museus que ele pôde observar de perto alguns trabalhos que se transformariam em inspirações importantes para o seu desenvolvimento artístico.
Foi graças a um período que passou meditando intensamente sobre os quadros do Museu Boymans de Roterdã, enquanto acompanhava de perto a vida dos soldados da fronteira entre Tadjiquistão e Afeganistão, que aconteceu uma das grandes viradas da carreira de Alexander Sokurov. A partir daí o número de obras não-ficcionais começa a superar os de ficção, abrindo caminho para filmes mais intimistas e com abordagens estéticas e narrativas mais próximas de um diário como em O Sonho do Soldado (1995), Vozes Espirituais (1995) e Confissão (1998).
Maior e mais bem-sucedido exemplo dessa guinada é Elegia de uma Viagem (2001). O quadro Praça de Santa Maria e Igreja de Santa Maria em Utrecht, feito pelo neerlandês Pieter Saenredam em 1662, faz parte do acervo do Boymans e desempenha papel central no filme. Na última parte de sua busca por algo que está sempre oculto e incomunicável, a silhueta do diretor faz uma visita noturna aos recintos vazios do museu até se deparar com a pintura de Saenredam. Ali encontra finalmente o sentido da sua peregrinação por vilarejos abandonados e florestas congeladas, pendurado e emoldurado sob a luz incidental do luar.
Alguns anos antes, em 1996, quando o Hermitage quis mostrar ao mundo todo a riqueza e variedade artística de seu acervo, contratou Sokurov para que fosse seu porta-voz na empreitada e lhe deu liberdade para produzir um documentário que faria parte de uma série de produções cinematográficas sobre grandes pintores europeus. Dentre todos os artistas presentes nas paredes do luxuoso palacete que poderia escolher, o diretor causou surpresa ao optar pelo pintor francês Hubert Robert (1733-1808).
Bem-sucedido, Robert gozou de grande fama e popularidade em vida como pintor de paisagens e ruínas, na mesma linha de grandes mestres do estilo como Giovanni Paolo Panini e Piranesi, com os quais teve a oportunidade de conviver e trabalhar nos 12 anos que passou em Roma. No entanto, a passagem do tempo fez suas obras perderem espaço entre os críticos de arte contemporâneos. Mesmo assim, ele não passou despercebido pelo olhar sensível de Sokurov e foi promovido a “garoto-propaganda” do gigante estatal russo. O resultado desta encomenda foi Hubert Robert: Uma vida afortunada, obra exuberante e nada comercial, considerada por alguns como um manifesto teórico.
Em A Pedra (1992), o fantasma de Anton Tchekov (Leonid Mozgovoy) assombra a própria casa em Yalta, transformada em museu após sua morte. O escritor habita a própria memória, enquanto observa e dialoga com o jovem guarda que interage com a intimidade congelada nos objetos arranjados ao gosto de quando Tchekov ainda vivia.
Sokurov não acredita que a arte seja capaz de nos salvar, mas sim de nos proteger e de nos esconder. Tampouco é algo que nos é facilmente entregue, sendo necessário muito suor e talvez algumas lágrimas para criar. Para ele, a arte só pode ser obtida por um trabalho árduo da alma: “A história da alma do artista é uma história muito triste. Trata-se de um trabalho muito duro, às vezes desagradável. É um trabalho duro para todos nós”. As salas e corredores dos museus e casas-museus não só preservam o resultado destes esforços da alma como os colocam à nossa disposição, propiciando não só esconderijos eficazes em meio ao caos e confusão da vida cotidiana, mas também inspiração.
No fim, o que a paixão de Sokurov nos ensina de maneira indireta é que a experiência de visitar um museu pode ir muito além de obrigações conjugais ou dos rostos entediados dos estudantes imberbes, que torcem para voltarem logo para seus celulares enquanto alguém tenta lhes explicar a importância de um Portinari ou Di Cavalcanti.
Jocê Rodrigues é escritor, editor e jornalista.