Donnie Darko: o ‘super-herói’ que foi nosso amigo

Why are you wearing that stupid man suit? Donnie Darko por Luís Mendonça, em parceria com À Pala de Walsh.

por Luís Mendonça

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uma parceria com À Pala de Walsh

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Estávamos em plena pandemia quando um grupo de espirituosos decidiu afixar pela cidade de Paris uma série de cartazes dizendo: “Jour 170. I made a new friend. Real or Imaginary? Imaginary.” Num dos cartazes, vemos a personagem Donnie Darko e a sua namorada numa sala de cinema vazia onde se projecta — lembramo-nos bem — o clássico de culto The Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1981) de Sam Raimi. A namorada de Donnie não sabe mas há um terceiro elemento na sala, perto de si. Alguém envergando um estranho fato de coelho também assiste ao filme de terror. “Porque é que vestes esse estúpido fato de coelho?”, pergunta-lhe Donnie, já quando a namorada dormia, embalada pelo escuro da sala, ao que esse terceiro elemento responde: “Porque é que vestes esse estúpido fato de homem?” Esta é uma platônica história de amizade, vivida algures entre um sensaborão mundo real, demasiado real (very, very mad), da América dos eighties e um universo alucinado e imaginário onde é possível viajar no tempo e decifrar algumas incongruências da vida enquanto se contam minutos até ao Dia do Juízo Final.

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Donnie Darko (2001), de Richard Kelly

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A campanha francesa a favor das amizades imaginárias vinha mostrar como o sentido de catástrofe — bem presente nos tempos da adolescência — casa bem com o terror geral provocado por este confinamento. Voltamos todos para casa, fechamo-nos a sete chaves e, inevitavelmente, revemos aspectos da nossa vida. Vimo-nos obrigados a reganhar a amizade por nós mesmos. Mas também pelos outros. Escrevia Edgar Morin, do alto dos seus 99 anos, vivendo mais uma das várias crises que conheceu ao longo de quase um século de vida, que “o confinamento deve abrir-nos, sobretudo, ao essencial sobre a existência […]. Deve abrir-nos ao amor e à amizade que permitem nos realizarmos como indivíduos” (citação extraída de Cambiemos de Vía: Lecciones de la Pandemia, com colaboração de Sabah Abouessalam, Paidós, 2020).

Para encarar o futuro e realizar-se, Donnie teve a ajuda de um coelho apocalíptico, pós-pascal, vindo de um futuro incerto mas, a avaliar pelo nada estúpido mas tenebroso fato de coelho, pouco radiante. A tragédia real ou imaginária atravessa o filme e também toda a história, bem atribulada, do seu lançamento nas salas, que aconteceu pouco depois do ataque às Torres Gêmeas, em 11 de Setembro de 2001. O filme acabou por ser penalizado pela forma como a sua fantasia paracientífica, sobre viagens no tempo envolvendo a queda de um avião comercial, prenunciara o acontecimento mais traumático dos primeiros anos do novo milênio. O filme-ovni aterrara nas salas, mas pouca gente esteve lá para assistir aos seus prescientes enigmas. O filme que mais intimamente lia o seu tempo passava-se num tempo histórico relativamente distante — os anos 80 do “Bush pai” — mas vinha dizer que precisamente o tempo era um conceito relativo ou mesmo instável. Esta plasticidade temporal — que pode ser, mas será?, um produto da mente singular de Donnie — consagra uma história de amizade que se resume ao bom dito: “quem avisa, teu amigo é”.

A natureza da relação com o coelho gigante é, assim, complexa. É verdade que Donnie, face à pergunta da sua psicanalista — sobre a natureza, real ou imaginária, do novo amigo —, cometeu a inconfidência de levantar o véu sobre uma amizade secreta, incomunicável ou incompreensível para o comum dos mortais. Esta amizade incomum, no entanto, era descrita como sendo, lá está, “imaginária”. Desconfiamos de muita coisa neste filme, mas em nada essa desconfiança abala o nosso carinho, a nossa empatia profunda, sentida pela “crise” desta personagem com nome de super-herói. Será que o tal “homem-coelho” é real? Será que é um amigo ou, pelo contrário, representa uma ameaça ao bem-estar do nosso herói, Donnie Darko? Donnie surge-nos, como todos os adolescentes, desajustado, quer em casa, quer na escola. Parece sentir-se mal no seu estúpido fato de humano. Onde é que eu e porventura o leitor já vimos isto? Falo do meu caso: eu era adolescente quanto conheci Donnie e o “homem-coelho” Frank, embarquei no filme como quem entra numa nave espacial. Para onde nos leva ela? E Frank, que E. T. é este? O dizer popular serve-nos para, pelo menos, termos este “homem-coelho” como um potencial amigo — quem avisa… —, pois entra na vida de Donnie para lhe confiar a mais importante das mensagens: o mundo vai acabar. Aproveitem-se os 28 dias que faltam, porque o mundo, pelo menos tal como o conhecemos, conhecerá o seu término. Parece que é certo e, portanto, como dizem os mais tenros millenials, “é lidar”.

O dispositivo é clássico, remonta-nos ao pai-fundador da narrativa clássica, D. W. Griffith: o last-minute rescue associado a um deadline claramente enunciado. O tempo urge, só que o tempo da adolescência é de estagnação. O que pode um adolescente, por muito especial que seja, face àquilo que lhe surge ditado, como um facto incontornável, e que aponta para o fim de todas as coisas? É interessante ver como o produtor de Donnie Darko (2001) associou desde cedo o argumento, que o próprio confessa ter pouco compreendido, ao universo terra-a-terra, ainda que embebido em múltiplas crises de identidade mais ou menos latentes, de um realizador: John Hughes, dos cineastas mais adultos da Hollywood dos eighties e — em nada contraditório com essa maturidade, bem pelo contrário — alguém que tinha como assunto de eleição os school years. Numa entrevista recente, realizada a propósito dos vinte anos deste filme que viria a marcar toda uma geração, muito fruto de uma, duas… incontáveis edições DVD (foi no home cinema que o filme averbou mais dinheiro e gerou todo o culto), Adam Fields contou como “não pensou em Richard Kelly propriamente como o próximo John Hughes, mas [pensou que] ele tinha potencial para ser a sua própria versão disso, para ser Richard Kelly.” Algures nos anos 80, Richard Kelly ia beber em fontes chamadas John Hughes, mas também — outra inspiração muito justificadamente citada em abundância — David Lynch. O que trazia dos dois era a sensação de que, por muito estranhos que fossem os factos narrados, tudo o que havíamos visto e experienciado pertencia à ordem do absolutamente não-extraordinário. As personagens eram-nos familiares, sussurravam verdades secretamente próximas dos nossos próprios problemas, por exemplo, sobre uma muito sentida — pela minha geração? Talvez — falta de entendimento do mundo à minha/nossa volta.

É interessante aperceber-me que, ao contrário do que me lembro de ler, Richard Kelly não teria conhecimento da existência do clássico Harvey (1950) quando redigia o argumento de Donnie Darko. Nesse filme, que gozou de alguma popularidade mas que entretanto caiu num certo esquecimento, o protagonista interpretado por James Stewart padece de uma condição: o seu melhor amigo é um coelho falante, com quase dois metros de altura, que só ele vê e com quem só ele comunica. O mundo à volta, começando pelos membros da sua família, interrogam-se sobre a sanidade deste homem de bom coração, “amigo do seu amigo”. Ao contrário do filme de Kelly, nunca chegamos a ver o dito coelho, sem ser representado, à la Dorian Gray, num quadro, em que aparece de calças, com um laço no pescoço e a pata colocada sobre o ombro do dito melhor amigo. O filme de Henry Koster, adaptado de uma peça de teatro, procura assinalar uma incongruência assaz provocadora: se a personagem de Stewart parece ter ensandecido e inspira gozo, a sua bonomia é contagiante, super-poderosa. É este traço de personalidade que acaba por conformar os mais cépticos, acabando estes por ceder tão intensamente “à farsa” que acabam por acreditar que, sim: Harvey existe. Eles — começando pela desesperada irmã (divertidíssima interpretação que valeu o Oscar a Josephine Hull) — acreditam ainda que não acreditem, o que me parece ser a máxima expressão possível de um sentimento de solidariedade e terna cumplicidade. Darko, menos expansivo e bonacheirão, e o seu coelho, muito mais interrogador e sorumbático, não se fiará na boa índole da sua comunidade. Não tem, de facto, razões para se fiar nela. Dito de outra forma: como num filme de Robert Altman ou John Sayles, a comunidade é toda uma grande armadilha em Donnie Darko.

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Harvey (1950), de Henry Koster

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Faço um parêntesis para formular uma questão: é possível estabelecermos uma relação de amizade com um filme? Pode um filme, num dado momento da nossa vida, ser como um melhor amigo e abraçar-nos? Com efeito, há filmes que marcam gerações, que têm um efeito congregador, concentrando em si múltiplas inquietações, mas não sei se há muitos títulos como Donnie Darko. Num artigo recente, um crítico da publicação Little White Lies, Greg Evans, contava como este filme “mudou a sua vida”: “Muitas das personagens pareciam ter mais ou menos a mesma idade que eu e estavam a passar pelos mesmos problemas que todos os adolescentes experienciam. Comparando com outros filmes sci-fi, estes não eram heróis confiantes, exibindo roupas estilosas e cortes de cabelo chamativos. Eles eram problemáticos, por vezes antipáticos mas sempre humanos.” Revejo-me muito nesta sensação de, como dizia o grande crítico francês Serge Daney, ter sido visto ou visitado pelo filme mais do que o contrário. Daney, na entrevista concedida ao filósofo Régis Debray, para o filme Serge Daney: Itinéraire d’un ‘ciné-fils’ (1992), confidenciava a propósito do western de Howard Hawks, Rio Bravo (no Brasil, Onde Começa o Inferno –1959), o seguinte: “Foi o primeiro filme sobre o qual escrevi e permaneceu um filme essencial em toda a minha vida. É um filme sobre o qual podia falar durante horas porque o filme acompanhou-me. Aqui está um filme que me viu, que me viu tal como eu era, eu, um adolescente, e que sabia imenso sobre mim mesmo, mais do que eu pensava saber.” Intuí qualquer coisa parecida quando me deparei com as personagens de Donnie Darko.

Revejo o filme e, de certa forma, identifico-me tanto com a personagem interpretada por um magnífico, pese embora debutante, Jake Gyllenhaal, como com algumas das figuras pertencentes ao mundo dos adultos, tal como o casal de professores da escola, interpretado por Noah Wyle e Drew Barrymore (à época, o nome mais sonante do elenco). Eles são uma versão desencantada do Donnie do futuro, tentando sobreviver numa sociedade carcomida pela ignorância, a hipocrisia e o fanatismo, que aqui é personificado menos pela patética personagem — mais um desses messias da auto-ajuda que andam por aí — interpretada brilhantemente por Patrick Swayze do que pelos seus seguidores, cuja cegueira ideológica haveria de continuar a produzir várias monstruosidades no tecido social e mediático americano (e não só). Também sou puxado para a presença luminosa, tocante na sua serenidade e discrição, da mãe de Donnie, encarnada por Mary McDonnell. Tenho a sensação que é uma dessas protagonistas escondidas de Donnie Darko, uma personagem que parece saber mais do que diz ou do que o filme evidencia. Outro exemplo dessas personagens é a introvertida Cherita Chen, que não se percebe bem se sabe mais, muito mais, do que aparenta ou tem apenas um crush (confuso, atormentado, como todos os adolescentes) por Donnie.

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Donnie Darko (2001), de Richard Kelly

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Não me parece excessivo afirmar que foi também por causa de Donnie Darko que os Joy Divison passaram a ser mais do que a banda oficial dos meus teen years; mais que isso, representaram uma porta de entrada de um certo spleen tão ou mais “anos zero” do que efectivamente anos 80 — quiçá tenha tomado balanço aqui um sentimento redentor e de nostalgia por essa década que nos viu nascer. Enfim, não falamos aqui somente de um filme, mas quase de um ovni cultural.

Fundamentalmente regresso a este filme para voltar a ver-me quando tinha aquela idade. O eu de hoje visitando o eu de então, tormentoso e também com uma vontade incontida de fazer a diferença, de ter metade daquela coragem, daquela sagacidade e audácia de ser gentil mas não deixar de afrontar o sistema. Donnie Darko foi o meu super-herói. Não tinha de facto super-poderes vistosos. Na realidade, o seu super-poder podia advir de uma espécie de maldição: não sabemos se era da perturbação psíquica ou da medicação que tomava para a combater, isto é, se era do veneno ou da cura, mas ele parecia estar à frente, acedendo a visões poderosas sobre um porvir qualquer; via mais além, ainda que tal poder não lhe permitisse fazer ou mudar grande coisa. Percebemos no final que talvez esse poder tenha sido muito conscientemente usado para salvar uma vida e que, ao mesmo tempo, Donnie Darko é também uma história sobre a descoberta do amor. O primeiro. O único.

Richard Kelly, quo vadis? A pergunta é bem legítima, na medida em que o realizador se tornou tão como um cometa quanto o clássico escondido que realizou com apenas 26 anos. Apareceu quase do nada (como o Donnie sonâmbulo, na abertura do filme, voltando para casa com The Killing Moon dos Echo & The Bunnymen a rodar na memorável banda sonora), com um argumento difícil de compreender debaixo do braço. Sem qualquer experiência na realização, para lá de uma inacabada curta de escola, realizou um dos mais fundamentais títulos do cinema americano dos anos zero do novo milénio — não que seja uma obra-prima, entenda-se, trata-se, antes, de um filme muito bom que leu, radiografou, o seu tempo como poucos.

O trajeto de Donnie Darko nas salas foi absolutamente desastroso. Foi recebido com frieza pelo público do Festival de Sundance e só estreou comercialmente em sala por força da pressão exercida por vários entusiastas, entre ele um ainda desconhecido Christopher Nolan, que estreava na mesma altura outro puzzle temporal e mental chamado Memento (2000). Ora, com a obra seguinte, projeto muitíssimo ambicioso que é um compêndio de stardom dos “anos zero” (Dwayne “The Rock” Johnson, Sarah Michelle Gellar, Sean William Scott, Justin Timberlake), Southland Tales (2006), o estrondo foi ainda maior, porque as expectativas eram, desta feita, altíssimas. Nesta altura, já Kelly era considerado the next big thing, uma espécie de “novo Lynch” a quem só restava confirmar a sua inata genialidade. Infelizmente, Southland Tales foi um fracasso cuja recuperação crítica tem sido infinitamente mais lenta que a de Donnie Darko, pese embora os vários esforços de reabilitação desta obra maudite que é uma salganhada WTF de monstruosas proporções, que poderá encantar pela sua desfaçatez, pela sua estética decay e cartoony ou por não facilitar minimamente a nossa tarefa em descortinar qualquer nexo no que é mostrado. No entanto, apesar dos elogios que tem coleccionado, provenientes de alguns dos mais importantes críticos americanos da atualidade, tais como, logo aquando da sua desastrosa passagem por Cannes, Manohla Dargis e, um favorito meu, J. Hoberman, Southland Tales continua a não ser mais do que um interessante falhanço. Mas um falhanço que lamentamos por ter cortado as asas, cedo demais, a um talento puro.

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Southland Tales (2006), de Richard Kelly

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Um espectáculo circense multimédia que envereda por um género quase morto em Hollywood: a sátira. Podia ter sido o Dr. Strangelove (Dr. Estranhoamor, 1964, no Brasil,  Doutor Fantástico) da era do YouTube e dos reality shows? Podia… chegou perto disso, sobretudo nos minutos finais, em que alguma coisa ganha sentido extra. Southland Tales não descarta as equações temporais, neste caso ainda mais complexas, só que sem “homens-coelho”. No entanto, essas equações não sufocavam a experiência de Donnie Darko, porque este “nosso filme” vinha do passado para nos trazer uma essencial lição de storytelling, seguindo a boa ideia de que não há personagens sem algum condimento de mistério; de que, como se dizia em Blue Velvet (Veludo Azul, 1986), “o mundo é um lugar estranho” (“It’s a very, very mad world”, ouve-se no tema-hino do filme, da autoria de Gary Jules). Uma estranha familiaridade que se tornou só estranha, awkward, em Southland Tales e que passou a ser só acadêmica e algo desenxabida no último filme realizado por Richard Kelly, o drama sci-fi The Box (Presente de Morte, 2009; no Brasil, A Caixa). Ansiamos por um fulgurante comeback deste realizador que ousou fitar — e nos fez fitar — a adolescência e inscrever nela uma melancolia romântica e cool atravessada por uma certa vontade de desafiar as normas. Podemos esperar por esse regresso? Podemos, mas o melhor é, até lá, irmos revisitando o nosso filme, perdão, o nosso amigo apocalíptico.

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