Dunkirk, o épico da fragilidade

Christopher Nolan aborda a história com os olhos do presente. Para ele, como para Coppola, a guerra é loucura. A guerra não oferece nenhuma razão para quem vive e quem morre. Com Dunkirk, Nolan precisava tentar descobrir como isso funciona.

por Jeffis Carvalho

Para além do contexto histórico, da estratégia da guerra, ou da necessidade do resgate, o que emerge em Dunkirk, o épico de Christopher Nolan,  é a fragilidade humana.

Em 106 minutos enxutos e arrepiantes, somos espectadores e cúmplices de nossa vulnerabilidade. Não importa quão poderosa seja a máquina da guerra, quanto de tecnologia podemos inventar para guerrear; não importa tanto como vamos obter a vitória diante do inimigo – que no filme nem é nomeado -,  o que resta é a possibilidade de sobrevivência, o que torna incontestável o fato de que a vitória suprema é que fomos, então, capazes de transcender a nossa própria vulnerabilidade. Mas essa luta insana para vencer a fragilidade, feita de determinação e desespero,  de racionalidade e loucura, não é suficiente. No final de tudo, muito da sobrevivência em momentos de perigo total, de vulnerabilidade absoluta se dá mesmo de forma aleatória. Sim, devemos fazer a nossa parte e lutar, mas dependemos muito do que chamamos de  sorte. Constatar isso no cinema é como levar um soco no estômago e agradecer pela dor.

Logo de saída, no filme, estamos em uma rua da cidade de Dunquerque, no litoral norte da França, em 1940. Acompanhamos meia dúzia de soldados que correm em direção a alguma forma de abrigo. Ouve-se o barulho de artilharia e um a um vai sendo abatido a tiro. Dois conseguem chegar a uma cerca. Um deles é atingido agarrado a ela e o último consegue pular para o outro lado. Segue a sua corrida debaixo de fogo e finalmente ele chega ao seu destino: a praia, com milhares de soldados organizados em blocos, à espera de um milagre chamado resgate. O soldado sobrevivente é o  adolescente Tommy (Fionn Whitehead), que a partir desse momento vai continuamente testar a sua sorte na luta para sobreviver. Nolan faz de Tommy a encarnação da fragilidade humana, que toma forma em seu corpo.

No plano  aberto da praia se vê um píer para embarque dos soldados. Um letreiro informa: O Molhe. Uma semana.

Duas sequências depois, estamos no cais pesqueiro no litoral britânico. Ali, depois de ter seu barco requisitado pela Marinha real, o sr. Dawson (Mark Rylance) decide ele mesmo se lançar ao mar rumo a Dunquerque. Ele é acompanhado por dois adolescentes – um deles, seu filho. Plano aberto do barco no mar. Um letreiro informa: O mar. Um dia.

Na sequência, surgem no céu dois aviões britânicos de combate que logo entram em confronto com o inimigo. Em um deles está o piloto Farrier (Tom Hardy). Aqui temos o primeiro combate aéreo. Um  letreiro informa: O ar. Uma hora.

Espaço e tempo. O que é cinema se não a imagem em movimento no espaço e tempo?  É do próprio DNA cinematográfico que Christopher Nolan, o mais cerebral dos autores do cinema atual, extrai a sua narrativa para, além de nos contar uma história, nos arrebatar  emocionalmente. Consegue isso porque nos coloca como testemunhas em cada espaço e faz da simultaneidade de tempos diferentes o meio para nos envolver no tempo de cada personagem – arquetípicos em sua humanidade. Espaço e tempo emocionais.

Com uma visão contemporânea da guerra – e, mais do que isso, do cinema de guerra – Nolan se vale das lições dos grandes mestres do passado. Do homérico John Ford, ele retoma a ideia trágica do sacrifício de soldados, em nome de conquistas futuras, expressa em Fomos os Sacrificados (They Were Expendable, 1945). Do contundente Samuel Fuller, a lição de que no cinema nunca se deve cessar o combate, “quando alguém é atingido. Se um homem cai, continue. O que se pode fazer?”. Ou seja, cinematograficamente, entrega física e luta. Espaço e tempo.

Ao mesmo tempo, o diretor aborda a história com os olhos do presente. Para ele, como para Coppola, a guerra é loucura. A guerra não oferece nenhuma razão para quem vive e quem morre. Com Dunkirk, Christopher Nolan precisava tentar descobrir como isso funciona. Por isso,  além de dirigir o filme, ele também escreve o roteiro. E como sempre faz em sua obra (Amnésia, A Origem) conduz a narrativa com sua preocupação habitual com o “deslizamento de tempo”. Assim, o filme oferece três histórias / experiências entrelaçadas da evacuação, conferindo-lhe uma dimensão mítica, como talvez faria Ford. E temos, então, uma odisseia de uma semana por um soldado; uma viagem de um dia por barco civil que faz parte da flotilha de resgate; e um vôo de uma hora por um piloto de da RAF que oferece ajuda aos 350 mil soldados encalhados nas praias. Tudo isso emoldurado pelo realismo mais contundente – soldados sujos, molhados, às vezes insanos, muitas vezes resignados, como talvez Fuller encenaria.

Em sua mis-en-scene, Nolan se vale de todo apuro técnico que o cinema atual permite, mas é  extremamente econômico nos efeitos computadorizados. Na contramão do cinema de efeitos especiais, trabalha a essência do cinema, a fotografia e a  montagem. Para obter a matéria fílmica para isso, a fotografia do filme produz sequências de grande beleza e, ao mesmo tempo, de intensa fragilidade do próprio recurso. Na montagem, Nolan evita cortes paralelos mais tradicionais e, assim, o filme leva o espectador para frente e para trás entre histórias – todas elas de pequena escala. Às vezes, o diretor faz isso com grande rapidez. Se no primeiro momento a proposta de espaço/tempo pode confundir, logo os espectadores  encontram a plena compreensão e navegam nessa complexa estrutura. Contribui muito para isso a magistral trilha de Hans Zimmer (com certeza, seu melhor trabalho no cinema).  Em perfeito entendimento da intenção do diretor,  Zimmer abandona a melodia a favor de aumentar a tensão e cria uma banda sonora quase exclusivamente feita de “música em forma de artilharia”. E, quando nos dois momentos cruciais da narrativa, em que a emoção transborda e arremata a plateia, ele se vale do grande nome do romantismo inglês – sir Edward Elgar – e suas Variações Enigma – aa Variation 15, elaborada pelo jovem compositor Benjamin Wallfish – a partir da variação n.9, denominada Nimrod. Atualmente, essa variação de Elgar isoladamente é executada no Reino Unido em momentos de grande comoção.

A decisão de Nolan de não atribuir um formato para a ação e outro para os interlúdios dramáticos permite que o filme sustente uma intensidade de desespero e  horror do início ao fim. E é a fragilidade que  aproxima uns dos outros. Segundo o grande roteirista Jean-Claude Carrière, sem fragilidade, não há ação, amor ou emoção. Toda forma de expressão – cinema, teatro, ou literatura – está calcada na fragilidade, na vulnerabilidade. “Eu não poderia amar a mulher de ferro de Metrópolis”, diz Carrière. “Com Shakespeare, Dostoievski, Corneille, Chateaubriand, Balzac e Proust, entre outros, aprendi aquilo que sem dúvida já sabia: um personagem não pode nos tocar a não ser que nós encontremos nele o que chamamos de vulnerabilidade”, completa. Em Dunkirk, Nolan parece não só ter entendido essa lição como vai além. Faz da própria fragilidade a grande personagem do filme.

Para o historiador Michael Korda, a precisão do filme se deve à exposição mínima de Nolan e à falta de um protagonista clássico ou central ou  história de ficção. “Você obtém a experiência de Dunkirk sem a artificialidade das cenas nas quais você vê Winston Churchill conversando com o general Ismay. Não há nenhum dos clichês habituais de filmes de guerra aqui”, diz ele.

Desse modo, da estrutura em camadas de sua narrativa à natureza tátil da abordagem de Nolan, Dunkirk nunca permite que seus personagens se sintam seguros. E, claro, por consequência, a plateia vive 106 minutos de permanente suspense. Mas o que poderia ser apenas um recurso narrativo de arrebatamento, se revela uma opção estética para traduzir a complexidade da guerra. Ela, a guerra, é mesmo um espaço em que a fragilidade dos homens vem à tona e, submetida ao inexorável acaso, nos mostra que o maior de todos os heroísmos é mesmo sobreviver.

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