‘Elle’: um petardo na sensibilidade comum

No ponto de virada possível da narrativa de Elle, se é que se pode dizer que há um, vê-se a pragmática empresária Michéle Leblanc dirigindo seu SUV por uma estrada.

por Jeffis Carvalho

Isabelle Huppert em cena de “Elle”, de Paul Verhoeven (Foto: divulgação)

No ponto de virada possível da narrativa de Elle, se é que se pode dizer que há um, vê-se a pragmática empresária Michéle Leblanc dirigindo seu SUV por uma estrada. Ela acabou de deixar a prisão em que seu pai – um assassino em massa, condenado à prisão perpétua – acaba de cometer suicídio. Ela dirige ao som de uma ária. Não qualquer ária, mas “Der welcher wandert diese Straße voll beschwerden”, da ópera A Flauta Mágica, de Mozart. O verso diz tudo sobre o ponto de virada da história, em tradução livre, “O que viaja nesta estrada cheia de queixas”. Até aquele momento, tudo que Michéle Leblanc (magistralmente interpretada por Isabelle Hupert) não faz é se queixar. Pelo contrário, ela sofre um estupro na cena de abertura do filme e, em vez de se comportar como mais uma vítima de violência, levanta-se, limpa o sangue de sua vagina e, na cena seguinte, está sentada em sua cama, pedindo um combinado de sushi ao delivery.

Desde o início, o filme se apresenta como uma obra de enfrentamento: do politicamente correto às soluções óbvias de roteiro, da martirização da mulher à crítica feminista, da solenidade e da mão pesada na direção à ação desenfreada. Com Elle, Paul Verhoeven cria mais do que uma série de polêmicas. O cineasta holandês, que assinou títulos de grande sucesso no cinema americano dos anos 90, como Instinto Selvagem e Robocop, não quer só incomodar. Ele quer nos provocar para nos fazer pensar. E consegue. Ousado, faz isso com momentos de leveza, quase com humor, no limite da provocação irônica, sarcástica.

Verhoeven põe em prática a lição do mestre dinamarquês Carl T. Dreyer, que nos ensina, desde o cinema mudo, que não existe nada mais fantástico para se filmar do que o rosto humano. E que rosto temos em Elle: la Huppert, sem exageros, talvez uma das três maiores atrizes do mundo. A câmera filma seu rosto e nele percebemos todo o subtexto, que dá ao leitor, em imagens, a força, a vulnerabilidade, as contradições e toda uma gama de emoções de Michéle Leblanc. Seu rosto na maternidade, no momento em que constata que seu  neto recém-nascido não pode ser filho de seu filho, pois só poderia ser filho de um negro é, ao mesmo tempo, crítico, aliviado,  irônico, até mesmo debochado mas, principalmente, decepcionado. Tudo isso em único plano e uma frase de comentário. Que atriz consegue isso em uma única tomada?

A grande polêmica de Elle, claro, é o estupro sofrido por Michele. Mas, quando se olha para o filme sem os cânones impostos por nossa contemporaneidade ávida pela correção política, o que se vê é que Verhoeven não está interessado em discutir a violência contra a mulher, ou a opressão masculina. O que ele pretende é nos conduzir por meandros insondáveis de nossos desejos, recalques, ressentimentos, prazeres e dores. Mas não só isso: ele nos leva por essa estrada de queixas (como na ária de Mozart) com uma estética da leveza. Mais ainda: uma estética da normalidade. Não há pirotecnia, nem cortes abruptos, nem travellings desnecessários e decorativos. E aí está a força de Elle. A genialidade de Verhoeven está em não se deixar perceber, não sentimos a sua direção. O resultado é que Elle não é para qualquer espectador. O cineasta quer a nossa cumplicidade, claro, mas pelo pensamento, não pela catarse.

Em entrevista concedida para a IndieWire, à época do lançamento do filme nos Estados Unidos, Verhoeven afirmou que Huppert traz antenticidade para o filme, pois aborda Michele pela inteligência, mais do que pela emoção. “Aqui está ela, uma mulher extremamente talentosa. Qualquer estrada estranha que esse personagem percorra – você pode não simpatizar com ela, pode não a seguir exatamente, mas você acredita que esta pessoa é capaz e está disposta a seguir por esse caminho. Quando ela descobre quem é o estuprador, o terceiro ato seria, normalmente do ponto de vista americano do cinema, a vingança”. Mas ela “não está procurando vingança”. “Ela segue suas próprias idéias. Ela não quer aceitar códigos sociais ou correção política. Ela, esta pessoa específica – e isto não quer dizer que cada mulher ou cada homem reagiria desta maneira, e Hupppert chegou a chamá-lo de um conto de fadas – é uma mulher que se recusa a ser vítima. E você percebe passo a passo o que é esta mulher específica”.

A leveza com que essa complexidade é apresentada no filme se deve, em parte, a  uma opção de filmagem: Verhoeven gravou o filme inteiro com duas câmeras de mão. “Você faz isso com alguém em que pode confiar em fazer a segunda câmera”, disse o diretor. A fotografia ficou a cargo de Stephane Fontaine, que também filmou  Jackie, de Pablo Larraín, outro esperado filme com um forte personagem feminino, Jackie Kennedy.  “Não é como se você fosse a câmera principal e a outra fosse B. Existem duas câmeras A. Foi filmado dessa maneira. Ele acelera, o que é bom para o orçamento, mas o mais importante é obter mais informações”. Aqui, Verhoeven se vale das lições de outro mestre do cinema: Jean Renoir e sua obra-prima, “A Regra do Jogo” (1939).  No clássico de Renoir “tem tragédia e comédia e até mesmo alguma comédia absurda”, disse Verhoeven. “Esses três elementos estão mudando constantemente no filme. O que fizemos com Elle foi nessa direção. Eu tinha ‘A Regra do Jogo’ na minha cabeça ao fazer este filme”.

À leveza de Renoir e sua câmera em constante movimento, Verhoeven adiciona um toque hitchcockiano, afinal, a história que conta envolve doses de suspense. E Elle se revela também um thriller psicológico – ainda que não apele para explicações psicanalíticas reducionistas.  Para isso, o score do filme é essencial e a compositora britânica Anne Dudley trabalha sob inspiração do grande Bernard Herrmann das trilhas de Hitchcock, principalmente a música magnífica dos temas de amor de “Vertigo – Um corpo que cai” e “Intriga Internacional”.

É na linguagem mais pura do cinema, aquela que se expressa pela imagem, pelo encadeamento poético ou contundente dos planos, que Verhoeven compõe esse mergulho na normalidade cotidiana para dela extrair a sua provocação. De um lado, o diretor recorre, por exemplo, a metáforas explícitas, sem ser óbvio, como o da dos games produzidos pela empresa de Michele. No jogo dentro do filme, a computação gráfica ilustra a violência do estupro, conferindo ao estuprador o papel que lhe cabe, isto é, o de monstro.  De outro lado, o cineasta elabora sofisticadas metáforas visuais, como a belíssima e poética sequência em que a protagonista e seu algoz tentam fechar as várias janelas da sua casa, enfrentando o vento intensamente forte que faz portas e vidraças baterem. Um momento do qual não se pede explicação alguma – e nem caberia.

Quando Michele, ou Elle, está naquela estrada ouvindo a ária de Mozart, um cervo surge em sua frente e ela freia o carro, perde a direção e bate em uma árvore. Com a perna sangrando e sem conseguir abrir as portas do veículo, Michele pede socorro pelo celular. Primeiro tenta chamar o filho, a sócia e melhor amiga, o ex-marido. Ninguém virá ajudá-la. Quer dizer, ninguém esperado. Momentos antes, a ária de A Flauta Mágica nos provocava sobre o que viaja nesta estrada cheia de queixas. Percebemos, então, que Verhoeven pretende nos conduzir pelos meandros da emoção humana, entendendo que vivemos, sempre, com a marca do anjo e do demônio presente em nossa alma – às vezes somos a vítima, às vezes somos o carrasco, e não sabemos nunca o que pode ser mais abominável nessa estrada cheia de queixas.

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