por Miguel Forlin
No começo de O Irlandês, a câmera parte de uma região escura, em que nada é muito claro. Posteriormente, ela percorre os corredores iluminados do asilo onde se encontra o protagonista, Frank Sheeran (Robert De Niro). Frank é visto, pela primeira vez, de costas, e antes que o seu rosto envelhecido seja descoberto pelo público, é o seu anel, que o liga à alta hierarquia da máfia italiana, que a câmera destaca. Nessa economia de meios, Scorsese delineia toda a estrutura do seu novo longa: da confusão dos anos (a escuridão disforme) às ladeiras da memória (os corredores do asilo); das vestimentas e máscaras sociais (o anel) ao homem, à essência que o passar dos anos pode revelar, como escamas que talvez deem lugar à verdadeira pele.
Claramente, nada disso é perceptível no início ou sequer na primeira hora e meia. O começo da narrativa mostra, retrospectivamente, o passado de Frank na guerra, o envolvimento com alguns membros da máfia, a formação de uma forte amizade com Russell Bufalino (Joe Pesci) e a sua total integração no meio (é só no momento em que diz que tudo mudou que a música tema, composta especialmente para a personagem, toca). Frank é um soldado e, como tal, vive à espera de ordens, de missões que lhe são dadas por aqueles que estão acima na hierarquia do crime organizado, como é o caso de Russell, ou por aqueles que estão em cargos superiores, como Jimmy Hoffa (Al Pacino), o presidente do sindicato do qual ele é um membro (Frank diz que, na primeira conversa ao telefone com Jimmy, sentiu que estava falando com o General Patton).
A sua existência é uma alternância entre os serviços que presta a esses dois homens. Por consequência, os seus dias são o acúmulo de incumbências sobre as quais ele não tem opinião ou poder de decisão, uma vez que enxerga os seus atos como obrigações que são impostas, numa espécie de fatalismo cósmico inescapável e que parece acometer todos que participam daquele universo, o que os letreiros informando a data das mortes e a maneira como morreram parece confirmar toda vez que surgem. Pouco se sabe sobre Frank. Ele parece não questionar as ações que testemunha nem o que lhe é pedido. A sua consciência e suas inquietações intelectuais se resumem ao papel social que exerce, tornando o seu cotidiano uma sucessão aparentemente imparável de episódios relacionados, sucessão, aliás, fortemente ressaltada e transmitida pela montagem através de um ritmo dinâmico e urgente.
No entanto, se não pelas personagens principais, é a partir de mecanismos cinematográficos que a história, os acontecimentos e aquelas pessoas são postos no banco dos réus. O primeiro desses mecanismos é a maneira como todas as linhas convergem para uma única sequência: a da morte de Jimmy Hoffa. O que antecede é uma longa preparação para o instante crucial e o que sucede, o eco do tiro fatal, que reverbera no futuro de todos os envolvidos (nos angustiantes minutos anteriores à execução de Hoffa, Scorsese mostra, mais de uma vez, uma encruzilhada). O assassinato de Jimmy deflagra a profundidade da corrupção moral de Frank, que, em nome da amizade que mantém com Russell, cuja perniciosidade ele toma por lealdade, trai o amigo tirando-lhe a vida covardemente.
Desse momento em diante, a narrativa desacelera e, numa queda cinematograficamente precisa de vivacidade e dinamismo, caminha a passos lentos em direção a um fim conscientemente anticlimático, caracterizado pela decrepitude, pela passagem do tempo (numa escala histórica, pois vai além da vida íntima das personagens) e pelo vislumbre de uma redenção, assinalada na conversa que Frank tem com um padre, quando se refere a um telefonema, sem deixar claro se é a ligação que fez à esposa de Jimmy dias após o seu falecimento ou se é a ligação na qual ele diria que foi o sujeito que o matou, apesar de ambas apontarem para um possível arrependimento, ou, ao menos, para um sentimento de vergonha em relação ao passado. A própria viagem que Frank e Russell fazem com as suas esposas remete à ideia de travessia, de que estão indo de um ponto a outro, relembrando do passado ao mesmo tempo que se direcionam a um horizonte cuja única certeza é a morte.
Já o segundo dos mecanismos empregados por Scorsese é a presença de Peggy, personagem discreta que assiste a tudo passivamente e, sem emitir comentários, faz dos seus olhos e silêncios os julgadores morais do que acompanhamos. Ela é uma das lupas que revelam a hipocrisia dos gestos carinhosos, das amizades interesseiras (que sempre se confundem com negócios) e da falsidade dos costumes. Numa das cenas que se passa na igreja, por exemplo, é a sua perspectiva inocente de criança, acompanhada pelo trabalho de câmera que nos mostra o que ela está vendo, que revela a presença perturbadora dos parceiros do seu pai naquele ambiente sagrado e religioso.
Porém, é ao ter associado o seu ponto de vista ao vão de uma porta entreaberta, na noite em que vê o pai saindo de casa misteriosamente, que a posição de juíza exercida pela personagem realmente se estabelece narrativamente. Em diversas cenas cruciais, as portas estão presentes. Quando Peggy descobre a violência de que Frank é capaz, o sujeito por ele ferido, na tentativa atrapalhada de fugir, quebra a porta de vidro da mercearia da qual é dono; segundos antes de ser alvejado, Hoffa se direciona à porta que o levaria à rua caso tivesse permanecido vivo; e no trajeto que Russell, segundo a narração em off do protagonista, faz da prisão à igreja, da igreja ao hospital e do hospital ao cemitério, há um corte exatamente no instante anterior ao cruzamento de um dos portões.
Em todas essas situações, a associação é negativa, simbolizando ora a violência e a morte, ora a negação de um passamento, de uma transcendência, já que, embora tenha um jeito calmo e uma aparência amigável, Russell é o maior de todos os vilões, ele é o que, na posição privilegiada de mentor e amigo, aponta os caminhos da perdição ao protagonista, dando ainda o apoio para que permaneça na mesma via e rota. Todavia, em outras oportunidades, a associação é positiva, como a porta parcialmente aberta separando os quartos em que dormem Jimmy e Frank (sinal de confiança, cumplicidade) e, principalmente, a que fica entreaberta no plano final.
Essa é, por sinal, justamente a ocasião em que o caráter de julgamento é reforçado, pois a porta entreaberta, no contexto católico em que ocorre? os diálogos travados entre Frank e o padre sobre arrependimento e salvação ?, pode simbolizar uma espécie de purgatório, ou seja, nem totalmente aberta, nem totalmente fechada. Essa leitura que não só encontra amparo no contraste com uma das simbolizações negativas mencionada acima, como também no exame de consciência feito por Frank no fim da vida, exame que tem, como companheira imagética, o vão, o mesmo conectado anteriormente à perspectiva de Peggy (dando ao silêncio desta quase um caráter sobrenatural, aproximando-a da temática do longa anterior de Scorsese).
Inclusive, O Irlandês é um filme inteiramente composto desses contrastes e associações. As associações são trabalhadas na forma de relações sutis de significados, como a retomada, no instante em que Jimmy conversa ao telefone na varanda da sua casa do lago, das características visuais e dos planos usados para relatar a morte de Joseph P. Kennedy, o que antecipa qual será o destino da sua personagem. Um outro exemplo é a rima entre a refeição que sela a amizade de Frank e Russell e a partilha do pão e do vinho na ceia derradeira. Os contrastes, por sua vez, se apresentem ou como opostos conflitantes (nascimento e morte, assassinatos e flores), ou como partes que operam uma em função da outra: a desaceleração do ritmo na hora final, sentida apenas em razão da urgência precedente.
Pontualmente, todos esses elementos ajudam a construir um épico no qual sempre parece ter algo a mais em jogo. Essa suspeita não é equivocada. Há três dimensões narrativas em O Irlandês: uma íntima e aparente, voltada ao universo dos acontecimentos e personagens; outra mais geral e sutil, voltada às transformações históricas dos EUA; e, finalmente, uma metalinguística e referencial, voltada aos filmes de máfia do próprio Scorsese e do gênero como um todo. O que as une é um sentimento de morte, de inevitabilidade, de fim: vidas que passam, um país que muda e um tipo de cinema que perece.
Entretanto, é a vida do protagonista, relembrada e refletida a partir de um ponto de humildade, que ocupa o centro das preocupações. Mais de uma vez, o Scorsese disse que só podia ter sido duas coisas: padre ou cineasta. Sabemos qual foi a sua escolha, mas, partindo, talvez, daquela retrospectiva proustiana que todos fazem quando estão mais próximos da morte que da juventude, ele revisita a sua ambiguidade vocacional e, no papel de padre confessor, ouve a confissão de seu protagonista através da ferramenta da qual dispôs a vida inteira: a câmera.
Isso acaba nos deixando com uma dúvida essencial, envolvendo, acima de tudo, a salvação de Frank. Embora o cinema seja empregado por Scorsese como um meio capaz de ultrapassar a superfície de fingimento e atingir o âmago do que é representado, ele não tem o poder de responder à pergunta que, ao tudo indica, é a que atormenta o diretor. Além disso, as complexidades morais do universo pintado não permitem conclusões definitivas acerca das personagens e situações, as coisas permanecem numa zona cinzenta, indefinida, na qual, inicialmente, a salvação pode ser apenas parcial.
Mas, enquanto há possibilidade, Scorsese opta por filmá-la. É com ela, aliás, que ele decide terminar a história. No seu cinema, em que a cosmovisão católica é preponderante, o vermelho, a cor do sangue, sempre esteve associado ao pecado, à violência e às paixões corrompedoras. No final deO Irlandês, quando, no corredor do asilo, a câmera faz um giro de 180 graus, surgem duas opções: uma porta com a palavra “Exit” escrita em vermelho e uma porta que dá para o quarto onde o protagonista reza junto com um padre. Em outras palavras, uma saída violenta ou um fim esperançoso. O cômodo no qual a câmera entra é aquele em que as personagens rezam.