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O Estado da Arte apresenta o Especial Cinema e Fascismo, com ensaios que analisam como seis cineastas abordaram o fascismo — seja como fenômeno histórico, como espírito do seu tempo, ou ainda como registro de sua identificação e influência. Os ensaios pretendem ver até que ponto seus “documentos históricos em cinema” oferecem uma ilustração evocativa e crítica do fascismo.
Trata-se de uma parceria do Estado da Arte com o projeto Bolsonarismo: Novo Fascismo Brasileiro, desenvolvido pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, o Labô.
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Duas Antígonas
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por Matheus Cartaxo, em uma parceria com a Foco – Revista de Cinema
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A peça Antígona começa com a notícia da morte de Etéocles e Polinices numa luta fratricida. No funeral, o rei Creonte concede ao primeiro todas as honras de um herói, as quais são negadas ao segundo, considerado um aliado das forças que pretendem invadir Tebas. Irmã dos mortos, Antígona desobedece às leis da cidade para fazer cumprir as leis dos deuses. Após enterrar Polinices, ela é condenada à morte.
Composta pelo grego Sófocles no século V A.C., a peça tem em seu cerne episódios provavelmente acontecidos mais de oito séculos antes. Representa, contudo, a eterna condição do homem, tensionado entre o pertencimento aos reinos da terra e dos céus.
O conflito de Antígona acontece na intercessão entre os planos horizontal e vertical da existência. Comparando duas adaptações cinematográficas da peça, notamos a opção dos diretores por enfatizar um ou outro eixo, ao mesmo tempo em que nos dão a ver a permanência do conflito nas circunstâncias históricas em que viveram.
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Na Radiotelevisione Italiana (RAI), o cineasta Vittorio Cottafavi realizou um projeto ousado: levar ao público dezenas de clássicos da literatura. De 1957 a 1985, ele adaptou autores tão diversos quanto Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Liev Tolstói, Molière, Fiódor Dostoiévski, Henrik Ibsen, Joseph Conrad, Cesare Pavese, Eugène Ionesco. Duas vezes adaptou Antígona: em 1958 e 1971. A primeira versão é um ponto alto da sua empreitada televisiva.
As filmagens foram antecedidas por uma dedicada preparação de Cottafavi, documentada nas suas Notas para a mise en scène de Antígona, publicadas em 1961 na mítica revista francesa Présence du cinéma. O texto revela a atenção conferida pelo cineasta a cada elemento do filme, de modo a dar vida à sua visão da peça.
A narrativa transcorre num único cenário: uma pequena ágora cercada por escadarias e altas colunas. O espaço é quase todo preenchido por linhas horizontais e verticais. Durante as cenas, os intérpretes alternam suas posições, sobem e descem degraus, ou se deslocam lateralmente, sendo seguidos pelos movimentos das câmeras.
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Geometrizando o espaço e a maneira de filmar o elenco, Cottafavi ressalta o trágico por trás dos fatos mostrados: as engrenagens que movem as peças no tabuleiro parecem ser reveladas, expostas. Assistimos a um cortejo fúnebre, que inicia com a morte dos dois irmãos e segue implacável até se alastrar por toda a cidade de Tebas.
No centro da liturgia está Antígona, interpretada por Valentina Fortunato, atriz italiana que não se projetou no cinema, mas cuja performance só encontra paralelo em Maria Falconetti em A paixão de Joana d’Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer. Em ambas, um corpo padece enquanto a alma decanta. Ao redor de Fortunato existe um halo de luz (“Antígona é um raio de sol”, diz Cottafavi). Constantemente mirando o alto com o olhar, a personagem parece a todo instante se aproximar de um mundo além do nosso.
Numa cena emblemática, a protagonista é escoltada por soldados que a conduzem à morte. Durante cerca de dez minutos, todos atravessam os corredores do palácio de Creonte e as ruas da cidade de Tebas, de cujos cidadãos Antígona se despede. Nas notas, lemos como Cottafavi imaginava o término desta Via Crúcis: “Antígona não vai contra a morte, ali ela se afunda, ela imerge como na água. Sua última imagem, portanto, deve afundar e desaparecer pela parte de baixo da tela”.
A descrição feita por Cottafavi condiz exatamente com o que vemos. Trata-se de um desses momentos de cinema em que todas as partes se combinam para atingir o máximo de expressão: a geometrização do espaço e os movimentos dos atores (Antígona desce uma escada), os soldados atrás (bloqueando a visão da profundidade de campo, restringindo as saídas), até a própria moldura do quadro (lembremos que o filme foi feito para a tela em miniatura da televisão). Acossada na ponta esquerda inferior, Antígona dá seus últimos passos antes de adentrar no Hades, o rio dos mortos.
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A filha de Édipo pronuncia as suas últimas palavras: “Lembrem-se da filha de seus reis, a última que resta, e do que e sob quem ela padecerá, por haver, piedosa, honrado a piedade.” Como todo o restante do filme, esse momento foi gravado em som direto, o que o torna ainda mais forte: preserva-se a textura da voz da atriz no momento de sua emissão, em consonância com o que corpo, braços e olhos também buscam exprimir.
Em 1958, na Itália, fazer um filme inteiro com som direto era uma verdadeira revolução.[1] Tanto no neorrealismo quanto nos estúdios da Cinecittà, optava-se quase sempre pela pós-sincronização de áudio, seja por questões estéticas ou visando a uma redução de custos. Era característica dos filmes, inclusive, serem compostos de um número maior de cenas silenciosas ou de ação, porque se evitavam diálogos.
Adaptar uma tragédia grega utilizando uma nova tecnologia de som e também de transmissão (a RAI TV fora fundada em 1954) significava produzir um curto-circuito entre a antiguidade e o presente, colocando em evidência a atualidade do texto, num momento em que países da Europa ainda viviam regimes autoritários ou, no caso da Itália, tentavam sair das sombras deixadas pelos ainda recentes tempos de guerra e de fascismo. As indicações de Cottafavi acerca da trilha sonora original de Gino Marinuzzi Jr. parecem resumir o projeto desta sua adaptação: “A música deve ser eletrônica. Para Sófocles, é preciso um som abstrato e puro, sem vibrações secundárias. Uma música além do tempo, clássica, mas com sons de um modernismo extremo”.
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Num instigante parentesco com a produção televisiva de Vittorio Cottafavi, a obra dos cineastas franceses Jean-Marie Straub e Danièle Huillet é composta quase inteiramente de adaptações de obras literárias. No panteão do casal estão autores como Pierre Corneille, Stéphane Mallarmé, Arnold Schönberg, Franz Kafka, Georges Bernanos, Pavese, Elio Vittorini, Marguerite Duras, Heinrich Böll.
Em 1991, adaptaram Antígona, mais exatamente a Antígona de Brecht, escrita em 1948 a partir da tradução de 1804 do poeta alemão Hölderlin do original de Sófocles. Straub e Huillet fazem questão de ressaltar a cronologia que vem desde a antiguidade grega até a contemporaneidade: no título original em alemão do filme, todos os autores aparecem mencionados (Die Antigone Des Sophokles Nach Der Hölderlinschen Übertragung Für Die Bühne Bearbeitet Von Brecht 1948 [Suhrkamp Verlag]).
A consciência da dupla de cineastas acerca das várias temporalidades que atravessam o texto da peça se desdobra na escolha da locação para as filmagens. Estamos no Teatro de Segesta, nome de uma cidade da Grécia Antiga, atualmente localizado na região da Sicília, na Itália. Trata-se de uma monumental construção do final do século III A.C.
Esculpido nas pedras do monte em cujo topo se encontra, o teatro tem capacidade para quatro mil pessoas. Durante o filme, a câmera, às vezes, é posicionada em direção às arquibancadas. Suas dezenas de fileiras assemelham-se a estratos geológicos, como se formasse uma vertiginosa imagem do Tempo a observar os atores no centro do palco.
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O curto-circuito temporal buscado por Cottafavi nos estúdios de Roma em 1958 é radicalizado em 1991 por Straub e Huillet.[2] Com a câmera voltada para a esquerda, vemos uma vasta paisagem na qual distinguimos uma rodovia e automóveis, símbolos de uma modernidade que contrastam com as ruínas milenares e os figurinos de época.
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O filme se instala radicalmente no presente. A escolha pela locação ao ar livre intensifica ainda mais esse conceito: o vento soprando onde quer, nas folhas das árvores, nos microfones, a configuração da luz que muda em função do movimento das nuvens no céu, os insetos que voam indisciplinados ou um lagarto que atravessa o fundo do quadro alheio à ação, todos os elementos deixam na obra as marcas de um “aqui e agora”.
Ao escrever Antígona em 1948, Bertold Brecht voltava para a Europa após seis anos de exílio passados nos Estados Unidos. O contexto é refletido no papel. Sua peça tem o acréscimo de um prólogo, que inicia com um cartaz no qual se lê: “Berlim, abril, 1945. Alvorada. Duas irmãs saem do refúgio antiaéreo e voltam para casa”.
Nas ruas, as duas irmãs sem nome veem o irmão, soldado da resistência, sendo torturado. Na iminência de ir salvá-lo, são interpeladas por um policial da Gestapo, que lhes pergunta se conhecem aquele homem. Uma das irmãs nega. Quando a outra está prestes a responder, a narrativa é interrompida, os atores saem de cena e retornam trajados como gregos para dar início ao enredo original da peça de Sófocles.
Straub e Huillet solucionaram a adaptação do prólogo colocando, na banda sonora dos créditos iniciais de Antígona, um trecho da Música para os banquetes do Rei Ubu, balé de Bernd Alois Zimmermann de 1968, que utiliza um fragmento da Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner, compositor do século XIX cujo antissemitismo e assimilação pelo nazismo são conhecidos. A peça de Wagner se popularizou no cinema com a sequência dos helicópteros de Apocalypse Now (1979), do Francis Ford Coppola. Tal como o prólogo brechtiano dava o tom do restante da peça, os créditos iniciais anunciam o que veremos a seguir: um filme de guerra (“Durante os ensaios de Antígona, George H. W. Bush se parecia cada vez mais com Creonte”, disse Straub em entrevista).
No centro do combate está Antígona, interpretada pela atriz e cineasta alemã Astrid Ofner. Enquanto Valentina Fortunato era uma presença fantasmagórica, evanescente, parecendo de certa forma resignada em relação a seu destino, Ofner faz uma Antígona física, marcial, com os dois pés fincados na terra. No seu último momento em cena, em vez de sair pela parte de baixo do quadro, em sentido vertical, ela vira a cabeça e o corpo, dá as costas e sai na horizontal, veloz, sem qualquer solenidade. Resta no quadro a areia, a árvore e as montanhas com as quais ela parecia se misturar.
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Nos seus gestos notamos o esforço em não mover braços, pernas e tronco, e a luta que trava para deixar o corpo estático, concentrando toda a energia na cabeça, principalmente no rosto. As expressões irrompem como a lava de um vulcão. A voz, sempre num tom elevado, sai rasgando a garganta.
Para um ator, é difícil dizer o texto dessa maneira, sem contar com o corpo para reverberá-lo. Em comparação, o intérprete de Creonte é quem goza de mais liberdade: o tom de sua voz se eleva, noutros momentos diminui; seus braços se movem, suas pernas também; ele se agacha, até mesmo corre, sorri. Contraposto às restrições determinadas para a intérprete de Antígona, o relativo conforto de que Creonte desfruta se converte na imagem do cinismo: é difícil olhá-lo sem sentir indignação.
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Aproximando-se do eixo vertical do conflito de Antígona, Vittorio Cottafavi adaptou-a como um ritual aos poucos invadido por forças transcendentes.
Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, por meio de Brecht, priorizaram o eixo horizontal que move a peça, encenando o texto com o rigor de uma sessão de tribunal.
Ao longo dos séculos, a contradição em que nós e Antígona nos encontramos achou uma expressão no símbolo da cruz. No entanto, como ambos os filmes nos mostram, as tensões e os conflitos não esmaeceram. Apenas mudaram as localidades e as guerras.
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11 de junho de 2020, Rio de Janeiro, Brasil. Na praia de Copacabana, cruzes de madeira são colocadas na areia em lembrança das vítimas da pandemia de Covid-19.
Um defensor do presidente Jair Bolsonaro as retira.
O pai de um dos mortos as coloca de volta no lugar.
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Notas:
[1] O pesquisador Rodrigo Carreiro afirma na tese Era uma vez no Spaguetti western: Estilo e narrativa na obra de Sergio Leone (2011) que o conceituado diretor italiano de Três homens em conflito (1966) apenas usou efetivamente o som direto na gravação do seu último filme, Era uma vez na América (1984), por insistência dos atores americanos Robert De Niro e James Woods.
[2] A segunda adaptação de Antígona por Vittorio Cottafavi, de 1971, guarda ainda mais semelhanças com o cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Cottafavi utiliza recursos inspirados no teatro épico brechtiano: filma nos templos de Paestum, na Itália, mas, já nos créditos iniciais, mostra o movimento de carros nos arredores; durante as cenas a cores, insere momentos em preto e branco; faz os atores dirigirem-se à câmera e também os filma no intervalo das gravações, à espera do momento de voltar à cena.
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