Especial Cinema e Fascismo: Censura, horror e subversão – a Espanha franquista pelo cinema de Pere Portabella

O Estado da Arte apresenta o Especial Cinema e Fascismo, com ensaios que analisam como alguns cineastas abordaram o fascismo – seja como fenômeno histórico, como espírito do seu tempo, ou ainda como registro de sua identificação e influência. Hoje, uma análise da Espanha franquista pelo cinema de Pere Portabella, por Daniel Dalpizzolo.

Estado da Arte apresenta o Especial Cinema e Fascismo, com ensaios que analisam como alguns cineastas abordaram o fascismo — seja como fenômeno histórico, como espírito do seu tempo, ou ainda como registro de sua identificação e influência.  Os ensaios pretendem ver até que ponto seus “documentos históricos em cinema” oferecem uma ilustração evocativa e crítica do fascismo.

Trata-se de uma parceria do Estado da Arte com o projeto Bolsonarismo: Novo Fascismo Brasileiro, desenvolvido pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, o Labô.

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Censura, horror e subversão: a Espanha franquista pelo cinema de Pere Portabella

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por Daniel Dalpizzolo

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Na cena de abertura do primeiro longa-metragem de Pere Portabella, Nocturno 29 (1968), a câmera acompanha um jovem casal passeando sobre uma montanha. A mulher se deita na relva enquanto o homem cuida de um ferimento na sola dos pés dela, de onde retira um pequeno espinho. Em seguida, a jovem começa a despir a roupa lentamente, revelando, para a câmera, as suas pernas e seios. Na faixa sonora, o estalido de um projetor de cinema em atividade acompanha continuamente o fluxo das imagens, reiterando ao espectador que estamos diante de um filme. Entretanto, não veremos um desfecho para essa ação. Logo que os jovens ficam nus e se envolvem em um abraço, a câmera afasta-se dos corpos e a película cinematográfica entra em processo de desfragmentação, até que a tela seja literalmente rasgada ao meio, insinuando que a sequência de fotogramas foi interrompida.

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Nocturno 29 (Reprodução)

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O ano é 1968 e a Espanha vivia sob o comando do general Francisco Franco, ditador fascista que governou o país durante 36 anos (1939-1975) e impôs um dos mais duros regimes de censura à arte, restringindo a liberdade criativa na produção cinematográfica espanhola. Parte do teor dessa proibição pode ser conhecida no terceiro longa de Portabella, Umbracle (1972), no qual são lidos artigos da lei que versam, entre outros temas, sobre as obrigações de escritores, poetas, músicos, roteiristas e cineastas de prestarem contas ao governo sobre cada palavra, som e imagem produzidos (antes mesmo de serem produzidos, quando ainda se tratavam de intenções do artista), os quais não poderiam conter manifestações contrárias aos valores políticos, sociais, morais, éticos e estéticos defendidos pelo governo.

Não significa dizer que Nocturno 29, na dissolução da película exposta em tela, tenha sido vítima direta da censura governamental. Originada em um círculo de artistas marginais de Barcelona, a obra de Pere Portabella nasce justamente da intenção do artista de confrontar os ideais totalitários do regime franquista e se manifestar sobre a sua censura à arte espanhola. Produzidos e exibidos por meios alternativos, materializando um olhar poético com o qual o diretor transforma a Espanha franquista num universo surrealista e fantástico, os filmes de Portabella fazem uso radical e metalinguístico da forma cinematográfica para dar vazão à sua crítica sobre a opressão vivida por artistas e pela sociedade espanhola — inclusive, após a derrocada de Franco, é importante lembrar, Portabella entra oficialmente para a política e contribui com o processo de transição da Espanha para o seu período democrático, elegendo-se senador e participando da criação da Constituição Espanhola de 1978, dando continuidade ao seu empenho como realizador dentro da própria esfera política.

O que a cena em questão prontamente revela é a habilidade de Portabella em expôr na tela os mecanismos do cinema, produzindo uma experiência estética autofágica, que desafia os limites da representação e revela as entranhas da própria imagem. Ao simular a desfragmentação da película e expor o som do projetor na diegese, o diretor imediatamente desfaz a ilusão de realismo na imagem cinematográfica, prerrogativa dos modelos narrativos tradicionais, e abre fogo contra algumas das principais armas do fascismo: o totalitarismo ideológico das imagens produzidas e exibidas sob a chancela do governo fascista, as quais pretendem sempre forjar e alimentar uma ideia de verdade absoluta; a publicidade e seus tirânicos mecanismos de persuasão; o uso indevido dessas imagens para manipular a opinião do cidadão médio, de quem o pensamento tende a ser menos emancipado (algo que testemunhamos com frequência alarmante na contemporaneidade, envenenada por desinformação em formato de fake news). Porém, uma imagem jamais é inocente, parece nos lembrar o diretor logo na primeira cena da obra, revelando toda uma carta de intenções do seu projeto estético.

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Nocturno 29 (Reprodução)

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O desejo por radicalizar a forma cinematográfica, convidando o espectador a conhecer e experimentar os seus artifícios, une os primeiros longas de Portabella, Nocturno 29, Cuadecuc Vampir (1970) e Umbracle — todos eles rodados nos últimos anos do governo Franco. É um convite para adentrar num cinema arriscado, subversivo, que mescla traços das artes surrealistas, expressionistas e construtivistas para erigir um universo passível de existir somente numa obra de arte. As imagens são registradas com uma fotografia preto e branca extremamente contrastada, evidenciando o grão da película e saturando os tons brancos e pretos — por vezes flertando com a abstração ao borrar traços e formas. Essa assinatura visual é essencial aos três longas dirigidos por Portabella no período, e não parece coincidência que a sua estética passe por alterações significativas nos anos da transição, quando filmaria dois ótimos documentários filiados às regras do cinema direto (o média El Sopar, em 1974, e o longa Informe Geral, em 1977, produzido imediatamente após a morte de Franco), demonstrando um interesse maior por suas personagens, pelo relato oral de suas experiências e ideais, dando voz a figuras que por muitos anos viveram silenciadas e ameaçadas.

Nocturno 29, Cuadecuc Vampir e Umbracle, pelo contrário, lidam diretamente com os limites da representação numa sociedade aterrorizada e controlada pelo fascismo. Em outra cena de Noturno 29, um homem de meia idade, vestindo o terno e a gravata remanescentes de seu dia de trabalho, senta-se em frente à televisão para acompanhar o noticiário. A tela exibe um rigoroso desfile militar, com toda a solenidade e carga simbólica contidas no ato. O desfecho da cena demonstra o apreço de Portabella pelo surrealismo do cineasta espanhol Luis Buñuel, de quem havia produzido um longa-metragem alguns anos antes (o polêmico Viridiana, de 1960, financiado por espanhóis e finalizado na França para escapar das artimanhas da censura franquista), soando como um trecho importado diretamente de Um Cão Andaluz (1929) ou A Idade do Ouro (1930): com as próprias mãos, o indivíduo lentamente extrai os dois olhos de sua face e os deposita ao lado da poltrona, um globo ocular depois do outro, impedindo que o seu olhar siga bombardeado pelas imagens exibidas.

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Cuadecuc Vampir (Reprodução)

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Passagens como essa, contendo sátiras diretas ou indiretas às ideologias do governo espanhol, são distribuídas pelos três longas, articuladas por meio de um estilo de montagem que o teórico e cineasta soviético Sergei Eisenstein define como montagem ideológica, ou montagem intelectual. Embora cada filme contenha um tema central que o oriente (a duvidosa moral burguesa em Noturno 29; a adaptação vampiresca de Drácula de Bram Stoker em Cuadecuc Vampir; a presença do ator Christopher Lee na cidade de Barcelona em Umbracle), as cenas não seguem uma estrutura tradicional de causa e efeito, sendo encadeadas por associações simbólicas ou livres, combinando imagens de origens diversas em busca de um novo efeito — como pequenas estrofes de uma poesia surrealista. As personagens transitam por diferentes cenários urbanos, de indústrias desativadas a escritórios e órgãos públicos, de parques a praças e ruas da cidade, de clubes a palcos de teatro e sets de cinema, enquanto a câmera captura em suas imagens a atmosfera de opressão vivenciada no país, construindo uma coleção de signos extremamente simbólica sobre o estado de espírito daquele tempo e espaço.

Nesse aspecto, o ponto mais representativo da obra de Portabella são os filmes realizados com Christopher Lee. Portabella aproveita a presença do ator na Espanha (onde rodava Conde Drácula (1970), versão dirigida por Jesús Franco da clássica história de Bram Stoker) para produzir não apenas um, mas dois grandes filmes: Cuadecuc Vampir, híbrido de filme ensaio e documentário que acompanha os sets de filmagem da produção de Franco, porém reconstituindo livremente a história original de Drácula com fragmentos “apropriados” por sua câmera nos bastidores do set, e Umbracle, filme cuja realização parte da presença dessa figura icônica da cinematografia de horror nas ruas de Barcelona. Àquela altura, Lee era um ídolo mundial do gênero por conta dos sucessos produzidos pela Hammer (participou de versões modernas para os principais monstros do cinema, como Drácula, a Múmia e Frankenstein). Um rosto estranho e monstruoso, um legítimo signo do horror confrontado pela própria representação da opressora realidade espanhola.

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Umbracle (Reprodução)

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Enquanto passeia pelas ruas de Barcelona, em Umbracle, Lee presencia agentes da ditadura abordando um homem que transitava pela calçada, conduzindo-o para dentro de um carro, para nunca mais ser visto. Em outro passeio pela cidade, mais adiante, volta a testemunhar conflitos entre agentes da lei e cidadãos comuns — mas as imagens observadas, dessa vez, são recortes de clássicos do humor da era silenciosa. Em uma esquina, avista Charles Chaplin fardado como policial, espancando um civil debochado com uma bengala; em outra, assiste a Buster Keaton ser arrastado pela polícia até o camburão após provocar confusões em um condomínio, onde praticava diversas peripécias para chamar a atenção da amada. O próprio Lee, na cena seguinte, envolve-se em uma confusão de trânsito com um pequeno cortejo de militares, fugindo enquanto anotam a placa do seu automóvel. Novamente, não veremos um real desfecho para a ação, mas a escolha da sequência que a sucede no encadeamento narrativo é suficientemente sugestiva: acompanhamos imagens de um abatedouro industrial onde centenas de galinhas, presas pelas pernas a uma grande máquina, são higienizadas, depenadas e fatiadas ao som da doce canção Close to You, dos Carpenters. “Why do birds suddenly appear / Everytime you are near? / Just like me, they long to be / Close to you”.

Confrontando e satirizando a censura vigente (que proibia a representação de violência policial nos filmes espanhóis), associações como essas permeiam toda a obra de Portabella. Mas o que é ainda mais notável no uso desses recursos é justamente como o diretor transita por diferentes formatos e registros cinematográficos, construindo com os seus filmes uma aventura formal que nos ajuda a perceber a potência ilimitada do cinema, essa grande máquina de produzir sonhos e materializar pesadelos.

Umbracle, assim como Noturno 29 e Cuadecuc Vampir, é composto por um extenso híbrido de registros. Não apenas o tradicional díptico ficção/documentário, mas ensaio, entrevista, poesia surrealista, pintura, sátira, colagens, tributos ao cinema mudo e sonoro, spots publicitários, metalinguagens e o os próprios bastidores da encenação (como quando Lee toma para si o controle da câmera, quebrando a quarta parede para cantar ópera e declamar um poema de Edgar Allan Poe), propondo uma experiência cuja pedra angular é, em suma, o livre exercício com a linguagem cinematográfica e as suas infinitas possibilidades de produção de sentido, transformando o desejo por liberdade em condição sine qua non. Expondo as entranhas do cinema para gerar novos filmes a partir delas, Portabella materializa a crítica ao fascismo e à censura incitando o desejo pela emancipação do olhar, convocando o espectador a tomar partido nessa causa e lançando-o em uma viagem sem volta pela pluralidade das formas cinematográficas.

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Cuadecuc Vampir (Reprodução)

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Nesse sentido, é inevitável pensar no cunho político por trás do vampirismo de Cuadecuc Vampir. Não somente pela óbvia presença em cena de um vampiro, representando as contradições do fascismo com seus homens corretos e moralistas que se relevam monstruosos no escuro, mas mais intimamente o vampirismo conceitual do projeto. Afinal, é justamente no desejo proibido de beber o sangue do outro que Portabella materializa sua proposta estética, amplificando o caráter subversivo da obra ao representar alegoricamente o enfrentamento à censura. Sendo o fascismo esse regime no qual artistas precisam esconder-se dos vampiros governamentais para criar uma arte livre, nada mais subversivo que um cineasta embrenhando-se atrás de arbustos, paredes e cenários cinematográficos para alimentar a sua pulsão criativa, “sugando”, nesse processo, imagens pertencentes a outro e devolvendo-as ao mundo sob a forma de uma experiência totalmente nova, radical, que incita e exercita o desejo por invenção. Um ato político que combate o vampirismo com seu próprio veneno, agindo no tempo e espaço onde as forças vampirescas costumam agir: na calada da noite, detrás das cortinas e com as luzes apagadas. O resultado dessa empreitada é um cinema luminoso que, tal qual a chama incandescente de um lampião, guia nosso olhar para ver além da escuridão, ajudando a vislumbrar um caminho livre para a fuga do horror.

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Daniel Dalpizzolo, jornalista e crítico de cinema, é membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS).
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