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“Andam nigromantes pelos bosques”
As influências culturais e filosóficas do folk horror
Parte I
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por Fabrício Tavares de Moraes
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Midsommar (2019), o filme mais recente do diretor Ari Aster (Hereditário, 2017), coroa, ao menos no que diz respeito às imagens e símbolos que conduzem a narrativa, o crescendo de filmes que constituem o que recentemente se designou folk horror. Não muito diferente de outros gêneros, há certa dificuldade relativamente à definição desse gênero. Sabe-se que em geral, como o próprio adjetivo em inglês indica, o enredo se passa na zona rural; envolve, não raro, cultos pagãos (ou ao menos sincréticos), mantidos ou herdados por meio de um atavismo religioso que desafia igualmente os conceitos de cristianização e secularização; e apresenta, por conseguinte, uma grande intimidade ou mesmo confusão entre homem e natureza.[1]
Ao que tudo indica, foi Piers Haggard, o diretor de o Estigma de Satanás (1971),[2] que, tratando precisamente sobre este filme, cunhou, em 2003, o termo “folk horror”, numa entrevista à revista Fangoria, uma das mais conhecidas publicações dedicadas aos gêneros e subgêneros de horror nos Estados Unidos. Segundo Haggard, o enredo dessa sua obra trataria de “pessoas sujeitas a superstições acerca da vida nos bosques”, e sua atmosfera estaria impregnada da “obscura poesia” desses ambientes e temores. Originalmente, pois, os filmes dessa linha se concentram nos terrores que se ocultam nas paisagens britânicas, nas maldições e entidades ctônicas que se enraízam ou se confundem com a própria terra. Desse modo, rituais de invocação e os ritmos e ciclos agrários se entrelaçariam, ora como cerimônias reverenciais, ora como formas de propiciação a divindades misteriosas.
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Nos últimos dez anos, numa coincidência ou talvez convergência estética, houve vários filmes que, em maior ou menor grau, se incluíram ou foram inclusos nessa categoria: começando por Kill List (2011), passando por A Árvore de Palha (2011),[3] A Bruxa (2015), November (2017), pelo hiperestético A Maldição da Bruxa (2017), Apóstolo (2018), Gwen (2018), O Despertar de Fanny Lye (2019), obviamente Midsommer (2019), Silenciadas (2020) até The Pond (2021). Mais significativo, porém, é o recente lançamento do documentário Woodlands Dark and Days Bewitched: A History of Folk Horror (2021) [Bosques Escuros e Dias Enfeitiçados: uma história do folk horror], que, conforme se vê no título, marca talvez um avanço na discussão crítica acerca das convenções, ideário, símbolos e afetos que constituem ou subjazem à maioria dos filmes atualmente listados nessa categoria.
Obviamente, talvez essa fecunda década para os filmes fosse apenas um retorno ou uma referência irônica e artesanal àquela que é a obra seminal desse veio do terror: O Caçador de Bruxas (1968),[4] de Michael Reeves — filme britânico estrelado por Vicent Price e que, à época, sofreu cortes pelas instituições censoras da Inglaterra, que julgaram excessivas as cenas de tortura e sadismo. Fazem-se aí presentes vários elementos que depois serão vistos como recorrentes ou mesmo essenciais no folk horror: a existência de um domínio arcaico, mágico ou sobrenatural em contraste com os valores em geral cristãos daquela sociedade; ritos ou cultos com certo simbolismo pagão ou neopagão (por vezes um pastiche); indivíduos que transitam entre um domínio obscuro e terrível e o cotidiano (bruxas ou bruxos, demonólatras e ocultistas) e, claro, o choque e violência ocasionados pelo confronto entre a instância maligna residual ou clandestina e nossos valores “civilizacionais” modernos.
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Seja mera coincidência ou convergência ao espírito da época, é digno de nota que, nesse mesmo ano de 1968, outra obra levou ao pormenor, e com certo prazer, toda a complexidade dos ritos ocultistas e mesmo satânicos, extraindo um novo tipo de terror a partir desse conhecimento “paralelo” ou subterrâneo que perpassava gerações e até mesmo constituía parte da herança de enfastiados aristocratas ingleses. Trata-se, é claro, de As Bodas de Satã,[5] dirigido por Terence Fisher, e baseado num romance de Dennis Wheatley, que, como se sabe, explorou esse filão de obras literárias com referências ao oculto ou a sociedades secretas.[6]
Em 1970, Vincent Price, em O Uivo da Bruxa,[7] novamente fez o papel de um impiedoso caçador de bruxas que perseguia e torturava inocentes num meio rural e ainda tomado por toda sorte de superstições. E, no ano seguinte, o já citado O Estigma de Satanás traz também uma pequena vila rural da Inglaterra oitocentista como o palco para a manifestação de demônios e missas negras. O que se percebe, portanto, é que, antes de O Sacrifício (1973),[8] o grande clássico desse gênero de terror, já havia um crescendo de interesse estético para com as novas relações que então se estabeleciam entre homem, civilização e natureza. Certas tendências socioculturais da época talvez sirvam de ponto de partida para uma compreensão desses filmes que se difundiam nos cinemas e no imaginário; ora, numa breve análise, vê-se com frequência nessas obras a suspeita por parte dos grupos urbanos e burgueses para com o imaginário hippie, suas relações primevas com a natureza, seu “culto” à pletora do mundo e às potências amorais que o civilizado obstrui, rechaça ou recalca. O “folk horror“, como dissemos, esteve primária mas não exclusivamente atrelado aos cenários campestres da Inglaterra,[9] e, em geral, pressupõe uma crueldade por trás da suposta beleza dos rituais pagãos. Se é aqui lícito o uso de uma metáfora, esse gênero seria o espelho de uma ilha onde Próspero não é servido, mas sim assombrado por Caliban. E simbolicamente vários desses filmes se passam num território insulado, domínio propício pois ao devaneio e alienação… Em suma, essas obras seriam, em parte, hipóteses estéticas nas quais teríamos hippies going psycho.
Num segundo momento, cabe a lembrança de que os anos 70 marcam uma consciência ecológica e mesmo geopolítica da possibilidade de exaustão dos recursos naturais. Afinal, os dois choques do petróleo (em 1973 e 1979), e as consequentes fobias e ansiedades causadas por esse impacto nas relações econômicas e sociais no mundo ocidental, não somente promoveram a organização dos primeiros partidos verdes europeus nos anos seguintes, mas também, no domínio artístico, deram substrato a pesadelos distópicos, sendo Mad Max (1979) e No Mundo de 2020 (1973)[10] os casos paradigmáticos.
Portanto, esse novo posicionamento político e existencial perante a natureza — ou mais especificamente, essa nova avaliação dos perigos e possibilidades do domínio técnico humano sobre o mundo natural — fez com que a terra, o campo, os bosques fossem vistos não mais apenas como domínio para exploração, mas como fonte de possíveis horrores, já que sempre guardam, ciosamente, um núcleo refratário à manipulação humana.
Evidentemente, se considerarmos atenta e seriamente o momento e contexto históricos em que grande parte dos filmes de folk horror se passa, entenderemos que colheitas goradas não atemorizavam apenas pela expectativa de fome e carestia — por si só já terrível —, mas também pela inevitável dissolução social que a isto se seguiria, com invasões, estupros, assassinatos e pilhagens e, por fim, numa das piores abominações descritas nas maldições bíblicas, com canibalismo, que seria simbolicamente a inversão derradeira da ordem axiológica cristã (ou mesmo pós-cristã) que muitas dessas obras pressupõem.
Quais seriam, porém (se as há), as razões para esse novo interesse, ao menos no âmbito estético, em relação a um gênero que explora os meandros obscuros da natureza, suas potencialidades incontroláveis e hostis, precisamente numa época em que, na perspectiva de teóricos de diversas áreas, testemunhamos a maior alienação do homem para com o meio natural?
Em suma, seria um signo desse processo de “reencantamento” que Peter Berger e outros aludem há alguns anos, ou é, na verdade, simples nostalgia do homo urbanus (como diz Elisabeth Oberzaucher), um desejo de compensação estética daqueles que se veem agora cercados mais por objetos passivos (cuja forma e existência se perfazem segundo a interação humana) do que por entes e forças vivas não humanas?
Por mais que uma possível resposta a essas questões demande uma discussão ampla e transversal, a qual ultrapassa os modestos limites destes ensaios, buscaremos, no entanto, certos princípios e reflexões sobre o terror e deslumbramento que em nós suscitam as imagens desse gênero de filmes.
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Notas:
[1] De igual modo, para nós, há hesitações quanto a tradução mais apropriada: seria um horror folclórico ou um horror popular? Ora, estes adjetivos, rigorosamente falando, são sinônimos, sendo o primeiro apenas um estrangeirismo absorvido pela nossa língua e que, numa perspectiva pragmática, está em geral associado ao domínio da antropologia ou etnologia. No entanto, talvez sejam ambos formas que não tangenciam as nuances que a expressão original carrega consigo.
[2] Título original: The Blood on Satan’s Claw.
[3] Este filme de Robin Hardy é visto como uma continuação, ao menos na simbologia e imaginário, de seu clássico O Homem de Palha (The Wicker Man), de 1973.
[4] Título original: Witchfinder General.
[5] Título original: The Devil Rides Out.
[6] Vê-se aí também a gradativa formação de uma reação paranoide que não está longe do conspiracionismo eufórico e “globalizado” que surge especialmente a partir da década de 1980, bem como a base do que posteriormente seria o temor e fobia sociais de que os subúrbios familiares de classe média ocultariam grupos e ritos satânicos, que cometeriam toda sorte de atrocidades, especialmente com crianças; isto é, aquilo que, na cultura popular e mesmo na sociologia estadunidenses, se tornou conhecido como pânico satânico.
[7] Título original: Cry of the Banshee.
[8] Título original: The Wicker Man.
[9] Os filmes listados acima, pelo contrário, se passam em diversos cenários, por exemplo: os Bálcãs, o interior da Espanha, as Treze Colônias e vilas nórdicas. O que há em comum entre essas localidades é seu isolamento em relação aos grandes centros urbanos e a dificuldade de acesso a elas.
[10] Título original: Soylent Green.
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