por Leandro Oliveira
Seu filme talvez mais desconcertante, Shining – O Iluminado – é para alguns o cume do bem-sucedido casamento da música com o filme na produção de Kubrick. Talvez possamos entender como maturação de uma certa síntese funcional e expressiva de ambos elementos, que já em Laranja Mecânica e Barry Lyndon haviam tomado dimensões insuspeitas, para além do mero recurso coreográfico, que o autor sugeriria em uma entrevista da década de 90:
“Em termos cinemáticos, eu deveria dizer que movimento e música precisam inevitavelmente serem relacionados a dança, assim como o giro da estação espacial e o estacionamento da espaçonave de 2001 moviam-se ao som de “Danúbio Azul”. Do estupro no palco do casino abandonado à luta frenética, ao corte da figura de Cristo, na Nona Sinfonia de Beethoven, ou a luta em câmera lentaa beira da água e…. movimento, corte e música, são as considerações principais – dança?”
Em O Iluminado, a música de vanguarda, muitas vezes atonal, raramente melódica – num repertório com obras de Bela Bartok, Krzysztof Penderecki e Gyôrgy Ligeti – apresenta-se lado a lado com um repertório delicioso, pop ligeiro, incluindo clássicos do swing jazz como Jack Hilton ou Ray Noble e suas orquestras. Entre elas há uma importante distinção funcional, no entanto: apenas o segundo grupo de peças é ouvido tanto pelo público quanto pelos personagens.
Seu uso com propriedades diegéticas, ou seja, com presença na própria narrativa, contrasta radicalmente à expressividade terrível do repertório de músicas de concerto do século XX, entre os quais, Penderecki é o mais reincidente. A primeira grande sacada de Kubrick talvez seja esta: a realização do caráter essencialmente imagético de muito da boa música clássica do século XX – e neste contexto, sobretudo sua muito feliz convivência com o ambiente das narrativas de terror.
No entanto, se algo amadurece nesta sofisticada relação entre música e imagem na produção de Kubrick, aparentemente, não é apenas sua sensibilidade musical. Mas entre aquelas primeiras trilhas e esta, o diretor assume de modo mais objetivo e sem timidez muito da carga simbólica que a música acaba por prever. Numa agora famosa passagem de Geoffrey Cock, autor de The Wolf at the Door: Stanley Kubrick, History, and the Holocaust (2004), lemos:
A música de Penderecki acompanha o horror geral do passado e presente no Overlook Hotel. Isso é significativo, pois o próprio pai de Penderecki foi advogado durante a Segunda Grande Guerra quando os nazistas mataram 70 por cento dos advogados poloneses. Nascido em 1933, Penderecki assitiu judeus sendo levados pelos alemães e devotou sua carreira musical à investigação da tolerância e intolerância… Enquanto Danny tem a visão do elevador vomitando sangue e Jack sonha com assassinatos, ouvimos “O despertar de Jacob” de Penderecki (1974). Jacob, além de ser o nome do pai de Kubrick, é aquele na Bíblia que nomeia Israel e cujos filhos são ancestrais das doze tribos.
A questão é significativa pois para Cock – e a tese é arriscadíssima – “Shining” é o filme que Kubrick, que cresceu em uma casa judaica do Bronx na década de 1930 (seu pai nasceu Jacob, mas anglicizado para Jack – o nome do protagonista perturbado de Jack Nicholson), sempre quis fazer mas que, por razões estéticas, nunca poderia fazer de forma direta: em resumo, para Cock, “Shining” é um filme sobre nada menos que o Holocausto.
Mas o mais impressionante que “o quê”, em Shining, é o “como”. Há durante todo o filme um esforço aparentemente deliberado de “esconder a natureza musical das obras em alguns casos… o que ouvimos é ambíguo, não claramente ruído ou música”, como diz Kate Mcquiston no livro “We’ll meet again – musical design in the Films of Stanley Kubrick”. O efeito é mais aterrador, arrisco dizer, que se a música soasse em primeiro plano.
https://www.youtube.com/watch?v=3taGWHEz8w0