À Pala de Walsh: Um fascínio luso-brasileiro

“O passado ? familiar, nacional, colonial ? é uma herança traumática que não pode ser silenciada ou negada.” Em parceria com À Pala de Walsh, um ensaio de Paulo Cunha sobre O Fascínio (2003), de José Fonseca e Costa — sobre um fascínio luso-brasileiro.

por Paulo Cunha

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uma parceria com À Pala de Walsh

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Apesar de não ter nenhum coprodutor brasileiro, O Fascínio (2003) é claramente um filme luso-brasileiro. É mais luso-brasileiro do que Kilas, o mau da fita (1980), apesar deste ter sido uma coprodução entre a portuguesa FilmForm e a brasileira Penta Filmes (Rio de Janeiro) e de ter contado no seu elenco com os atores Lima Duarte (dobrado por Santos Manuel e ainda antes de interpretar os icônicos Zeca Diabo de O Bem Amado, 1973, e Senhorzinho Malta, de Roque Santeiro, 1985-1986) e Natália do Vale (que contava com uma pequena participação em Gabriela, 1975).

O elemento comum aos dois filmes é Tabajara Ruas, escritor e cineasta gaúcho que no seu exílio (1972-1982) também passou por Portugal. Com argumento inicialmente escrito por José Fonseca e Costa e Sérgio Godinho, as rodagens avançaram entre janeiro e março de 1978. No entanto, dificuldades de produção levariam à interrupção das rodagens, que só seriam concluídas entre junho e julho de 1979. Nesse intervalo, foi necessário reescrever o argumento do filme, e, nesse período, Tabajara Ruas foi um elemento preponderante, co-assinando a versão final do argumento do que seria um dos maiores sucessos de bilheteira da história do cinema português (100 mil espectadores).

Publicado pela primeira vez no Brasil em 1997, O Fascínio é “a adaptação de um romance do escritor brasileiro Tabajara Ruas, que me deu a ler o livro quando veio lançá-lo em Portugal, há dois anos – e eu gostei logo da história. Depois de lhe ter dito isso, desafiou-me para fazer o filme. Na altura recusei o convite porque não podia ir filmar ao Brasil – onde se passava a ação – mas depois fiquei a pensar no conflito que o livro me propunha. Foi o meu colaborador, João Constâncio, que me propôs transpor esse conflito para a realidade portuguesa. Há uma quantidade de coisas do passado deste País nas quais sempre se evitou mexer.” (José Fonseca e Costa, Correio da Manhã, 21-XII-2003)

Ainda que o trabalho de transposição cinematográfica do romance de Tabajara Ruas feito por Fonseca e Costa e João Constantino não tenha deixado qualquer vestígio visível do Rio Grande do Sul, onde se ambientava o romance original, a narrativa situava-se num território fronteiriço: no romance de Tabajara Ruas, a ação decorre entre Porto Alegre e o Pampa, na fronteira com a Argentina e o Uruguai; na adaptação cinematográfica, a ação decorre entre Lisboa e Campo Maior, no Alentejo, na fronteira com Espanha.

No filme de Fonseca e Costa, o protagonista é perseguido por um fantasma do passado, o seu tio avô que degolou diversos refugiados espanhóis e a avó da personagem principal, num episódio que remonta à Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O tio-avô era membro da Legião Portuguesa, uma milícia fascista que tinha como missão proteger a unidade nacional e combater o comunismo, em particular a ameaça que soprava da Espanha. No romance de Tabajara Ruas, o protagonista é perseguido pelo fantasma de um antepassado “caudilhete”, figura ativa durante a Guerra dos Federalistas, um violento conflito civil entre Federalistas (maragatos) e Republicanos (pica-paus) que entre 1893-1895 se confrontaram pela cisão ou permanência da região que hoje é Rio Grande do Sul sob a bandeira brasileira. Esse antepassado, de acordo com a lenda, havia degolado cerca de 150 homens num único dia durante essa guerra civil.

Tanto em Portugal como no Brasil, o poder político democrático optou por não debater abertamente os crimes humanitários do passado repressivo e violento, em nome de uma suposta reconciliação nacional ou de uma eventual pacificação da sociedade. Mas o trauma da guerra, particularmente violenta e silenciada, persiste em ambas as sociedades, alimentando frustrações não sanadas. Confrontar o passado é mais uma necessidade catártica do que um capricho vingativo, seria uma forma de enterrar os fantasmas e debater abertamente sobre temas silenciosos que, apesar de invisíveis, continuam a condicionar o presente e o futuro.

Em ambas as narrativas também pontuam temas transversais como a corrupção e a criminalidade, desde relações de interesse pouco éticas entre políticos, autoridades policiais e diversos interesses econômicos ilegais, como participação organizada no tráfico de droga e seres humanos. Essas relações de promiscuidade garantem a impunidade e perpetuam a injustiça social e o regime patriarcal através da história.

O “fascínio” presente nessas duas obras, uma ambientada no sul do Brasil e a outra no sul de Portugal, não é brasileiro nem português, é um sentimento transversal a diversos contextos históricos e geográficos. No caso do filme de Fonseca e Costa, o protagonista da história começa a ser atormentado pelo degolador do seu avô e, sem saber muito bem porquê ou como, acaba por degolar um travesti (interpretado por Albano Jerónimo, o mesmo ator que interpreta a personagem do degolador) numa espécie de vingança histórica. Ou seja, o que o filme sublinha é que essa violência do passado provoca a violência do presente e, provavelmente, irá perpetuar esse património violento através da história.

Nesse aspecto, O Fascínio prossegue uma reflexão mais abrangente recorrente na obra de Fonseca e Costa, que remonta a O Recado (1972), Os Demónios de Alcácer Quibir (1977), Kilas, o mau da fita (1980), Sem sombra de pecado (1983) ou Balada da Praia dos Cães (1987).

O passado ? familiar, nacional, colonial ? é uma herança traumática que não pode ser silenciada ou negada. Só haverá um futuro quando o ciclo se interromper (como a rábula do elevador no início e no final do filme) e quando a violência do passado for assumida e debatida. Os debates que ficam, sucessivamente, por fazer acabam por alimentar o negacionismo (a propósito do machismo, do racismo, da homofobia, etc.) e o branqueamento da história apenas de forma artificial e temporária. E esse “fascínio”, que está presente nas duas narrativas, continua a ser algo comum aos dois países. Por isso é tão importante continuar a lutar contra o esquecimento, a rever a história e a memória colectiva, a desmontar as narrativas sociais dominantes.

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