FOCO: Elogio a Gertrud

O cineasta português Manoel de Oliveira comenta o filme "Gertrud", de Carl Dreyer, na sessão de 50 anos da Cahiers du Cinéma.
Nina Pens Rode e Carl Th. Dreyer nos bastidores de Gertrud (1964)

por Manoel de Oliveira
uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

O primeiro filme de Dreyer que vi foi A Paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, 1928), que gerou escândalo por ser constituído apenas de close-ups. Nas filmagens, Dreyer pedira que fossem cavados buracos, para colocar a câmera muito baixa e filmar em contre-plongée. Mandou construir um grande cenário que não aparece no filme. Seus produtores estavam irritados porque ele os fez gastar tanto dinheiro para filmar closes de rostos! A equipe do filme zombava dele por causa dos buracos, em vez de dizer Dreyer diziam Gruyère[1]… Há coisas engraçadas no cinema! Assisti a outros de seus filmes em seguida, como Dias de Ira (Vredens dag, 1943), mas meu preferido, o que acho excelente, é Gertrud.

Gertrud (1964), de Carl Th. Dreyer

Dreyer pressentiu o cinema futuro, pois teve a força de filmar a palavra. Antes dele não se ousava, dizia-se que a palavra era para o teatro. O cinema tinha o papel de mostrar o movimento e o que se via, mas não a palavra. Dreyer superou esta atitude, e vocês veem o que isso proporcionou. Compreendemos que a palavra não corta a imagem e que a imagem não precisa ficar sozinha. Com a música, com o som, esses são elementos que valorizam a economia da expressão cinematográfica.

No início do cinema sonoro, Pudovkin mostrou isso muito bem. Ele deu um exemplo: um homem diz adeus à sua namorada que pega o trem. No cinema mudo, diz ele, seria preciso mostrar o apito, o vapor saindo das rodas, as rodas que patinam antes de girar, e enfim o trem que se movimenta. Com o cinema sonoro, podemos permanecer entre a janela em que está a mulher que se vai e a plataforma onde o homem, de pé, diz adeus. O apito, os vapores, as rodas que patinam e depois entram em movimento, nós os escutamos. Há uma intensidade dramática enorme na cena. É uma riqueza que o cinema sonoro falado traz, e é o cinema de hoje. Dreyer compreendeu isso muito bem. Em Gertrud nunca vemos relógios, nós os escutamos, e esta economia tem um efeito no espectador. Vemos os sinos no final, é um último adeus porque Gertrud morre para o mundo; não há relógio mas há o Tempo, é o fim de um tempo.

O cinema mudo é verdadeiramente onírico. Quando sonhamos, podemos ver com os olhos fechados. O cinema mudo faz a mesma coisa. Não há som, não há palavras, como em um sonho. Também não há cor… E a cor, a palavra, o som dão uma realidade e aproximam o cinema da vida.

Não posso falar no lugar de Dreyer, as verdadeiras respostas sobre Gertrud só ele pode dar, mas ele não está aqui neste momento… Eu posso tentar interpretar. A meu ver, se ele pediu a seus atores que olhassem para frente a despeito de, contudo, conversarem entre si, foi para dizer que eles não se compreendiam. Há incomunicabilidade; no filme, cada um fala por si próprio e de si próprio. O marido deseja sua esposa e a observa, muitas vezes se dirigindo a ela diretamente. Ela compreendeu que eles não podem se comunicar. É uma maneira estranha, de todo modo bonita, de interpretar a questão, e é a minha.

Não sei muito bem se Dreyer queria isso ou outra coisa. Um filme não está terminado antes que os espectadores o completem com sua interpretação. É por isso que um velho livro é mais rico hoje do que era no momento de seu lançamento, quando ninguém, ou pouca gente, o compreendia. Após alguns anos, o livro ganha uma força enorme, pois o que estava oculto, às vezes até mesmo para o escritor, se desvela. Um escritor (ou um cineasta) trabalha de maneira intuitiva, inconsciente, ele não compreende tudo aquilo que faz.

Penso que a personagem de Gertrud se confunde com o diretor Dreyer. Ela fracassou em tudo na vida. Começou crente, tornou-se cética. Quando seu amante lhe pergunta se ela crê em Deus, sua resposta, para mim, é a de Dreyer. Ela diz: “E você, acredita?” Não é uma resposta irônica, mas uma resposta de angústia. Ela demonstra que, se Deus nos fala, permanecemos sempre na dúvida. Os grandes santos alcançaram a crença atravessando o enorme sofrimento da dúvida. A dúvida é algo terrível. Isso é bem mostrado quando o marido de Gertrud pergunta se ela já teve relações com seu amante. Para ele é pior permanecer na dúvida do que saber que ela o traiu. Não há ironia quanto a isso.

Pode-se dizer que Gertrud é egoísta? Ela exige muito sem dar nada em troca? Não acho. Ao seu primeiro amor, o poeta, ela se dedicou completamente. Ele rabiscou algumas palavras em um retrato dela, dizendo que o trabalho do homem é inimigo do amor da mulher. O homem preferiu seu trabalho a esta mulher. Portanto, é preciso não confundir dignidade com orgulho. É isso o que faz seu amante, que diz a Gertrud: “Você é muito orgulhosa”, mas o que ela quer é manter-se na dignidade. Ela não se entrega mais a ele porque ele não a ama. Ela o ama, ele não a ama, então ela tem razão em procurar um outro caminho. (…)

Teresa Meneses e Manoel de Oliveira nos bastidores de Francisca (1981)

Admiro muito Dreyer. Não sei se ele exerceu uma influência sobre mim. Penso que estou mais próximo de Buñuel, que é ibérico como eu. O Norte é outra coisa, um outro espírito, mas admiro Dreyer por sua busca pela profundidade, por aquilo que está inacessível ao homem, aquilo a que nos falta resposta. Por que vivemos, por que a morte. Os cristãos e outros talvez possuam respostas. Por isso deixa-se livros, não? Mas viver é um ato muito forte de humildade. Viramo-nos com o prazer, com a dor, e suportamos tudo até o último dia sem saber por quê. Eu agradeço a vocês por terem vindo esta noite por Dreyer. Se ele nos observa lá de cima, deve estar contente que tanta gente tenha visto seu magnífico filme…

Carl Th. Dreyer no set de Gertrud (1964)

[1] Queijo Gruyère: queijo esburacado de origem suíça. [N.T.]

Transcrição da apresentação do cineasta Manoel de Oliveira à sessão de Gertrud, realizada por ocasião da comemoração dos 50 anos dos Cahiers du Cinéma em Paris. Publicado originalmente em Cahiers du Cinéma nº 557, maio de 2001, pp. 102-103; traduzido por Calac Nogueira para a Foco – Revista de Cinema.

COMPARTILHE: