por Lucas Baptista, em uma parceria com a Foco – Revista de Cinema
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As partes que antecedem este ensaio foram publicadas aqui e aqui.
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Não é surpreendente que entre os projetos sonhados por Sergei Eisenstein encontremos adaptações de obras que lhe permitiriam explorar em profundidade os aspectos cognitivos da composição fílmica: de um lado, O Capital, de Karl Marx; de outro, Ulisses, de James Joyce. Em suas notas para as adaptações, há inúmeras reflexões sobre o potencial da montagem, especialmente sua capacidade de elaborar um raciocínio fílmico e um equivalente do “monólogo interior” da literatura. Estes textos, como molduras de um projeto teórico, servem ainda como referências para localizar outros posicionamentos que não ressoaram de maneira harmônica com o cinema soviético.
No ano da morte de Eisenstein, Alexandre Astruc publicou um texto que se tornou célebre como o prelúdio de toda uma geração da crítica francesa. Astruc, que sonhou em adaptar O discurso do método, foi também instigado pelo problema da expressão de um pensamento. O que ele enfatizou, contudo, foram aspectos inteiramente diversos:
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“Essa idéia, essas significações, que o cinema mudo tentou criar através de associações simbólicas, nós compreendemos que elas existem na imagem mesma, no desenrolar do filme, em cada gesto dos personagens, em suas palavras, nos movimentos de câmera que ligam os objetos e os personagens a estes. Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo.”[1]
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Foi a decomposição da realidade, a redução dos planos a fragmentos que pudessem ter parte num esquema, permitindo com isso a condução da imaginação, que serviu de premissa aos soviéticos. Como uma quebra originária, havia para eles uma separação básica entre a imanência do evento e sua transposição para uma realidade fílmica, uma separação que deveria ser amplificada, elevada a um princípio composicional. A crítica francesa de extração baziniana não admitiu este princípio. A montagem lhes pareceu monstruosa porque se imaginava capaz de resumir num padrão a complexidade infinita, e mesmo de romper a unidade entre o literal e o figurado. Implícitos na declaração de Astruc estão os ideais de continuidade e unidade que fizeram da profundidade de campo e do plano-sequência as armas mais preciosas do realismo, e a fusão inextricável entre matéria e sentido que tanto inspirou Andre Bazin e seus seguidores. Mas o que se esboça neste trecho é algo mais específico. Trata-se de um subconjunto do mito realista, um terreno que foi explorado nas décadas seguintes pela crítica mundial, tendo nos Cahiers du cinéma a principal referência. Ao redor do conceito de mise en scène, ganhou força o mito da encenação como sinônimo da criação cinematográfica.
O argumento de Astruc se reduz a dois pontos que resumem a transposição dos critérios teatrais para o cinema que caracteriza esta linhagem. O primeiro é uma recusa do cinema mudo. Não apenas as táticas da montagem e as trucagens que enfatizam a plasticidade visual são negadas, mas há uma consciência do silêncio como representando uma falta. Este mito do cinema sonoro é, com efeito, um mito de origem. Defende-se uma arte na qual a realidade na tela, como a do palco, necessita da reverberação sonora para que sua integridade seja mantida. O segundo ponto envolve a definição da cena como o terreno onde se manifesta o pensamento. A imagem não é vista como um invólucro da ideia ou como um signo que toma parte num discurso, mas como o órgão mesmo do que será comunicado. Não serve apenas para evidenciar um dado conteúdo; constitui, ela própria, o instrumento por meio do qual este conteúdo se desenvolve e adquire sentido. Por essa ótica, não há dúvida quanto ao sentido revelado no mundo preceder a organização da mise en scène, pois o sentido é manifesto precisamente como uma função deste mundo quando transposto para e conduzido pelo cinema. Se o projeto de Eisenstein vislumbrava o monólogo interior no cinema, o projeto de Astruc é o de um “monólogo exterior”, que emerge da própria cena, ganhando forma na organização dos corpos perante a câmera.[2]
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Não é casual, portanto, que um dos modelos nessa mitologia tenha sido um homem de teatro: Otto Preminger, amplamente caracterizado por movimentos de câmera fluidos e pelo forte sentido de visibilidade espacial. Um crítico como Jacques Rivette, representativo do discurso sobre a mise en scène, fará então o elogio da composição cênica de Preminger como sendo “a criação de um complexo preciso de personagens e cenários, uma rede de relações, uma arquitetura de conexões, um complexo animado que parece suspenso no espaço”[3]. Em poucos momentos o elogio é tão justificado quanto na sequência em que a protagonista de A ladra (1946) executa o roubo sob hipnose. Por sua localização na trama e pela forma como é conduzida, a sequência torna-se uma verdadeira alegoria da encenação no cinema. A personagem é hipnotizada e usada como ladra por um criminoso; seus gestos têm a elegância de ações planejadas, mas também o distanciamento sinistro de algo que age não por vontade própria, e sim por forças externas. Se toda encenação resolve-se, em última instância, na presença de alguém perante a câmera, a exploração das intenções secretas ou desconhecidas é possível unicamente neste quadro: é através da superfície que o interior deve ser compreendido. A solução de Preminger é registrar o processo com a abstração dos motivos típica dos sonhos e a atenção à dimensão concreta do espaço que é exigida no palco. Tudo é reduzido a formas simples, com praticamente nenhuma ornamentação no cenário ou nas ações. Movimentos são lentos, ruídos são pontuais. Além da atmosfera insólita, essa moderação cria uma base sobre a qual percebe-se mais intensamente cada perturbação. Sobre as paredes lisas, sombras são projetadas e deslocadas, explorando o volume da cena e amplificando os gestos da atriz. Gene Tierney abre uma porta, desce uma escada, entra num carro, acende uma luz, e todas essas ações, banais na maioria dos filmes, adquirem um magnetismo particular, sendo reenquadradas por uma câmera que evita a todo custo o exibicionismo, e acompanhadas por uma montagem que segue estritamente a divisão arquitetônica da casa. O que se demonstra com isso é que a sucessão de eventos não-dramáticos é capaz de sustentar, por uma observação cuidadosa e pelo controle da angulação e do ritmo, uma progressão quase melódica, e que não sugere a imposição, mas sim a descoberta. A virada final reposiciona o filme num registro mais ligado às convenções do filme policial, mas durante alguns minutos temos a impressão de que encaramos a mise en scène num estado purificado.
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O contexto no qual se desenvolveu o mito da encenação entre os críticos franceses é significativo para compreender o tom de absolutismo com que trataram a função do diretor. Não seria original afirmar, na Europa dos anos 1950, que um cineasta, por suas escolhas individuais, poderia se igualar a um escritor ou pintor, garantindo uma assinatura pessoal e expressando uma visão particular de mundo. A originalidade, neste caso, reside na defesa de que, mesmo na atmosfera regulada e na divisão de funções característica de Hollywood, a figura do autor poderia não apenas surgir como também afirmar suas qualidades. O que se postulou foi que, se o diretor no contexto industrial não possui controle sobre o roteiro, a concepção do universo temático ou o gênero a ser tratado, a área na qual poderia exercer a influência mais direta é a da realidade espacial em que esses fatores são concretizados. No limite, o domínio da encenação seria tão característico que funcionaria como verdadeiro pólo magnético para os outros departamentos, tornando-se, assim, o principal critério para o sucesso da obra. A chamada “política dos autores” não foi outra coisa senão a defesa da expressividade individual em um determinado contexto de produção e o debate em torno dos modos como a encenação se implicava nesta autoria.
Um dos resultados desse programa crítico foi a constituição de uma série de tipologias em que cineastas-autores eram comparados por seus respectivos tratamentos dos mesmos temas ou gêneros. O que diferencia, então, Nicholas Ray, Richard Brooks, Anthony Mann e Robert Aldrich? A resposta desta pergunta tomará, no caso de Rivette, a forma de um comentário sobre as tendências exibidas nos filmes, as preferências de protagonistas ou soluções narrativas, os temperamentos que destacam ou dissolvem certos aspectos da tradição.[4] No caso de Michel Mourlet, a pergunta será ainda mais específica: envolve o que ele identificou como sendo uma propriedade essencial da mise en scène, sua “energia”, algo a ser medido nas relações entre os gestos dos atores e o mundo criado pelos filmes. Mourlet estabelece, em sua “apologia da violência”, uma verdadeira escala de cineastas, passando por Elia Kazan, Orson Welles, Luis Buñuel, Raoul Walsh e Fritz Lang, chegando ao que ele considerou o seu ponto mais alto, Joseph Losey – assim como Preminger, um cineasta com experiência no teatro. A vertente realista se concentra progressivamente e busca, com isso, o cânone de um classicismo cinematográfico. Se há divergências nos panteões, há uma convergência explícita no elogio do presente cênico, da clareza no trato com o espaço, da eficácia das ações e do pragmatismo frequentes no cinema americano, assim como na recusa das manipulações temporais e da montagem assertiva de maneira geral.
Até então, a montagem havia sido considerada a principal ferramenta para abstrair a realidade no cinema. A razão única e suficiente era a de que o corte é a operação abstrata por excelência, pois não possui um correspondente físico na diegese. Expressar um pensamento por meio do cinema seria possível com a escolha de componentes visuais que, isolados, seriam reais em si, mas cujo fim último seria estabelecer ligações com outros componentes; ligações abstratas, porque inexistentes nas imagens. O mito da encenação propõe uma inversão crucial. Seus defensores acreditam poder abstrair a realidade cênica sem o recurso da montagem; acreditam que essa realidade possa de uma só vez ser abstraída e reforçada em sua concretude. Rejeitar a montagem assertiva, nesse contexto, significa rejeitar a abstração como definida tradicionalmente. Decorre dessa postura uma negação da “linguagem”, mas uma negação que se volta unicamente à linguagem que se exibe enquanto tal. De maneira reveladora, a retórica desses adeptos é ela mesma radical e intensamente presente, e quase sempre no modo apofático, onde o que se afirma é a impossibilidade de afirmar. Nos termos da forma cinematográfica, a única retórica possível torna-se a que, ao atuar sobre a realidade, encobre sua própria atuação. No limite, esta retórica se crê inexistente, pois retirada das próprias coisas, como se o discurso do filme fosse um só com o discurso do universo ficcional. Há aqui a suposição de que, na mise en scène, o gesto criativo não reside na escolha dos objetos e das ações perante a câmera, e que atores, cenários, situações não constituem tanto os elementos, mas antes a própria matéria a ser articulada. Há, em suma, a ideia de que a realidade ficcional é a realidade mesma, a qual o encenador pode observar com transparência, e cujas contrações pode acompanhar e modular, mas sem nela intervir.
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Durante os anos 1950, na chamada “era dos metteurs en scène”, o discurso da encenação serviu para dar ao cinema industrial um lugar privilegiado no imaginário da crítica. Em paralelo, constituiu um mito de destino, representado mais claramente pelo ideal que Mourlet identificou na fase tardia de Fritz Lang. Esta interpretação é significativa por envolver um juízo histórico que se projeta como uma definição da essência cinematográfica. A evolução da obra de Lang, para Mourlet, serve como recapitulação da própria evolução do cinema: nascida no período silencioso, esforçando-se para conquistar a própria autonomia sob as limitações da época, teria recorrido ao expressionismo apenas parcialmente, em busca de compensação; com a passagem ao sonoro, a desorientação inicial logo tomaria a forma de uma retidão e um rigor cada vez maiores, ao mesmo tempo em que se voltaria mais intensamente ao posicionamento dos atores no espaço e ao desenrolar fatal das narrativas. O que restaria, então, em seu momento final? A mise en scène, “perfeitamente cristalina”, que abandona a preocupação de exprimir ideias e não se coloca mais como um suporte do roteiro, mas que é ela mesma o significado expresso – que é “não mais conceitual, mas melódica”.[5] A analogia musical remete ao famoso comentário de Walter Pater no século XIX, de que todas as artes aspiram à condição da música, isto é, a de ser uma arte em que o conteúdo e a forma não mais podem ser diferenciados, na qual a sua fusão é completa. O mito da encenação como forma de exprimir o pensamento se torna, com isso, um mito de destino em que a encenação não expressa nada além de si mesma. Nesse horizonte, a crítica toma para si a operação complementar. Quando a obra absorve e abstrai os seus pretextos, quando os temas são dissolvidos na expressividade de sua condução cênica, analisar a obra de um cineasta se torna sinônimo de “mostrar em que o acesso aos temas fundamentais da mise en scène, ordenados em torno da presença corporal dos atores em um cenário, é ou não é capaz de nos fascinar”.[6] O espectador cognitivo da vanguarda soviética dá lugar ao espectador fascinado.
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Notas:
[1] Alexandre Astruc, “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo”, L’écran français 144 (30 de março de 1948). Uma tradução para o português, por Matheus Cartaxo, se encontra em: https://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO4/stylo.htm.
[2] Três anos antes, num texto que teve influência considerável na França, Merleau-Ponty formulou esse argumento sobre o cinema em sua relação com a psicologia Gestalt. Ver Maurice Merleau-Ponty, “O cinema e a nova psicologia” (1945), trad. José Lino Grünewald, in A experiência do cinema, ed. Ismail Xavier (Rio de Janeiro: Graal, 2003), pp. 115-116. Ao se perguntar sobre como representar mais efetivamente a vertigem no cinema, ele afirma: “Sentiremos isso bem melhor apreciando exteriormente, contemplando esse corpo desequilibrado a se contorcer sobre um penhasco, ou esse andar vacilante, tentando adaptar-se na desorientação do espaço. Para o cinema, como para a psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio traduzem comportamento.”
[3] Jacques Rivette, “L’Essentiel”, Cahiers du cinéma 32 (fevereiro de 1954), p. 44
[4] Jacques Rivette, “Notes sur une révolution”, Cahiers du cinéma 54 (Natal de 1955) e Michel Mourlet, “Apologie de la violence”, Cahiers du cinéma 107 (maio de 1960).
[5] “Trajectoire de Fritz Lang”, Cahiers du cinéma 99 (setembro de 1959). Mourlet não foi o primeiro ou o último a defender essa interpretação de Lang. No contexto dos Cahiers, dois outros exemplos seriam Jacques Rivette, “Le main”, Cahiers du cinéma 76 (novembro de 1957), e Jean Douchet, “L’étrange obsession”, Cahiers du cinéma 122 (agosto de 1961).
[6] Michel Mourlet, “Sur un art ignoré”, Cahiers du cinéma 98 (agosto de 1959), pp. 36-37. Mourlet foi provavelmente influenciado pelas reflexões de Étienne Souriau no teatro. Ver, por exemplo, Étienne Souriau, As duzentas mil situações dramáticas [1950], trad. Maria Lúcia Pereira (São Paulo: Ática, 1993). Os dois trechos a seguir poderiam constar em suas defesas da mise en scène: “O microcosmo cênico tem o poder de por si só representar e sustentar satisfatoriamente todo o macrocosmo teatral, sob condição de ser tão ‘focal’ ou, se preferirem, a tal ponto estelarmente central, que seu foco seja o do mundo inteiro que nos é apresentado. Esta organização estelar do universo da obra, organização tal que um certo ponto de tensão inter-humana lhe serve de centro e de núcleo, e, limitado e encerrado no cubo cênico, irradia em volta toda a cosmicidade da obra, tal é a condição fundamental do teatro” (pp. 19-20). “Uma situação dramática é a figura estrutural esboçada, num momento dado da ação, por um sistema de forças – pelo sistema das forças presentes no microcosmo, centro estelar do universo teatral; e encarnadas, experimentadas ou animadas pelos principais personagens daquele momento da ação. Sistema de oposições ou atrações, de convergências em choque moral ou de explosão destrutiva, de alianças ou divisões hostis…” (p. 38). Souriau foi, inclusive, um dos responsáveis por difundir no cinema o termo diegese, em “La structure de l’univers filmique et le vocabulaire de la filmologie”, Revue internationale de filmologie 7/8 (1951).
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