FOCO: O choque de cada momento de ainda estar vivo

Há muito tempo que um filme não alcançava de modo tão expressivo e comovente a ambição de John Ford como em "Cavalo Dinheiro", de Pedro Costa.
Vitalina Varela e Ventura, Cavalo Dinheiro (Pedro Costa, 2014)

por José Oliveira
uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

Veja, não há diretores suficientes para reconhecer que quando você diz “ação”, isto acontece. [Ele faz uma forma de abertura da lente abrindo o punho.] É a lente fazendo isto. E o que acontece quando você diz “ação” é que você está abrindo os olhos das crianças na China, na Rússia, na América do Sul; toda vez que você diz “ação”, você está abrindo os olhos de um bilhão de pessoas ao redor do mundo. – Jerry Lewis, em entrevista para o crítico Chris Fujiwara

Infelizmente os estudos cinematográficos universitários hoje, neste momento levados a cabo por sociólogos sem grande engajamento emocional com a arte, destroem-se sozinhos nos desvios teóricos, linguísticos e psicanalíticos porque eles não têm outra realidade além deles mesmos. Como a semiologia, que jamais pôde encontrar os signos, eles não sabem que dados reunir e classificar, nem mesmo sabem o que poderia constituir-se como dados, porque esses dados são poesia, não prosa – únicos, não comuns. Os estudos culturais tratam necessariamente os filmes (e as pessoas) como propaganda, escolha que aniquila a experiência necessária para validar a ciência. A vida é reduzida ao reflexo do Narcisismo. – Tag Gallagher

“A principal coisa sobre dirigir é: fotografe os olhos das pessoas.” Há muito tempo que um filme não alcançava de modo tão expressivo e comovente a lacônica ambição de John Ford como o faz Cavalo Dinheiro (2014), último testemunho da longa relação de Pedro Costa com Ventura e tantos outros habitantes do que eram (são) as Fontainhas. Ainda antes de todas as sombras e fantasmagorias, túneis e catacumbas, ligações subterrâneas e austeras salas carregadas de asséptico fedor a doença e morte flanquearam as eternas filiações a Jacques Tourneur ou a Fritz Lang, ao cosmos fácil do Cinema e dos raccords, o que mais peso exerce sobre o tela (o que se destaca pelas composições estonteantes aqui na terra que o abarca) e o que mais brilha na escuridão são os olhos que estão nos rostos dessas pessoas, logo a sua presença humana, que é o cerne deste tomo e da restante obra de Costa. Olhos úmidos, assustados, marejados de terror, prontos para um sorriso como aquele que Vitalina Varela retribui a Ventura por uma carta a ela dedicada. Sorriso que mais uma vez corta toda a treva e a sua catadura feroz. Um dia, quando se puder ver estes filmes ainda a outro nível, libertos do impressionismo e da conotação imediata, vai-se perceber que todo o empenho formal e estético apenas está ao serviço e se interessa acima de tudo pelo gênero humano. Gênero cada vez mais numeroso e abundante, família espalhada e próxima, numa propagação geral que extravasa todo o território e toda a fronteira rumo a um sentido de comunidade que utópico ou não, saudoso ou realista, cria-se e desenvolve-se pelos mais inesperados caminhos, obstinado e natural.

A um tempo extremamente romanesco – histórias e vontades e pulsões – e obcecado com o que o realizador uma vez chamou de “História ligada às fontes” – a fidelidade, a implacabilidade dos fatos e a conclusão – o movimento descritível vai das descidas iniciais de Ventura para constatar e enfrentar o seu estado atual, perfura para lá do seu passado que é a herança e a carga de todos nós, jamais esquece os seus filhos, as mulheres e o afeto, para terminar com uma saída que pode ser uma libertação. E é o cúmulo do classicismo como os grandes Hollywoodianos o conceberam. Numa decupagem que retira o essencial de cada evento, a máxima intensidade, detalhe e finalmente o indescritível, o exemplo superior de toda esta arte enterrada encontra-se na apresentação dos companheiros que frente à cama de hospital juram para a vida e para a morte a proteção ao seu Pai. Um a um, esse batalhão estoico é recortado e individualizado contra o seu fundo para ser aglutinado num “um por todos e todos por um” que é uma das máximas de Cavalo Dinheiro. O Rio da Aventura (The Big Sky, 1952), O Inventor da Mocidade (Monkey Business, 1952) e Os Homens Preferem as Louras (Gentlemen Prefer Blondes, 1953) foram realizados de estocada por Howard Hawks e marcaram o zênite, o absoluto da arte unificadora, centrada e sintética que sempre perseguiu. Um pouco depois do habitual teve de rodear-se das pirâmides, dos túmulos e dos hieróglifos Egípcios para se abandonar em durações agônicas e achar outro reverso do tempo e dos conflitos pela estranheza do CinemaScope. O que se passou na preparação de Terra dos Faraós (Land of the Pharaohs, 1955) bem como a posterior convalescença nunca o contou a ninguém. Já pelo O Sangue (1989) Pedro Costa estava atormentado por tais durações, essa frontalidade aterradora que parece não cessar, difusão ancestral que o levou a atingir os confins das distensões e das miragens, das visões perpétuas e fugidias das várias faces da morte. Em Casa de Lava (1994) e chegado às Fontainhas filmou cada pessoa e cada interação como quem filma massas humanas, para agora regressar aos caminhos que Hawks abandonou sem aviso e concentrar-se no desbravar lacônico do caminho. Em direção a um esquecimento que agoniza ele mesmo em flashes rumo a uma cura. Para advir a vibração do par. O par. Como disse Gaston Bachelard, a necessidade dos dois. Uma nova beleza (que se perfaz à nova resolução das fotografias e das texturas pelo vídeo) que afasta as brumas que largaram do filme iniciático para apelar a um tempo e a uma nitidez futuras, medida e ambição vital deste ritmo tão procurado. Onde o plano final promete todos os duelos.

Vozes sem corpo, corpos mudos, longos monólogos interiores, berros em suplício, sussurros ternos e precipitados. Som que não bate com a imagem, composições cheias de ecos e reverberações desequilibradas, paroxismos irracionais. E assim, desde as fotografias de Jacob Riis ligadas em panorâmica às deambulações sempre no absoluto presente de Ventura, a postura e a poética irmanam-se – tudo é figurável, do céu ao inferno, se a distância e a salvaguarda do Humano for entendida como questão capital. E a intrincada construção interna e íntima que comporta todas essas e tantas outras profusões pelos longos interstícios de uma jornada que extravasa – como todas as obras que conquistam a transfiguração – o 25 de Abril e Portugal para se instalar nas sendas da eternidade, volve-se límpida e inteira no seu desejo de âmago e emoção. Não a tradicional emoçãozinha à custa de um aproveitamento rasteiro do mais superficial, mas chegando lá por um desvelamento paciente e profundo que só pode advir e concretizar-se na revelação, vislumbre do instante da verdade. Como se as labaredas, as fragrância e os pingos do tempo da primeira e da segunda parte que lemos em The Sound and the Fury de William Faulkner se fundissem com a luminosa terceira para uma emoção realmente nova que é a visão e congregação plena concretizada em Cavalo Dinheiro – e aqui nem o itálico auxiliador de Faulkner encarreira ou emancipa, a não ser que sejam as tais catacumbas ainda existentes a grande abstração sobre a cronologia e a sequência. Pelos escombros de antigas fábricas onde as carnes e os ossos se gastaram, na brancura clínica da oficiosa cura ou dentro do elevador que é máquina de tempo antes de caixa-de-ressonância de cadáveres, largado à nora nas labirínticas florestas que nos jornais de hoje só servem para exaltações e texto bonito (diálogos do filme), ou naquela morna que mais do que número musical é a rima perfeita com Riis no companheirismo que redime o perigo do patamar superior do artista, cabe tudo o que deve ser captado com o maior dos empenhos, gastando todo o sangue se preciso for.

Máximo despojamento onde planas molduras à luz vetorizam perfis à maneira expressionista de Mabuse. Máquinas de guerra, soldados embestados, possantes motorizadas que perfuram a noite, num demencial caleidoscópio sugestivo tornado extremamente físico nessa poderosa concentração do Agora. Dois seres contra o incomensurável – Ventura e Vitalina iluminados pela sua ternura mais do que pelas fugazes luzes do edifício atrás deles – e sempre o fulgor bruxuleante da intimidade e da juventude eterna – Ventura já no colo da mulher quando a câmara desce e o tremor amaina. Nesse momento tênue e absoluto podemos tocar a matéria do Cinema e a matéria do Homem como raras vezes, podemos como que tocar a massa de que somos feitos e a nossa sensibilidade a romper da escuridão para a luz e da luz para o buraco, morfologias em debate e em acordo, saindo vencedor o amor. Tocar mesmo, com os olhos, a cabeça, o estômago… Raramente tal palpabilidade e o arrepio assomaram e se centraram no meio digital para este conquistar como nunca a propulsão onívora que a película arrebatou no século XX. Gestação, nascimento, desejo, primeira idade, pioneirismo, dores de crescimento, aurora, desbravamento, foram os extraordinários vislumbres das conquistas pós-Ossos (1997), agora tudo já cresceu e se tornou sabido e ainda mais sedento. Amor, finalmente o que puxa o acorrentado e o condenado do mundo dos mortos para o dos vivos. O que o faz ver a luz e dos baixos o eleva à claridade. Dos túneis ao sol que ainda acolhe e rasga carreiro. Atravessar os possíveis espelhos da condição e apelar à força inelutável da verdade. Tanta dor e tanto tormento, mágoa e massacre, e não se pode deixar de constatar que Ventura e os Venturas saem vencedores. A extraordinária dignidade, altivez e firmeza com que segue em frente. A verdade superior e o único triunfo que importa. Falo outra vez da sequência derradeira e da promessa que os vencidos vencerão. O mais belo elo entre amor e violência, facas e música e coragem que o cinema nos deu. Cuspes para o chão e a sopa levada à boca do próximo.

Cavalo Dinheiro é aquecido mais do que todos pelo sopro do vento das árvores tão desaproveitado como o interesse pelo olhar; não tendo medo de figurar as manobras da carimbada grande História (e a sua tragédia), olhando abismado o que tanto espetáculo midiático banalizou. A permanência no coração do Quarto da Vanda, e a violência do absurdo num Apocalipse Now (1979) por outros rios e que possui a mesma força catártica do conhecido. Do mesmo modo como o filme de Coppola se liberta das obrigações e do tema do Vietnã para alcançar outros voos completamente abstratos, arejados, logo delirantes e em alguns momentos solitários como os desamparos dos filmes noir, também Costa não mete pelos caminhos principais das revoluções, dos seus foguetes ou do balanço, mesmo que vingue e relembre sem freios, mas vai muito mais além nos seus horizontes e nas suas linhas longínquas, rumorejantes, sem data nem lugar. O localizado com o universal, e a possibilidade de harmonia no caos, na guerra, no degredo desalmado; Sam Fuller mandou calar tudo em No Umbral da China (China Gate, 1957), inclusive o aparente realismo bélico, para pôr Nat “King” Cole a cantar para um menino largado às bombas que insistia em não largar o seu cãozinho companheiro. E o irrealismo virava-se pungente regresso ao aconchego do berço, mundo maravilhoso da inocência, seguimento do melhor amigo, ordem natural antes da corrupção e da mancha. Neste reajustamento cósmico que força e extravasa todas as leis, a par do milagre e da serenidade do pleno curso, atingimos a mais ousada das reposições. Os Homens por esta terra e a sua perdição, essa ruína da nossa ambição. Mas jamais a desistência, e é outra das coisas que afasta completamente a obra de Costa de muitos realizadores ou artistas ou intelectuais do culto inteligente do derrotismo, do profissionalismo inútil da solidão, do minado prazer das margens ou do orgulho pela escuridão. Ventura é a estátua de tudo isto, num filme carregado desse estatuário moderno e imemorial que parece lembrar-se dos recém desaparecidos Alain Resnais ou Chris Marker. O ser estilhaçado e falho que é da mesma forma como que invencível pela persistência alicerçada numa certeza radical do seu e dos seus. A fidelidade, o que nunca fez permanecer no chão Ventura depois das quedas, o que o fez vaguear literalmente por todo o lado – das barracas aos museus – à procura de quem merece, e recordar os vestidos que ofereceu à mulher amada e fazer todo esse tempo passado regressar.

Obras assim raras colocam tudo em causa e confortam-nos pela sua generosidade. Se não estão ao alcance de muitos – nem da indústria que varre tudo o mais rapidamente possível com a maior das indiferenças; nem dos valentes amadores que se vão apressando nos afazeres obrigatórios do cotidiano; para não desenvolver sobre o vácuo da filosofia, da pretensão ou da alta temática que este delicado labor raramente consentiu – é porque tudo parece feito de uma forma completa, em que como Yasujiro Ozu e Robert Bresson, nem uma brecha denuncia qualquer tipo de desleixo ou de aleatório anedótico. Sempre a reinvenção, sempre a fidelidade. Anos e anos de encontros e de registros, trabalho e modulação, anos de amparo e carinho na montagem, lado a lado já fora do cinema, toda a dedicação. Cavalo Dinheiro não é o cúmulo de Pedro Costa pois é mais um capítulo na longa caminhada encetada algures. Jamais o mestre que pensou na obra-prima genial, muito menos o rebelde underground que põe em causa porque sim. Estamos antes perante um sistema a que se pode ir buscar muitas coisas de maneira precisa e que tem a especificidade e o resguardo das relações que importam. E cinema, finalmente, puramente popular, que liberto das amarras teóricas fora dele será entendido por todo o mundo, por cada um com cada idade. A Presença Humana, no princípio como no fim. Quem não perceber que as passagens clandestinas (sonhos, pesadelos ou vigílias) são tão reais como a bruteza do tormento ou as casas queimadas da memória e que não saem da nação exclusiva e maravilhosa do Cinema, dificilmente perceberá que matéria e os seus fantasmas são uma e a mesma coisa. O espanto diante do real. No princípio como no fim.

Bastidor das filmagens de Cavalo Dinheiro (Pedro Costa, 2014)

José Oliveira é realizador, programador do Lucky Star – Cineclube de Braga e redator da Foco – Revista de Cinema

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