FOCO – O classicismo de Brian De Palma

"Eu essencialmente não acredito em deixar o bem triunfar ou basicamente resolver as coisas, porque eu acho que nós vivemos numa era em que as coisas não se resolvem e eventos terríveis acontecem e você nunca se esquece deles."

por Matheus Cartaxo 

Uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

Um travelling lateral, em câmera lenta, mostra muitas garotas, em sua maioria nuas, no vestiário feminino de um colégio. Na banda sonora os acordes também lentos da música de Pino Donaggio, ao mesmo tempo em que se contrapõem à agitação delas, coadunam-se à harmonia de que parecem desfrutar, bem como à despreocupação que uma das meninas deixa transparecer ao ser vista ensaboando-se de olhos fechados sob um chuveiro. De repente, num close de sua coxa, sangue começa a escorrer. Quando ela abre os olhos e repara no vermelho cobrindo seus dedos, espanta-se e corre, implorando por ajuda, para o meio das outras garotas, que já se encontram vestidas. Percebendo que ela não sabe o que se passa, as demais a cercam e, entre risadas, atiram-lhe absorventes enquanto ela é mostrada em pânico, em vários contraplanos, acuada contra a parede. Em poucos minutos o tom da cena mudou radicalmente: a harmonia do primeiro momento foi substituída pelo caos; a continuidade do travelling deu vez aos cortes abruptos na montagem; os acordes da música, aos gritos das meninas; a nudez generalizada, aos corpos cobertos, com exceção do daquela garota, que agora se envergonha do seu.

A sequência da primeira menstruação de Carrie no filme que leva o nome dessa personagem, além de ser uma das mais famosas da obra de Brian De Palma, é uma das mais representativas. A perda da inocência ali simbolizada é análoga ao que se sucede com o agente Ethan Hunt de Missão Impossível (Mission: Impossible, 1996), o policial Eliot Ness de Os Intocáveis (The Untouchables, 1987), ou os soldados Eriksson e Lawyer McCoy de Pecados de Guerra (Casualties of War, 1989) e Guerra Sem Cortes (Redacted, 2007), respectivamente. Todos eles, a princípio mais ou menos ajustados às circunstâncias em que vivem, veem-se subitamente lançados e implicados em mundos onde imperam a violência, as traições, as guerras, os complôs, como aquele onde Carrie passa a habitar a partir da sua queda do Paraíso, à qual se segue o seu “batismo” no Inferno – o mundo dos adultos. Primeiro, ela será uma vítima. Mais tarde, quando se vinga de uma grande humilhação que sofre no baile de formatura do colégio, ela se tornará a algoz dos seus algozes. Carrie, assim, se igualará a outras personagens de De Palma, como Jack Terry de Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981), Rick Santoro de Olhos de Serpente (Snake Eyes, 1998) ou Tony Montana de Scarface (1983), que alimentam as engrenagens dos mundos corrompidos em que estão inseridos, agindo de modo a dar continuidade aos intermináveis ciclos que a todos aprisionam.

Em entrevista, De Palma afirma:

Eu essencialmente não acredito em deixar o bem triunfar ou basicamente resolver as coisas, porque eu acho que nós vivemos numa era em que as coisas não se resolvem e eventos terríveis acontecem e você nunca se esquece deles.

A percepção do cineasta está de acordo com o que notamos na maioria dos seus filmes. Ao término deles, há uma tendência à manutenção dos mundos nos quais eles transcorrem tal como esses foram apresentados no início das jornadas. Ao fim de Um Tiro na Noite, a sociedade permanece alheia à conspiração a qual o protagonista fracassa em revelar; em Olhos de Serpente o cassino onde se passa o filme, antro de crimes e disputas por poder, aparece sendo reconstruído mesmo após ter tido uma parte sua destruída; em Carrie (1976), embora a personagem morra, ela volta atormentando os sonhos dos sobreviventes do massacre que provocou na escola. A estrutura circular das narrativas de De Palma faz parecer que nos seus filmes nenhuma transformação acontece, nada de novo pode surgir. Dessa forma, o Paraíso não passa de uma miragem, um papel de parede, como é dado a ver numa cena de Scarface, porque aqueles que lá se encontram, como Tony Montana, precisaram abandonar toda esperança.

A coerência formal e temática que De Palma cultiva desde os seus primeiros trabalhos na indústria de Hollywood torna necessário o esforço de compreender as aparentes exceções às regras. Em 1993, o diretor de Scarface e Os Intocáveis realizou O Pagamento Final (Carlito’s Way, 1993), filme no qual ele retorna ao mundo do crime organizado para contar a história de um gângster da “velha guarda” que, todavia, pretende deixar para trás as ruas corrompidas de uma Nova York dos anos 1970 a fim de reiniciar a vida nas Bahamas, ao lado da mulher que ama. No entanto, se o seu desejo é realmente alcançar esse Paraíso, Carlito Brigante, recém-saído da prisão – um símbolo do Inferno –, precisará provar que é merecedor daquilo, empenhando-se em conquistar o seu lugar lá. Em outras palavras: ele precisará mudar a si mesmo e resistir às tentações que lhe são feitas pelo mundo ao qual ele retorna, o qual parece forçá-lo a continuar sendo o mesmo do passado. O sucesso dessa jornada dependerá, finalmente, da maneira como Carlito agirá em função de dois polos que exercem atração sobre ele, um que tenta arrastá-lo para baixo e outro para o alto, os quais são representados, respectivamente, pelas figuras do seu advogado e amigo David Kleinfeld, e de Gail, sua namorada.

Kleinfeld é um típico personagem depalmiano: violento, corrupto, viciado, egocêntrico, megalomaníaco, explosivo, capaz de arrastar todos à sua volta consigo para o caos. Gail, em contrapartida, é a ordem que Carlito almeja em sua vida. Nesse sentido, é representativa a cena em que, a fim de contemplá-la à distância, Carlito sobe ao topo de um prédio localizado no lado oposto daquele onde Gail participa de uma aula de balé. Para proteger-se de uma forte chuva, ele usa uma tampa de lixo, encaminhando-se com tal objeto sobre a cabeça para a beirada do prédio. No plano em que o vemos, é marcante a escuridão da noite, a chuva forte; no contraplano em que Gail é vista, existe a luminosidade da sala de aula, o ambiente controlado, protegido. As bailarinas em meio às quais ela se encontra dão piruetas e passam seus braços em arcos sobre as próprias cabeças, formando no ar simultaneamente auréolas e asas de anjos de um coro celestial. Em oposição, Carlito permanece se cobrindo com a tampa de lixo, espécie de auréola degradada de um anjo caído, saudoso ao enxergar diante de si, na distância entre os dois prédios, o abismo que o separa do Paraíso a ser reconquistado.

O ponto de inflexão na trajetória do protagonista de O Pagamento Final é a descoberta de que Gail está grávida de um filho seu. Como sugere a mise en scène da cena da aula de balé, Carlito é como um cão vira-lata, em trânsito por diferentes lugares ao longo do filme, mas nunca em algum que de fato lhe pertença, como a sua casa, embora seja esse o seu desejo. A descoberta de que será pai acelera a necessidade de ele possuir um lar – como, afinal, aquela sala de aula, aquecida, acolhedora e segura. Além disso, a chegada desse novo indivíduo permite a Carlito sair de si mesmo, abrir-se à realidade do outro, afastando-se de vez da galeria de personagens autocentrados e ensimesmados do cineasta, na qual se encontram o seu antagonista David Kleinfeld, além de Rick Santoro, Jack Terry ou Tony Montana. Diferente de outros filmes de De Palma, em O Pagamento Final existe, pois, possibilidade de haver transformações. Isso se torna evidente quando, na última cena, à beira da morte, Carlito enxerga diante de si um anúncio publicitário parecido com o papel de parede de Scarface: vemos uma paisagem de praia acrescida de uma banda de percussionistas e uma mulher que dança. À medida que um movimento de zoom faz essa imagem preencher toda a tela, porém, ela abandona a fixidez e adquire movimento. Aquela mulher, devido aos seus movimentos de dança, aparenta-se a Gail, a quem se junta, em seguida, uma criança a qual ela segura nos braços – o filho do casal. Embora o plano de viajar para as Bahamas tenha fracassado, Carlito conseguiu re-hierarquizar seus princípios de modo a alterar os rumos da sua história, injetando nela o Novo, simbolizado pelo filho que ele verá crescer de longe. O anjo caído, enfim, perdeu o mundo, mas ganhou sua alma; o maneirismo pelo qual De Palma é reconhecido passa por um processo análogo, ascendendo a um classicismo que antes parecia fora do seu horizonte. Para além do seu tema, portanto, a conclusão de O Pagamento Final destoa do habitual na obra de De Palma pelo motivo de que ali o cineasta, afeito a rebuscadas operações formais com as imagens (cf. Trágica Obsessão, Vestida Para Matar, Dublê de Corpo), opta por colocar em cena de maneira frontal, qual o canto rasgado de Joe Cocker que ouvimos nestes créditos finais, o drama da personagem. Basta-lhe um plano fixo de uma paisagem bidimensional, composta de formas e cores simples, quase abstratas, as quais expressam, talvez pela primeira vez na sua obra, uma pureza ainda não aviltada.

Em 2000, com Missão: Marte (Mission to Mars), De Palma levou ao paroxismo os temas e a frontalidade que marcam a conclusão de O Pagamento Final. Como consequência, o filme gerou estranheza na crítica que, à altura do lançamento, buscou identificar o pouco que ele tinha em comum com outros trabalhos de De Palma ou, simplesmente, o considerou como um ponto fora da curva na sua filmografia, o seu projeto mais impessoal, o qual, por isso, não seria digno de atenção. Em Missão: Marte, um grupo de astronautas vai a outro planeta a fim de resgatar os possíveis sobreviventes de uma equipe envolvida em um acidente. Como o título sugere, a história se passa fora do tradicional mundo corrompido do cineasta, repleto de crimes, conspirações e assassinatos. A esperança, ausente ou rara nos seus filmes, é trazida agora para o centro da história, guiando as personagens na busca pelos amigos desaparecidos. Da mesma forma, se o comum em De Palma sempre foi personagens fechadas em si mesmas, tudo em Missão: Marte é abertura, partilha e, no limite, sacrifício, com os astronautas sendo capazes de dar a própria vida pela dos seus pares e a continuidade da missão.

A crítica não percebeu que, justamente por se localizar nas antípodas de tudo o que De Palma fizera até o momento, Missão: Marte complementava o sentido da sua obra, servindo como a peça faltante no quebra-cabeça que ao longo de décadas o cineasta vinha construindo. Numa filmografia marcada pela perda da inocência, como é representado na cena do vestiário feminino de Carrie, Missão: Marte é uma exceção principalmente por incorporar a presença constante da infância. A chegada do filho de Carlito Brigante em O Pagamento Final permitiu ao ex-gânsgter abrir-se a sentimentos dos quais ele permanecera distante, fazendo com que, nos últimos segundos de vida, ele atravessasse um portal que o levou a um cenário idílico, onde tudo parece retornar a um estágio inicial de pureza. Em Missão: Marte, contudo, os astronautas estão, desde o início, imersos nessa realidade que Carlito, com muito empenho, conseguiu alcançar. A fim de simbolizar isso, De Palma, na sequência de abertura do filme, que se passa na festa de despedida daqueles que logo viajarão para o planeta vermelho, povoa a tela com crianças brincando. Em seguida três dos astronautas conversam, recordando o prazer que tinham em ler livros de ficção-científica. Um deles, inclusive, mostra o colar que carrega desde criança, cujo pingente é uma miniatura da nave do herói Flash Gordon. Esses astronautas parecem em constante contato com os sonhos que possuíam no passado, e o filme, por consequência, se tornará a arena onde esses se realizam.

No clímax de Missão: Marte os astronautas travam contato com um ser alienígena que, como um deles percebe, estende um convite para que todos se unam a fim de se aventurar pelo espaço na exploração dos segredos do universo. Surpreendendo os demais, Jim, o mais arguto do grupo afirma que seguirá nessa viagem. Ele recebe então de presente o colar com a nave de Flash Gordon que pertencia ao seu amigo e reconhece, aninhadas nela, as suas próprias motivações, as quais o levam, naquele momento, a embarcar numa jornada rumo a tudo o que desconhece. Neste momento, o filme chega ao seu ápice: ao embarcar na nave dos marcianos, ele entra numa cápsula onde um líquido o cobre dos pés à cabeça, porém sem sufocá-lo. A temática da infância que se desenvolvia desde o início atinge o ponto máximo nessa analogia entre o que se passa com Jim e um bebê no ventre materno, para quem o mundo ainda é um magma de potências. Como em O Pagamento Final, em que De Palma mostrava em planos-contraplanos os olhos de Carlito e a sua visão do Paraíso, aqui vemos o rosto de Jim e o que ele enxerga: não uma única imagem, mas flashes muito breves de toda a sua vida, dos seus amigos e da sua esposa, dos vivos e dos mortos, todos reunidos num fluxo de imagens difícil de ser assimilado porque disparado à queima-roupa. As imagens surgem na tela no tempo necessário apenas para marcá-la com alguns sentimentos, como aquele provocado ao vermos um casal posando para uma foto na lua de mel ou uma criança que sorri ao ganhar um telescópio no dia de Natal.

A regra em De Palma era a repetição, a condenação ao Mesmo. Em Missão: Marte, tudo é mudança e cada acontecimento, seja um reencontro, uma despedida ou uma morte trágica, desdobram-se em novas circunstâncias às quais é preciso se adaptar a fim de desbravá-las, até o momento em que novas transformações aconteçam. Os astronautas do filme aceitam o que lhes é dado a viver, sem cair nas tentações de controlar os demais à sua volta ou de ter o mundo aos seus pés. Se a realidade não deixa de fasciná-los, oferecendo infinitas possibilidades as quais os impelem a seguir adiante, é porque, ao invés de agirem com soberba, subindo nos próprios ombros, eles preferiram retornar à infância, apequenando-se para que tudo em volta pareça maior.

Matheus Cartaxo é editor e redator da Foco – Revista de Cinema e mestre em comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.

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