por Valeska G. Silva e Bruno Andrade
Uma parceria do Estado da Arte com a Foco – Revista de Cinema
Após terem seu navio abatido por um monstro marinho, o Professor Aronnax e seu aprendiz Conseil encontram-se à deriva em alto mar, presos a um mastro. Atravessam o oceano à noite, em meio a uma espessa bruma, até que avistam o monstro dos mares repousando tranquilamente nas águas calmas. Não vendo outra saída Aronnax e Conseil sobem na sua carcaça e dão-se conta de que se trata na realidade de uma espécie de embarcação ultramoderna. O arpoador Ned Land, outro sobrevivente, junta-se a eles pouco tempo depois. O milagre de um barco submersível ancorado e completamente desértico no meio do oceano é em pouco tempo superado por uma surpresa ainda maior: Aronnax e Conseil descem as escadas que levam ao interior da sofisticada embarcação (a qual possui instalações que lembram mais as de um castelo vitoriano, como a grande sala de reuniões com janelas redondas esverdeadas) e descobrem uma espécie de aquário por onde é possível observar o fundo do oceano. É aqui que a poesia, ou mais propriamente a fantasia, chega a um ápice que o cinema poucas vezes alcançou: os dois náufragos deparam-se com a tripulação do submarino realizando uma cerimônia de marcha fúnebre no fundo do oceano. É preciso comentar, antes de qualquer coisa, que o trabalho cenográfico e a fotografia desse filme na enorme tela CinemaScope permanecem ainda hoje, mais de sessenta anos após a sua realização, insuperados. A obra de Jules Verne, transposta para o cinema por Richard Fleischer, não é apenas uma grande aventura exótica (mesmo para a nossa época), mas uma grande reflexão filosófica sobre o fracasso do gênio humano, uma grande e inspirada marcha derradeira.
Quando criou a cultura, quando precisou de um utensílio como extensão do seu corpo para a execução de atividades, o homem fatalmente se enveredou na perda da noção dos seus limites. Aqui a encarnação última deste anseio e desta ameaça seria o submarino Nautilus. Minucioso, Fleischer encara essa evolução como o momento em que o homem excede a fronteira que separa civilização e barbárie, tanto para o bem (a barbárie dando lugar à civilização) quanto para o mal (a civilização dando lugar à barbárie), uma vez que o homem de gênio – cuja encarnação última seria o Capitão Nemo interpretado por James Mason – é capaz das mais horripilantes ações. É assim que, vista em perspectiva, a obra de Richard Fleischer, que habitualmente trata dos problemas da nossa violência natural e da nossa capacidade de autodestruição, examina nos três filmes fantásticos que realizou no período mais fecundo de sua carreira – 20.000 Léguas Submarinas (1954), Viagem Fantástica (1966) e O Fabuloso Dr. Dolittle (1967) – a utopia de um aperfeiçoamento de toda empreitada humana através do progresso tecnológico, sem camuflar a sombra que eventualmente se espreita quando esse progresso é orientado para fins mais perversos.
Em 20.000 Léguas Submarinas o rancoroso e assassino Capitão Nemo possui uma ligação com a civilidade muito maior do que desejava: o gênio que idealizou o monumental Nautilus vive em exílio com alguns poucos homens de confiança, “prontos para viver e morrer”, atacando e naufragando de forma utópica e suicida os navios “que alimentam as guerras no mundo”. Tentando interromper a corrente do mal, a tal perda de limite que impulsiona o homem da civilização para a barbárie, Nemo apenas acentua e aprofunda esse deslimite, apenas reforça os anéis da corrente da qual tentou um dia se desgarrar. É pelo ponto de vista do Professor Aronnax, ocupado em entender as motivações de Nemo e tudo o que cerca a existência do Nautilus, que testemunhamos a barbárie na ilha de Rorapandi, “a sepultura do homem branco”, uma colônia penal na qual escravos são forçados a extrair matéria-prima bélica, onde o capitão no passado esteve preso enquanto sua esposa e filho eram torturados até a morte. A complexidade do gênio humano nos é assim revelada em todas as suas faces: o homem Nemo, capaz de grandes feitos, é tragado pela luta vingadora e odiosa que coloca em risco sua vida e de toda a tripulação a cada ataque contra as embarcações. Podemos, então, concordar com o arpoador Ned Land, interpretado por Kirk Douglas, acerca da vileza do capitão. Ned – homem impetuoso, acostumado à liberdade nos mares, à vida desregrada com muitas mulheres, aos prazeres simples em oposição à vida regrada do professor ou à vida destemida de Nemo – deseja escapar do submarino, emergir, retornar à superfície, ao passo que Nemo sente não ter mais nada a perder e submerge cada vez mais nas profundezas. Esse movimento caracteriza a luta de Ned pela liberdade, e curiosamente é a avidez pela vida simples que constitui as correntes, os grilhões que prendem o arpoador à sua condição de homem rústico, que o impedem de ascender ao mesmo nível do gênio desgarrado de Nemo, mas o tornam capaz de gestos grandiosos diante do risco iminente e fazem com que ele encontre em Nemo o seu antagonista, alguém que se opõe diametralmente à sua pulsão de vida.
É neste filme que Fleischer cristaliza as preocupações e ambições que desenvolverá subsequentemente no quadro do grande cinema de espetáculo hollywoodiano: o grande ganho no enquadramento com o advento do CinemaScope; a ousadia nos contrastes e saturações das cores primárias, que criam universos plásticos realmente inesquecíveis; a maneira como constrói as situações dramáticas espacialmente, deslocando ambientações inteiras sem poupar orçamentos; um trabalho de aprofundamento psicológico que explora a tensão tanto nas pequenas coisas intimistas e reveladoras de um espírito conturbado, pronto a qualquer tipo de desenlace, quanto nos momentos de grande explosão do temperamento humano em ambientações de grande movimentação; um olhar dotado de um senso de compaixão e piedade para com o homem mais venal, um olhar que não se corrompe e alcança o entendimento das complexidades; o destaque dado à inteligência e a forma como as personagens que possuem o controle pleno dela conseguem convertê-la em gestos e ações dotadas de ternura, generosidade e coragem. Aparentemente sincrética, a obra de Fleischer tem sempre a mesma base, independente do universo abordado: “os jogos da justiça, a partilha das recompensas e dos castigos, ou ainda os poderes da inteligência.”[1]
“… as sementes da guerra. Carregam toda uma carga de morte, e quando aquele navio zarpar para casa, o mundo morrerá mais um pouco.”
Em Viagem Fantástica, de 1966, a ciência já avançou exponencialmente. Apesar de ter como pano de fundo a Guerra Fria, quando o mundo ainda era dividido politicamente pela “Cortina de Ferro”, é o corpo humano que fornece o palco para uma zona de guerra: o filme descreve a possibilidade do encolhimento da matéria pelas mãos do Departamento Militar Americano, capaz de miniaturizar um exército inteiro e fazê-lo caber na tampa de uma garrafa se necessário. Ainda na primeira sequência acompanhamos a aterrissagem de um 707 e é aqui que vemos Fleischer exercitando à excelência seus talentos de plasticista e geômetra: a tela CinemaScope é repentinamente tomada por um verdadeiro balé construído pela montagem, que alterna o movimento das rodas do avião com a entrada em cena das pernas dos soldados. A enorme abstração condensa a gravidade do que assistimos em seguida: um senhor de aparência frágil desembarca, sofre um atentado terrorista logo em seguida, é ferido e acaba com uma lesão cerebral. Uma equipe médica é colocada dentro de um submarino que é encolhido e inserido no corpo deste homem para que uma intervenção cirúrgica seja feita sem riscos à sua vida, pois há uma questão de segurança nacional em jogo: ele é o único guardião do segredo que permite que o processo de miniaturização dure indefinidamente, algo até então impossível, pois tudo que é encolhido volta ao seu tamanho natural após sessenta minutos. A dinâmica de tensão entre os integrantes desta expedição médica é estabelecida pelo tempo escasso imposto para a execução da missão, o que acaba por revelar o potencial perverso e egoísta de uns e a vocação à coragem e sacrifício de outros. Enquanto a tripulação se une encontrando soluções para toda forma de dificuldade à frente, o médico encarregado da missão, Dr. Michaels (Donald Pleasence), revela-se um paranoico, fraco e sabotador, com atitudes de exclusiva autopreservação, acabando inevitavelmente por colocar a segurança de todos e a sua própria em risco. Se em 20.000 Léguas Submarinas era Ned quem tomava a atitude crucial na hora mais crítica, aqui temos o agente Grant (Stephen Boyd), que apesar de não entender nada de medicina (e por isso reluta a princípio em participar da jornada) é a pessoa que no momento decisivo assegura o melhor desenlace para os objetivos da missão.
O passo adiante é dado em O Fabuloso Doutor Dolittle. A história do médico que fala com os animais – criada pelo autor Hugh Lofting numa série de cartas ilustradas que enviou aos seus filhos enquanto combatia nas trincheiras durante a Ia Guerra Mundial – forneceu a Fleischer a matéria do seu filme mais fantasioso, uma curva fora da sua carreira. Aqui o progresso é de fato uma extensão integralmente positiva de uma faculdade humana, o mais natural dos utensílios de que o homem é dotado: a linguagem. Doutor Dolittle, uma espécie de proto-abolicionista animal, encontra no convívio com os animais uma forma de não ter que lidar com a hipocrisia humana e suas bravatas mesquinhas. Aprende assim com Polinésia, sua ave poliglota de quase 200 anos, a linguagem de todos os animais, e com seu estilo de vida incomum ascende a um patamar de bondade que nenhuma situação conflituosa consegue abalar. É a própria fantasia que se desgarra do ponto de vista frequentemente lúcido e racional do autor para atingir a imagem mais singularmente fabular de sua obra: um homem disposto a tratar de todos os animais do universo, mesmo que estes estejam na lua.
Se em 20.000 Léguas o tratamento dado por Fleischer à narrativa e às convenções do gênero fantástico é quase que escrupulosamente realista, uma vez que a fantasia existe no interior de um quadro que é incorporado por uma construção dedicada à critica da desmesura humana, em Viagem Fantástica o realismo da premissa (a aventura, a missão) e o irrealismo da exploração interior do corpo humano se equilibram, de modo que a descrição das falhas humanas funciona mais como um dado intrigante dentro da narrativa do que como um indício do fatalismo e da tragédia do gênio humano. Nos dois é o fantástico que claramente alimenta a veia realista do cinema de Fleischer. Já em O Fabuloso Doutor Dolittle Fleischer – sem abandonar a perspectiva crítica, aqui atenuada pela singeleza da abordagem do conto infantil – acolhe um universo em que tudo pode tornar-se realidade e existe para alimentar o espetáculo da fantasia. Longe de constituir uma síntese entre o ponto de vista realista e a inspiração mitológica que estão na base do cinema de Fleischer, tal como ocorre em 20.000 Léguas e Viagem Fantástica, no musical de 1967 o cineasta investe sua imaginação principalmente no lado sincrético e extravagante do espetáculo, chegando à criação de uma realidade que é ela própria essencialmente fantástica.
Valeska G. Silva e Bruno Andrade são críticos de cinema e editores da revista Foco.
[1] Serge Daney, “Os Paradoxos de Fleischer”, Cahiers du cinéma nº 188, março de 1967, p. 66.