por Jeffis Carvalho e Miguel Forlin
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Godard. 90 anos. Como se homenageia um artista cuja obra, do início aos dias de hoje, é um processo revolucionário contínuo, eterno presente de transformações e contemporaneidades, em que passado se acumula e futuro se vislumbra? Como estabilizar, em recorte específico, uma figura fugidia, areia que escapa entre os dedos para juntar-se à praia de águas misteriosas?
Godard, com seu imenso caleidoscópio de imagens criadas, compostas, dirigidas, é daqueles artistas únicos — um dos maiores que surgiram no prodigioso século XX — que quase nos impede de destacar isso ou aquilo de sua obra, sem corrermos o risco de reduzi-la. De Acossado (1959) à Imagem e Palavra (2018), os seus filmes, quase sempre radicais em sua estética e proposta, revolucionários em sua forma e disruptivos em sua concepção, nos levam de um tempo a outro, de um discurso a outro, de um plano a outro, de um corte a outro, a uma arrebatadora sensação de que estamos diante de algo muito além de uma obra cinematográfica. Estamos ali, por nossos olhos, sendo cúmplices de um acontecimento, de um momento efêmero, mas também eterno.
A arte de Godard, tão moderna quanto a própria ideia de modernidade — fragmentária, indulgente — nos traça um painel de nossa civilização vista sob o olhar de uma câmera investigativa que se quer detetive e objeto analisado, testemunha e acusador, cúmplice e vítima, tudo ao mesmo tempo, agora, no caldo mesmo da máxima moderna: o mal-estar permanente. Godard nos pede atenção e não nos dá nada em troca, como só os grandes artistas são capazes.
Em meio a esse turbilhão de ideias, lá onde o cinema se descobre farsa e verdade possíveis, vinte e quatro quadros por segundo, Godard nos provoca, nos assusta e sempre nos tira da zona de conforto. Ele chega aos 90 anos, e nos cabe apenas constatar: nunca Godard foi tão importante.
Na totalidade do universo cinematográfico godardiano, talvez seja imprudente destacar exclusivamente isso ou aquilo. Mas de todo o Godard que vimos ao longo das décadas, existe uma sequência que nos veio à mente de imediato, pela capacidade que o cinema possui de atingir o caráter de pensamento. O filme é Duas ou três coisas que sei dela (2 ou 3 choses que je sais d’elle, 1967). Enquanto um personagem diz em off uma reflexão essencialmente política, com menções a Marx, a câmera se desloca dele para as belas mulheres que se encontram no local, em algumas mesas. Depois, no auge da reflexão, a câmera se concentra na xícara de café que acaba de ser servida. O plano é fechado mais e mais, e em super close vemos a imagem do café que acaba de ser misturado pela colher. Ali, naquela imagem, Godard nos dá, no movimento do líquido e na sua espuma, uma galáxia inteira, uma Via-Láctea.
A imagem penetra em nossa retina, nos acompanha para sempre. A mise-en-scène de Godard nos coloca diante da infinitude do universo, a nos provocar tal como fez William Blake em seu poema Augúrios da Inocência, do início do século XIX:
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Ver o mundo em um grão de areia
E o universo em uma flor silvestre,
Tomar o infinito em sua mão
E a eternidade em uma hora.
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