por Miguel Forlin
Nas últimas semanas, as duas sedes do Instituto Moreira Salles consagraram parte de suas programações ao cinema de Jean-Pierre Melville. Embora não tenham sido exibidos todos os filmes do diretor, a curadoria tratou de incluir nas mostras os principais títulos. Inicialmente, a presença de tal evento pode muito bem ser interpretada como mais uma das séries de retrospectivas que ocorrem em instituições dessa natureza. No entanto, de maneira não deliberada, ela possibilita reflexões pertinentes sobre alguns assuntos.
A principal delas (e a única que será abordade neste artigo) encontra ecos na seguinte declaração dada por James Gray:
“Jean-Pierre Melville dizia que é preciso mais coragem para fazer um filme clássico do que um filme moderno. Contar uma história elegante com uma mensagem complexa é qualquer coisa de brutal. Não é o que está na moda. E parece haver uma recusa do sentimento, do melodrama. Hoje, a única coisa que se faz quando se realiza uma obra de arte é criar uma distância irônica. Nunca se corre o risco da emoção. Olhamos para os filmes como obras de arte numa parede” (tradução de Bruno Andrade).
Claramente, Gray está criticando o realismo caricatural que tomou conta das produções contemporâneas. Contudo, ao mencionar o diretor francês para corroborar o seu comentário, ele alimenta uma discussão interessantíssima.
Nascido em 1917 e tendo lutado na Resistência durante a Segunda Guerra Mundial, Jean-Pierre Melville começou a sua carreira cinematográfica em 1946, com o curta-metragem 24 Horas na Vida de um Palhaço. Portanto, o primeiro filme do cineasta foi realizado doze anos antes do lançamento de Nas Garras do Vício, longa de Claude Chabrol que inauguraria a Nouvelle Vague. Todavia, como o auge de sua carreira se deu nas duas décadas seguintes, quando os filmes Dois Homens em Manhattan, Léan Morin, O Padre, O Samurai, O Exército das Sombras e O Círculo Vermelho foram lançados, a sua carreira se desenvolveu paralelamente às de Jean-Luc Godard, Alain Resnais e de outros da Nova Onda francesa, o que acabou por empalidecer o classicismo do cineasta diante do radicalismo dos diretores supracitados. Na época em que o experimentalismo formal era sinônimo de qualidade, as narrativas elegantes não constituíam o recurso estético mais requisitado.
Entretanto, numa daquelas ironias finas que apenas a história é capaz de realizar, torna-se muito curioso o fato de que o cinema de Melville, assim como os de Alfred Hitchcock, John Ford, Howard Hawks e Nicholas Ray, seja um exemplo perfeito da “Teoria do Autor” abordada inicialmente por André Bazin e Alexandre Austruc, desenvolvida mais profundamente pelos críticos da Cahiers du Cinéma e nomeada posteriormente por Andrew Sarris. Sem exceções, os principais filmes do artista francês sempre contêm variações ou extrapolações das convenções que definem um determinado gênero cinematográfico. Ao mesmo tempo que se reconhece um padrão de características e bases fundamentais, percebe-se um artista testando o normativo ou flertando com os limites narrativos e estéticos de uma arte que ainda se encontra nos estágios intermediários.
É verdade que o diretor não era incomodado por exigências externas, já que a produtora era sua e não havia ninguém acima na hierarquia profissional. Como ele mesmo disse: “Acho o que o primeiro filme deve ser feito com o próprio sangue”. Assim, a escolha de fazer um cinema mais “comercial” foi inteiramente deliberada e consciente. Se, à primeira vista, isso parecia um suicídio artístico, uma vez que as vanguardas proliferavam na época em que ele surgiu, a história tratou de lhe fazer justiça e de ver por trás dos seus filmes um cineasta genuíno e autoral. No entanto, até que esses adjetivos surgissem completamente, existia uma trajetória de ascendência a ser percorrida.
Nos longas-metragens iniciais, como O Silêncio do Mar e Bob, O Jogador, é evidente a tentativa de desenvolver temas e consumar um estilo cinematográfico. Porém, tanto o primeiro quanto o segundo naufragam sobre o peso dos filmes de guerra e dos “heist movies”, respectivamente. Uma parte considerável da estética do diretor já se mostra presente, como os movimentos de câmera e técnicas de montagem que caracterizariam os filmes posteriores. Porém, as preocupações temáticas, cuja recorrência é uma das principais marcas para se reconhecer um cinema autoral, ainda não são desenvolvidas plenamente. No caso da produção de 1956, chama atenção a maneira paciente e cuidadosa com que a narrativa estabelece os personagens e as ambiguidades de caráter simplesmente para culminar numa trama banal e simplória.
Já nas obras posteriores, esse erro seria evitado. Aliás, se pegarmos O Samurai como exemplo, ou para ser mais preciso, o primeiro ato do filme, chegaremos à quintessência do cinema do diretor. Após realizar um crime, o protagonista interpretado por Alain Delon constrói o seu álibi para que a polícia não o prenda, mas isso termina por não ser suficiente e, sob custódia, ele fica à mercê da memória subjetiva das pessoas que testemunharam o assassinato. Avaliações superficiais diriam que essas cenas poderiam ser mostradas em apenas alguns minutos e não de uma forma tão arrastada. Não obstante, ao fazer isso, Melville dá vida a uma sequência deslumbrante, em que a melancolia e o tempo se juntam para retratar a imensa solidão do sujeito desprovido de sentimentos reais. De certa maneira, mas do lado oposto do espectro ético, pode-se dizer o mesmo de O Exército das Sombras, por exemplo, em que o centro da narrativa é constituído lentamente a partir dos movimentos corporais e das expressões faciais dos que lutavam na Resistência.
Invariavelmente, o reconhecimento desses aspectos acabam por nos levar ao coração da filmografia do cineasta: a moralidade. Melville estende as cenas ou as desenvolve lentamente porque vê nelas os momentos em que o agente de uma boa ou má ação, diante de oportunidades de desistir, para o bem ou para o mal, escolhe por permanecer no caminho trilhado. O desdobrar temporal de uma biografia é sempre a assertividade de um comportamento moral e social. Dessa maneira, em O Samurai, o protagonista não está apenas tentando escapar das garras da lei, mas optando por se afundar na mentira e na corrupção interna; e em O Exército das Sombras, os homens que vão de um lado para o outro não estão somente concretizando uma missão, mas insistindo no heroísmo, mesmo quando tudo ao redor indica que a morte está à espreita.
A técnica que dá vazão a essa temática ocorre também através da exploração do potencial presente em cada convenção. Essencialmente, trata-se tanto da subversão quanto da potencialização de algo que é, infelizmente, considerado inferior por críticos e teóricos. Sobre O Samurai, o próprio Melville admite: “O cinema noir é um excelente veículo para desenvolver temas humanos”. No caso específico do cineasta francês, o resultado disso são filmes clássicos, de narrativas elegantes e com mensagens complexas. Após tantos radicalismos e experimentações, isso pode não parecer original, mas exige muita coragem e, quando a vanguarda se transforma em algo corriqueiro, ser “convencional” é a única ousadia possível. Isso já era vislumbrado nas décadas de 1950 e 1960. Nos dias de hoje, se tornou explícito.