por Jeffis Carvalho
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Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
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Procura da Poesia
Carlos Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo
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Eu contarei, diz a enfermeira à atriz emudecida, sua paciente. Contará sobre o filho indesejado da mulher que se refugia no silêncio. O rosto é da atriz, que ouve o seu próprio drama, reage diante de nós, espectadores, e conosco comunga uma verdade dura, crua. O conhecimento dói, misto de desespero estampado no rosto, impresso na pele e compartilhado no olhar. A câmera penetra surdamente no reino das palavras, em busca das imagens, à procura do cinema.
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Uma das grandes obras de arte do século XX, Persona,[*] de Ingmar Bergman, lançado em 1966, permanece novo a cada vez que o vemos, que o contemplamos e nos sentimos desafiados a compreendê-lo por meio de suas poderosas e belas imagens, únicas em sua dimensão oral. Nunca a palavra foi tão desafiada pela imagem, e vice-versa, como na obra-prima de Bergman, monumento ao diálogo — que se vale da forma monólogo para nos lançar no reino da polifonia. Persona é o estado da arte da oralidade no cinema.
À procura da imagem necessária, do filme pensado, do cinema possível, Bergman abre sua obra com um poema cinematográfico, manifesto de sua intenção de penetrar, como o poeta Drummond, no reino das palavras, mas também no universo das imagens em estado de fotogramas, como a nos dizer que ali está a poesia e, por consequência, o cinema. O seu próprio cinema. Não à toa, o cineasta pensou em chamar o filme de Kinematograf (Cinematógrafo).
A enfermeira Alma (Bibi Andersson) contará à estrela do teatro Elisabet (Liv Ullmann) o que sucedeu a seu filho como se ela própria fosse a atriz, nesse jogo de máscaras, de personas, como no teatro grego clássico. As duas mulheres, em retiro na praia, vivem um intenso envolvimento emocional. Alma fala sem parar, enquanto Elisabet permanece muda, em total silêncio, desde que se viu paralisada em pleno palco, na encenação de Fedra, de Racine.
Duas primorosas sequências se destacam e ilustram a nossa leitura. Como só Alma exerce o dom da fala, temos dois intensos monólogos de Bibi Andersson. Mas Bergman nos dá o pleno exercício proposto pelas máscaras, principalmente na ousadia com que conduz cada uma destas cenas, sem receio de ser até mesmo repetitivo — o que para o cineasta não é empecilho para a sua originalidade estética, muito pelo contrário.
A primeira sequência, que os envolvidos nas filmagens — o diretor, as atrizes e a equipe — apelidaram de “a narração” é a cena em que Bibi conta a Liv o que se passou na praia com Katarina e os dois garotos que elas conhecem.
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Na entrevista[1] que fez com Bergman, Stig Björkman descreve a decupagem da cena: começa por um plano a distância de Bibi, que está sentada numa cadeira e conta a sua história. Em seguida, plano a distância de Liv que está sentada em sua cama e escuta. Em seguida, plano médio de Bibi e plano médio de Liv, depois close de Bibi e close de Liv e vemos, no fim da cena, Bibi em plano a distância, ela anda e fuma um cigarro. Novamente um close de Liv, depois Bibi mais uma vez e, em seguida, elas estão na cama em close, e tudo isto sem interrupção do diálogo.
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Sobre a cena, diz Bergman:
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Se você observa o rosto de Liv, ele se torna cada vez maior. É fascinante: os lábios se engrossam, os olhos se tornam sombrios, todo o seu “eu” se transforma em uma espécie de cobiça. Há aqui um perfil de Liv que é prodigioso. Vemos seu rosto se transformar, ele fica como uma máscara fria e voluptuosa ao mesmo tempo.
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Ele explica como dirigiu a atriz:[1]
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Antes de filmá-la, eu tinha dito à Liv para concentrar toda a sua sensibilidade sobre os lábios. Ela devia concentrar sua sensibilidade neste lugar preciso do rosto e vocês sabem que isto é possível, os atores, principalmente, podem colocar suas emoções em diferentes pontos do corpo, num dedo da mão, num dedo do pé, numa nádega ou sobre os lábios, e foi o que lhe pedi para fazer. E é justamente isto que lhe dá esta aparência curiosa, ela escuta com atenção.
Pois o importante na cena não são somente as expressões de pavor um pouco vulgares de Bibi e a sua estupefação diante do que se passou, mas é também que Liv escuta, o receptor está submetido a um bombardeamento que o estimula. É tão importante quanto é quase erótico.
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Eu contarei, diz a enfermeira à atriz emudecida, sua paciente. Contará sobre o filho indesejado da mulher que se refugia no silêncio. O rosto é da atriz, que ouve o seu próprio drama, reage diante de nós, espectadores, e conosco comunga uma verdade dura, crua. O conhecimento dói, misto de desespero estampado no rosto, impresso na pele e compartilhado no olhar.
A câmera penetra surdamente no reino das palavras, em busca das imagens, à procura do cinema.
Neste monólogo de Bibi, na cena de maior intensidade emocional de todo o filme, Bergman ousa, aventura-se por caminhos nunca explorados.
Eu contarei, diz a enfermeira à atriz emudecida, sua paciente. E conta, em off, uma vez que a câmera está em Liv, o close é da atriz que ouve a história que é a sua própria experiência com a maternidade. São mais de três minutos de narração e acompanhamos o rosto de Liv, que sem dizer uma palavra, na falta da própria voz, fala e diz muito em cada expressão, em cada encarada, em cada desvio do olhar.
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Eu contarei… E passamos a ver o rosto de Bibi e os mais de três minutos seguintes são ocupados exatamente pela mesma história, palavra por palavra, que acompanhamos na mesma voz de Alma e agora no rosto de Bibi.
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O grande roteirista Jean-Claude Carrière conta² que Luis Buñuel,
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ele próprio fascinado pela repetição de uma ação, (como se pode ver em O Anjo Exterminador) falava com frequência dessa cena de Persona, sem dúvida audaciosa e singular. Em 1972, tive a oportunidade de passar um tempo com Bergman e fiz — em nome de Buñuel e no meu próprio — a inevitável pergunta (que ele, com certeza, já ouvira uma centena de vezes: por que essa repetição?
Ele respondeu, com toda a simplicidade, que aquilo nunca fora sua intenção, nem enquanto escrevia o roteiro nem durante as filmagens. Ele tencionara montar essa sequência de narração do jeito que elas são montadas: em geral, cortando diversas vezes do rosto de uma mulher para o rosto da outra. Então, na calma obscura da sala de montagem, percebeu que não sabia onde cortar, que todo aquele movimento de vai-e-vem acarretava tensão, tumulto e bruscas mudanças emocionais. Alguma coisa não funcionava bem. Por este motivo, decidiu manter os dois relatos, idênticos quanto ao texto falado, diferentes visualmente, um após o outro.
Bergman acrescentou:
— A história que você conta não é a mesma que a pessoa ouve.
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Eu contarei…
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Notas:
[1] O Cinema Segundo Bergman, Entrevistas com o Diretor, por Stig Björkman, Torsten Manns e Jonas Sima (1973).
[2] A Linguagem Secreta do Cinema, Jean-Claude Carrière (1994).
[*] O autor deste ensaio optou por nomear o filme com seu título original, tão perfeito para a visão de Bergman. E desprezar, em forma mesmo de protesto, o infame título em português que recebeu no Brasil, o qual aqui nem se ousa reproduzir.
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