por Thiago Blumenthal
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Quando o jovem Elio hesita em dançar com a turma e prefere ficar fumando na mesinha, esquadrinhando todos os movimentos a uma distância segura, em especial o modo como aquele que viria a tornar-se a sua obsessão amorosa, Oliver, se atrapalha com as garotas ao som de Love My Way, temos um recorte do que Roland Barthes chamaria de ideia amorosa como sintoma de “la folie” (um termo de tradução vaga, mas algo como um arroubo impensado, não “loucura”), em que o sentimento, a princípio caótico, se concretiza no discurso. Linguisticamente falando, o amor estaria condicionado à fala, sem a qual o sujeito não ama ou ama mal. Um exemplo é o desdobramento da cena descrita, quando Elio larga o seu cigarro e junta-se a todos, em forma de linguagem — sua linguagem corporal se destaca — a fim de mostrar-se apaixonado. Ou confusamente apaixonado.
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Não estamos falando de um filme do finado diretor francês Éric Rohmer (1920-2010), evidentemente, objeto de estudo deste artigo, mas antes do aclamado filme Me Chame pelo seu Nome, de 2017, adaptação de Luca Guadadigno da obra de André Aciman. Um momento que poderia ter saído de qualquer filme de Rohmer: há a questão da dança, as falas, a juventude, as descobertas e o elemento de descontrole, no caso, impulsionados pelo sentimento e pela música arrebatadora que surge espontaneamente do DJ italiano da simpática festinha.
Rohmer, figura um tanto quanto à margem da Nouvelle Vague mais popularizada, tem uma filmografia enorme, produziu incansavelmente até a morte e é chamado por alguns, o que não concordo, como o mais literário dos cineastas do cinema francês, por ter, em muito de seus filmes, longas cenas de puro diálogo, em que a ação, no sentido mais amplo do termo, se dá pela inação ou hesitação de suas personagens. Falam muito, pensam muito e hesitam em agir. Como Elio. Contudo, o elemento do acaso, por vezes a contragosto das personagens, coloca amores em ação e pequenas aventuras em movimento — que podem dar certo ou não. É o risco.
Quase como uma teologia, mais do que uma filosofia, as histórias do amor em Rohmer se rebobinam entre personagens, em geral jovens estagnados com algum tipo de insatisfação e que buscam, pela linguagem e pelo arroubo, uma saída para seus dramas íntimos, tantas vezes temporários e até efêmeros. Poderíamos chamar de “dramas existenciais”, mas o termo soa inadequado para Rohmer. A hipótese aqui levantada é a de que o arroubo (“la folie”) responde a desolações cotidianas — de ordem amorosa ou não — ainda que ao decorrer da história tudo se desmanche, que as experiências outrora prazerosas — que criaram alguma expectativa e uma euforia — deixem de fazer sentido porque já não mais pertencem à maior de todas as verdades: a do acaso, que, como uma entidade divina ou sobrenatural, intervém — algo ao mesmo tempo tirado e subvertido da tragédia antiga. É o beijo interrompido pelo som ensurdecedor do avião supersônico, nas palavras do pensador belga Eric de Kuyper. O avião é D’us, como as cartas de baralho encontradas inesperadamente por Delphine e a conversa de ouvido de um grupo de pessoas que mencionam Jules Verne e o seu conceito de raio verde, que dá título ao filme de 1986, e que serve como revelação à protagonista, o divino e o seu poder revelados no instante ínfimo do raio verde do pôr do sol.
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A fim de delimitar este artigo em uma reflexão adequada diante da enorme filmografia de Rohmer e respeitando o tempo médio do leitor para uma leitura online, optei por ilustrar algumas dessas ideias com os filmes das quatro estações, primeiro porque são os mais conhecidos pelo grande público e segundo porque se encaixam de maneira perfeita à hipótese.
Rohmer filmou o seu Conto de Primavera em 1990, para depois dar continuidade com as outras estações em 92 (Inverno), 96 (Verão) e, por fim, em 98 com seu Conto de Outono. Entre esses filmes realizou outras obras, de menor impacto. Óbvio que as estações funcionam como pano de fundo em termos de cenário, mas também de estado de espírito, por assim dizer, ainda que sempre sob o signo da hesitação e da suspeição.
Considero Conto de Verão o mais significativo, o melhor executado em termos formais e temáticos e aquele em que a música (como no caso de Elio e Oliver) é empregada como instrumento de linguagem de transmissão de um sentimento. Nele temos Gaspard, um protagonista musicista, passando uma temporada na costa da Bretanha, para pesquisar um pouco da tradição musical local, para compor e também porque combinara com uma inconstante namorada — a chegar lá dias depois. Neste ínterim, ele conhece Margot, que trabalha em um restaurante local, além de fazer um doutorado em etnologia. Tornam-se amigos, mas com uma tensão sexual sempre presente e um desejo que fica entre o implícito e o explícito.
Margot funciona como uma máquina consciente fora da cabeça de Gaspard, como se a reproduzir seus pensamentos e suas dúvidas em voz alta, em seus diálogos, o que perturba o jovem, mas, ao mesmo tempo, o mantém atado a essa garota que demonstra uma profunda afeição a ele e parece ter o poder de entrar em sua cabeça e mexer com toda sua tralha caótica, matéria-prima do nosso pensamento. Mais adiante, ele conhece outra garota, esta de uma filosofia mais pragmática, “sim, sim”, “não, não”, “vai ficar comigo ou não?” Ele não sabe, hesita e acaba se entregando (la folie) a um fim de semana, no mar, com ela e a sua adorável família, cantando canções que evocam aventuras pelos lugares mais disputados por antigos piratas, entre runs e amores.
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Lena, a namorada, completamente sem graça, comparada às garotas que Gaspard conhecera ali, enfim chega na Bretanha, e a cabeça de Gaspard implode. A folie vivida com aquelas personagens tão diferentes e tão adoráveis, frutos do acaso — um solitário em uma cidade em que é forasteiro cria relações íntimas e transformadoras, uma constante, aliás, na construção narrativa de Rohmer — se desvanece com o lançar de dados. Ainda assim, o fato de Gaspard ter se entregado a esses arroubos de “verão” deixam perpassar a ideia de que ou condicionamos nossa vida a esses arroubos e a esses acasos ou passaremos boas madrugadas nos revirando com o que estamos fazendo de nossas vidas.
Como disse, há uma curiosa e bem arquitetada teologia nisso tudo. A intuição, grosso modo, é uma chave que ora abre ora fecha portões que deixam o sol entrar — daí a imagem do verão, neste filme em específico, algo de ordem psicanalítica, do qual Sigmund Freud tratou em alguns de seus textos, entrando marginalmente na questão dos lapsos, fundamental para o cerne do pensamento freudiano.
Após a aclamação de seu ciclo anterior de filmes, que chamou de Comédies et Proverbes, Rohmer sabia onde pisava: tinha o seu público, algum dinheiro — em especial para filmes de baixo orçamento — e uma maturidade como uma espécie de educação sentimental, no sentido flaubertiano. Em termos de mise en scène e na economia de narração retrospectiva (que “contextualiza”, como dizem os mais jovens, mimetizando expressões de pensadores de séculos atrás), é o mesmo Rohmer, mas, no ciclo das estações, o elemento da música — como linguagem, bom dizer — ganha espaço e define caminhos e destinos, inconscientes ou designados por deuses.
Há quem defina o ciclo das estações como o microcosmo do universo fílmico de Rohmer. Independentemente disso, à reflexão cabe um desdobramento analítico. O apego a algo ou a alguém, ou, via inversa, um ideal de desapego (veja bem, somente ideal, cosa mentale) e a descoberta da alma a ser amada e desejada sempre comoveram Rohmer. Mais do que isso, reconhecer quem é essa pessoa, o que, resvalando em Marcel Proust, talvez seja uma das questões mais difíceis da existência humana: o reconhecimento do par.
E, nesses quatro filmes, a fala e o diálogo, tão característicos em Rohmer, são substituídos, mais do que qualquer outra obra, por longos silêncios, demarcados pelo som da música ou pelo som da natureza. Sobretudo, pela música, vide o silêncio absurdo e contemplativo de Jeanne diante da sonata de Robert Schumann tocada no piano por Natasha em Conto de Primavera — e o close em seu olhar. O deslocamento musical — que substitui a fala — se converte em um deslocamento espacial, algo presente nos quatro filmes. Aliás, neste mesmo filme, Rohmer reduz Paris a interiores, mas em constante mudança de apartamentos e cenários, algo não muito visto em seus longas. Ainda que haja uma passagem no exterior, com uma paisagem que me parece explicitar a estação (a primavera), o filme interioriza tudo, mesmo a folie e o acaso — ao ponto de os personagens viverem, mais do que nunca, condicionados a esta busca pelo arroubo dos encontros e desencontros, sujeitos ao acaso, aos lapsos e às suas tragédias particulares.
No conto de outono, há essa mesma sensação de deslocamento, mas quase temporal, quase como equação física, da passagem do tempo, entre duas estações, em forma de estação que intermedia dois extremos. Já na história do inverno, contudo, o deslocamento, com seus encontros casuais — absolutamente recheados de uma visão explicitamente religiosa da protagonista —, entre uma temperatura gélida mas de calor e afeição, cria a conexão com o Natal e a ideia de natalidade e maternidade divina.
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Esses vazios que não se preenchem mas que anseiam por preenchimentos transbordam no ciclo das estações, quase como elemento miraculoso, daí a questão teológica. O vazio e a solidão (ou a solidão acompanhada e sem rumo) estimulam essas pessoas, que somos todos nós, a encontrar um lar, como Jeanne, a professora de filosofia na história primaveril. São fantasmagorias de um interior que não se calam, que estão berrando por dentro, mesmo com o silêncio do diálogo, substituído pela música em estado de constante composição, como no caso de Gaspard em Verão ou no caso de Natasha em Primavera.
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Em Rohmer e de maneira cuidadosa no ciclo das estações, é a irrupção da graça como acaso que redime os personagens. O acaso pode ser catastrófico, mas trabalhar o acaso como essas personagens trabalham, em especial condicionando a vida à folie (não por acaso as personagens que interagem com as protagonistas as tratam como “avariadas” ou algo do tipo), na esperança, atemporal, de que tenhamos pequenos traços de felicidade, de luz e de surpresa, sem a qual a vida estaria toda datilografada e não entregue assim aos quatro ventos e aos sete mares.
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