Melancolia: a Dança da Morte

No segundo filme da chamada Trilogia da Depressão, Lars von Trier expõe a nudez emocional de uma personagem melancólica.

por Miguel Forlin

“Você não serve, você não serve,
Não serve mais, sapato negro
Em que eu vivi como um pé
Por trinta anos, branca e pobre,
Mal me atrevendo a um espirro sequer.”

Papai, de Sylvia Plath

Numa das missivas de Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Rilke diz que “uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade”, pois “é no modo como ela se origina que se encontra o seu valor”. Segundo Lars von Trier, Anticristo e Melancolia nasceram após um longo período de depressão clínica, no qual ele chegou a questionar se dirigiria algum filme no futuro. Portanto, ambos surgiram da necessidade de criar, seja para auto esclarecimento, seja para tratar de um tema que atinge milhões de pessoas ao redor do mundo. Mas, enquanto o primeiro adiciona ao luto de uma mãe doses maciças de niilismo e psicologia junguiana, o segundo é quase uma descrição fenomenológica da tristeza, a visão subjetiva de um depressivo sobre o fenômeno de sua doença mental.

Melancolia está dividido em três partes: um prólogo e dois atos. No prólogo, ao som do prelúdio da ópera wagneriana Tristão e Isolda, Trier associa imagens aparentemente desconexas, todas filmadas em câmera lenta e indicando pavor, aprisionamento e destruição. Nada se salva: nem os seres humanos, com a sua perecibilidade, nem as realizações artísticas, com a sua falsa eternidade. As referências a pinturas (Ofélia, de Millais, e Os Caçadores na Neve, de Pieter Bruegel, o Velho) e a outros filmes (como Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, e Solaris e Andrei Rublev, de Andrei Tarkovski) se juntam ao destino trágico das personagens numa grande explosão romântica e estilizada, a qual encerra essa espécie de overture marcado por dor e sofrimento.

Porém, no primeiro ato, algumas das cenas que se seguem imediatamente a essa abertura mostram o oposto. Justine (Kirsten Dunst)  ?  cujos dramas e nome têm uma ligação imediata com o livro homônimo do Marquês de Sade  ?  e Michael (Alexander Skarsgård) acabaram de se casar e, embora a limusine que os leva não consiga se acomodar ao tamanho da estrada de terra (um prenúncio da incompatibilidade do casal e do desconcerto que aparecerá mais à frente), os dois parecem felizes. Ao chegarem numa festa muito similar à de Festa de Família, filme-símbolo do Dogma 95, eles exibem uma série de sorrisos e gestos simpáticos. Tudo parece transcorrer bem.

No entanto, a câmera trêmula se desdobra em movimentos nervosos, e os jump-cuts transmitem inquietude. Num artigo intitulado Depois da Festa: o Efeito do Dogma no Cinema Dinamarquês, Peter Schepelern, professor do diretor na Universidade de Copenhague, admite que, em parte, o estilo defeituoso de Trier, exposto verbalmente nos dez mandamentos que formam o manifesto do Dogma 95, se deve ao desconhecimento das regras clássicas da gramática cinematográfica. Esse, aliás, é um problema que acompanha o cineasta até hoje. Mas, em Melancolia, o contraste entre os instantes de felicidade e a estética empregada para retratá-los cria uma dissonância que antecipa o mergulho da protagonista na depressão, doença que ela esconde por trás de máscaras sociais desde o início.

O que parece despertá-la é o discurso amargo e ressentido da mãe, interpretada por Charlotte Rampling. Dessa cena em diante, Trier intercala a festa com as andanças solitárias de Justine, nas quais ela se entrega ao sono, ao cansaço e aos instintos mais primitivos. Às vezes, o único elemento que estabelece um senso de continuidade é a trilha sonora, que, oscilando entre o diegético e o não diegético, continua tocando ininterruptamente durante os cortes bruscos da montagem. Mas até a trilha sucumbe, já que, ao passo que a condição da personagem se agrava (agravamento que é simbolizado pela deterioração do vestido de noiva), as canções da festa de casamento são substituídas pelo silêncio ou pela intromissão do prelúdio wagneriano, que é repetido como um refrão.

Posteriormente, ela tenta conversar com a irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), com a mãe e com o pai (John Hurt), mas todas as tentativas são em vão. Na obra-prima O Rei Pálido, David Foster Wallace, que se suicidou em decorrência da depressão, escreveu “Quão estranho é eu sentir tudo isso dentro de mim e para você serem apenas palavras”. Justine sente essa diferença o tempo todo. Não há nada que ela possa dizer que seja capaz de tornar a sua dor compreensível ou sequer palpável. A depressão é tão massacrante que destrói qualquer possibilidade de converter a experiência em discurso. No conto A Pessoa Deprimida, Wallace discorre sobre o drama da protagonista, que é idêntico ao de Justine, da seguinte maneira: “A pessoa deprimida estava numa dor emocional terrível e imparável, e a impossibilidade de compartilhá-la ou articulá-la era um componente da dor e um fator que contribuía para a essência do seu horror”.

Entretanto, com o passar do tempo, a situação piora vertiginosamente. Quando o segundo ato começa, Justine já se separou do marido, está desempregada e não consegue fazer coisas básicas, como levantar da cama e abrir a porta de um carro. Claire (nome tirado da peça As Criadas, de Jean Genet) busca ajudá-la, mas tem a sua própria preocupação: a possível colisão do planeta Melancolia com a Terra. Essa notícia a aterroriza, uma vez que teme pelo destino da sua família. Claire é diferente da irmã: pragmática e funcional, ela cuida da casa, do filho e do marido. A morte não está no seu horizonte, pois o conforto que a cerca a leva a acreditar que está segura de qualquer imprevisto. Porém, ao perceber que a destruição talvez esteja próxima, ela se desestabiliza completamente.

Justine, por sua vez, melhora ao passo que o planeta se aproxima, mas não se trata de uma evolução. As duas cenas em que o cavalo se recusa a atravessar a ponte expõem um significado distinto. Em Ariel, Sylvia Plath descreve o trajeto do seu cavalo, da escuridão extasiante em direção ao sol, à manhã, a uma nova vida. O de Justine, no entanto, para. Ela não está se recuperando, ela não está começando uma nova vida. Ela está melhor porque a morte chegará em breve. “A Terra é má. Nós não precisamos nos afligir por causa dela. Ninguém irá sentir a sua falta” é o comentário que ela faz numa conversa com a irmã. O fim a conforta, é a promessa de que a sua tristeza acabará.

Em si, a metáfora do planeta é a representação máxima do que a depressão faz com as suas vítimas. A melancolia engolfa as pessoas e tudo o que há de bonito e belo no mundo. A Terra passa a ser vista através das alterações do olhar melancólico. A fotografia azulada (em inglês, blue significa “tristeza”) é um reflexo da maneira com que Justine enxerga a realidade. Além disso, a melancolia traz embutida em sua natureza a ideia da morte como um alívio. Claramente, isso pode sempre resvalar no niilismo, mas o olhar do depressivo é um olhar doente, incapaz de dar significado às coisas que compõem o cotidiano e a trajetória de vida de uma pessoa. Não é uma visão de mundo originada a partir de uma reflexão filosófica e sim a distorção de um corpo e espírito enfermos.

No fim das contas, entre o jogo de perspectivas proposto pela distinção dos dois atos, tanto Claire quanto Justine têm algo a ensinar. Sim, é preciso aceitar que a mortalidade é um dado indissociável da experiência humana, mas também é necessário entender que os valores da beleza e do amor se sobrepõem e justificam todo o resto. Talvez as duas sejam dois lados de uma mesma moeda, talvez sejam pessoas completamente opostas. Porém, ao enxergarem metades diferentes do cenário, elas se completam. Já para Trier, parece ficar a noção de que, mesmo não sendo eterna, a arte tem um poder catártico que purifica todas as sujeiras inevitáveis da experiência concreta. A tristeza não pode ser evitada, mas existe a chance de nos elevarmos acima dela. É como diz Rilke: “O amor mesmo é apenas solidão, as obras de arte são duma solidão infinita, e nós somos essencialmente sós”.

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