“Moonlight”, sob a luz dos afetos

Muito se escreveu sobre“Moonlight” ser a jornada de um negro, pobre e gay em busca de sua identidade. Considero essa uma leitura simplista da ambição estética e filosófica do diretor Barry Jenkins.

por Jeffis Carvalho

Muito se escreveu sobre“Moonlight” ser a jornada de um negro, pobre e gay em busca de sua identidade. Considero essa uma leitura simplista da ambição estética e filosófica do diretor Barry Jenkins. O cineasta parece nos conduzir, ao contrário, a uma jornada libertária, nos levando a viver com o protagonista um épico da alma humana em busca da sua força como indivíduo, sua luta pela liberdade, inclusive frente à ditadura de uma identidade, principalmente a de grupo.

Segundo longa-metragem de Barry Jenkins,“Moonlight”venceu, merecidamente, o Oscar de melhor filme, e ainda levou as estatuetas de melhor roteiro adaptado – do próprio diretor e de Tarell McCraney, autor da história – e o de melhor ator coadjuvante para o excepcional Mahershala Ali.   O filme é dividido em três capítulos – “Little”, “Chiron” e “Black” – os três nomes usados para se referir à pessoa que seguimos desde a infância até a adolescência e a idade adulta.

Mais do que descobrir o que ele é, a trajetória de Chiron é feita de encontros. O lugar da identidade é substituído pelo lugar dos encontros. Para o filósofo Baruch Espinosa, o indivíduo é uma “unidade de composição”. Neste processo, são os encontros que decidem quando há conveniência ou inconveniência entre os corpos. Por se tratar de uma experimentação contínua da vida, vamos perceber que há uma variação de afetos, ou seja, quando se trata de um bom ou mau encontro.

“Moonlight” trata, então, desse tempo para os afetos. Talvez seja melhor dizer afetação, no sentido mesmo de causar algo e despertar possibilidades de mudança, de alteração. Daí a recorrência, na segunda parte do filme, denominada exatamente “Chiron” – o nome real do personagem –, de pistas sobre os corpos e as identidades: o estudo do DNA na sala de aula e a pergunta sobre o que são leucócitos – as células que atuam na defesa do organismo. Fala-se do corpo humano, de carga genética, ao mesmo tempo identitária e singular, porque cada indivíduo é único – e da defesa desse corpo. Paralelamente, mostra-se a degradação do corpo da mãe tomado pelas drogas. Ao mesmo tempo, paira uma pergunta no ar: o que pode um corpo?

A narrativa é estruturada como encontros de corpos que se afetam e, mais do que identidades, conquistam a individuação – atingem a singularidade que lhes permite seguir em frente. Como um dos filmes mais libertários já concebidos no cinema americano, “Moonlight” se apoia em uma sofisticada narrativa. Feito de olhares e silêncios, o filme nos diz mais e mais cada vez que o vemos e revemos. Jenkins trabalha em camadas conceituais que vamos descobrindo aos poucos e, juntos com Chiron, entendemos que, se a história contada à primeira vista pode ser comum, o seu protagonista é um ser pleno em sua singularidade.

Cena de “Moonlight”, de Barry Jenkins

Realizado no esquema independente, Jenkins celebra a origem desse tipo de fazer cinema bebendo na fonte de John Cassavetes. O cinema independente do pioneiro ator-diretor, segundo ele próprio, buscava a verdade de pessoas que “vivem com raiva e hostilidade, e problemas. E falta de dinheiro, com decepções tremendas na vida. O que eu acho que todo mundo precisa é de uma maneira de dizer: onde e como eu posso amar e ser amado de modo a viver com algum grau de paz?” Chiron não está só em busca de uma identidade – seja ela qual for. Ele busca desesperadamente por uma forma de amar e ser amado. E isso, muitas vezes, implica em ser maleável quanto à própria identidade. Afinal, esta também pode ser apenas mais uma forma de prisão. Jenkins conta a história de um negro pobre e gay para lhe conferir singularidade como um ser. Um ser humano. Jenkins nos fala mais de humanidade, menos de identidade. Acompanhamos a trajetória de Chiron e entendemos o quanto é provisória a expressão identitária e o quão pouco ela aponta para um modo singular de existir.

Em três tempos, o negro pobre e gay vai descobrir que mais do que aprender a ser alguma coisa, ele precisa é aprender a só ser, como diz a canção de Gil. E “ser” é ser afetado e afetar, por meio de encontros – bons quando atuam em sua potência – e maus quando enfraquecem sua força. O traficante Juan que “Little” encontra e ensina a nadar é um dos bons encontros – porque Jenkins não está preocupado em fazer sociologia e discutir a influência de um “mau elemento”. Chiron, quando vira “Black”, não se torna também um traficante por um determinismo social, mas porque um mau encontro – com Terrel – o levou à prisão e traficar acabou sendo o único caminho que encontrou para continuar exercendo a sua única identidade até então possível – a de sobrevivente.

Ex-estudante de cinema, Jenkins elabora sua sofisticada narrativa com um pé em Cassavetes e outro em três cineastas contemporâneos que “fizeram a sua cabeça”. São eles o espanhol Pedro Almodóvar e os chineses Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien. De Hou, Jenkins nos traz a estrutura básica do filme. Em “Três Tempos” (2005), Hou compõe um filme sobre o amor por três histórias separadas, a ter lugar em 1966, 1911 e 2005, respectivamente, para tratar também de liberdade e juventude. Nele, os protagonistas de todas as três histórias são interpretados pelos mesmos atores. Em “Moonlight”, temos o contrário: três atores diferentes interpretam momentos distintos da vida do mesmo protagonista. E também de Hou ele parece ter apreendido o domínio do espaço na composição da cena. Vemos isso claramente nas sequências de “Little” com Juan e sua namorada Tereza, na casa desta. Ao invés de dar ênfase aos planos e contraplanos para tornar mais ágil a cena, Jenkins elabora sutis movimentos de câmera, com panorâmicas que deslocam nosso olhar de um ator para o outro. E quando faz uso do corte, do contraplano, esse ganha uma ênfase maior. Jenkins se vale desse recurso em outros momentos e, como Hou, nos dá um minimalismo complexo: uma simplicidade superficial enriquecida por uma complexidade estrutural oculta.

Quando “Black” retorna à Flórida – após quase uma década vivendo em Atlanta – a canção “Cucurrucucu Paloma” ganha a estrada na excepcional interpretação de Caetano Veloso. “O que eu imediatamente senti” , conta Jenkins, “é que é a mesma versão da canção usada em “Fale com Ela”, de Pedro Almodóvar. Isso foi de propósito? Claro! E mais a propósito ainda é que é a mesma canção usada em “Felizes Juntos”, de Wong Kar-wai. É uma dupla homenagem direta. E até o enquadramento do carro dirigido por “Black” é o mesmo. Lembro-me de assistir “Felizes Juntos” há muito tempo. Foi o primeiro filme que eu diria que eu vi que era um filme estranho”.

Tanto Almodóvar quanto Kar-Wai falam, também, de encontros de corpos que se afetam. Os dois homens e sua vigília às amadas em coma, em “Fale com Ela”; os dois gays asiáticos que se encontram, se amam e se desencontram num país estranho (Argentina), em “Felizes Juntos”; os dois negros americanos, em “Moonlight”. Em comum, lembra Jenkins, “é que o mundo, tão grande, é também muito pequeno, porque todos estão experimentando as mesmas coisas”. Os bons (e maus) encontros de seres que são afetados por eles e seguem com suas vidas em busca de amor e de correspondência desse amor. Ao luar, conta Juan a “Little”, todos os negros são azuis. Sob a luz dos afetos, cada um é único.

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