“Ó Mar Salgado…”

Mudar de Vida (1966), filme etnográfico e intimista de Paulo Rocha, por Miguel Forlin. Em parceria com À Pala de Walsh.

por Miguel Forlin

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uma parceria com À Pala de Walsh

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“Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.”

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Mar Português, de Fernando Pessoa

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Adelino (Geraldo Del Rey) é um homem sem terra. Após passar alguns anos noutro continente, realizando ações militares, ele volta para a vila da qual partira, mas, ao descobrir que Júlia (Maria Barroso), a mulher que ama, está casada com seu irmão e se tornou mãe de dois filhos, se sente um estranho dentro do local onde costumava morar e trabalhar, alguém alheio aos arredores, cujos tormentos o isolam de tudo e de todos. No entanto, ele vive numa região de raízes profundas, caracterizada por costumes próprios, na qual o coletivo é a força motora de cada empreitada, o que aprofunda sua solidão de desterrado.

Adelino é uma daquelas figuras de poucas palavras, que sentem muito e falam pouco, que estão sempre a andar com uma expressão triste no rosto e uma postura retraída no corpo. Ele parece não ter muita resistência para as atividades manuais: após um dia intenso de trabalho, adoece e fica de cama. Sua alma está ferida. Sua vivência é interna, e é somente dela que ele fala com maior destreza. Adelino assemelha-se ao protagonista de O Grito (Il Grido, 1957), de Michelangelo Antonioni: embora imersos numa realidade social pungente, ambos não conseguem esquecer a mulher amada que os recusara.

O brasileiro Geraldo Del Rey se mostra uma escolha acertada para o papel. Indicado por Glauber Rocha, de quem Paulo Rocha tornara-se amigo, Del Rey incorpora com facilidade as particularidades físicas de quem nasceu numa vila de pescadores, e seus olhos claros são janelas à interioridade de Adelino. Ele caminha pelas praias e bosques do Furadouro como se ali tivesse crescido e vivido, mas, também, como se não se sentisse em casa, como se a região fosse uma fonte recorrente de desconforto e estranhamento.

Mudar de Vida (1966) pode ser descrito como um filme intimista. A câmera de Paulo Rocha acompanha Adelino por suas andanças a atividades e encontra nas cercanias imagens poderosas para ilustrar materialmente muitas das sensações que atormentam o protagonista, como as casas atacadas pelo mar pouco antes de Adelino dizer para Júlia, numa torrente, tudo o que tem sentido desde que voltou, momentos de força que se unem pela violência natural e verbal que acarretam, respectivamente.

Aliás, o mar, que pode ser tanto a travessia de uma viagem norteada quanto os descaminhos que levam o navegante a lugares desconhecidos, é uma presença constante no longa. Foi por meio dele que Adelino se separou de seus pais, do seu irmão e de Júlia e foi por meio dele que retornou. Além disso, é nele que Adelino passa boa parte do dia, ao lado de pescadores, remando fortemente os braços do barco que os transporta. Em algumas ocasiões, a presença do mar pode remeter, metaforicamente, a trajetos objetivos entre duas porções de terra distintas como também à condição do homem viajante, sem pátria, deixado ao sabor do vento, duas situações que se aplicam a Adelino, uma vez que a sua volta visa um motivo e a frustração que se segue o coloca numa espécie de limbo.

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(Reprodução)

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No entanto, Mudar de Vida também é um filme etnográfico, similar ao que Vittorio De Seta realizara em Contadini del mare (1955), Lu tempu di li spici spata (1955) e I dimenticati (1959). Paulo Rocha enxerga beleza nos costumes daquele lugar, beleza que Adelino não consegue ver. Em certo momento, o protagonista admite que o que lhe ocorrera tirou sua capacidade de sentir alegria nas coisas. Uma cena emblemática é a da dança noturna. Arredio, Adelino não deseja se juntar à população que se reúne para entoar canções e dançar em sintonia. É somente com a insistência do irmão que ele aceita participar da comunhão. O que se vê em seguida é uma sequência em que os movimentos e o cantar de um povo sofrido e corajoso são hipnóticos.

Isso se repete na já mencionada cena em que Adelino desmaia depois de excessivo esforço físico. Enquanto acompanhamos o sofrimento do personagem, principalmente nas suas expressões faciais, Rocha também registra, de maneira hipnotizante, o ritmo dos remadores e a música que eles cantam, numa profusão de mãos, pés, braços e corpos. Na relação estabelecida entre os objetos e a forma como Rocha os filma, o universo daqueles trabalhadores de vida difícil, constituído de obrigações profissionais e expurgações coletivas, vem à superfície num registro artístico e antropológico.

Essa junção do intimismo com o etnográfico, inclusive, ajuda a explicar a estrutura de Mudar de Vida, algumas vezes considerada vacilante e irregular. Adelino é um homem entre duas mulheres (Júlia e Albertina, mulher vívida, interpretada por Isabel Ruth, que ele conhece ao acaso) e dois tempos (o passado frustrado e o porvir misterioso). Ao passo que a sua vida se desenrola dentro do recorte específico das vicissitudes de Furadouro, recorte que ele renega e que Paulo Rocha registra, Adelino começa a delinear o seu futuro sem perceber.

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(Reprodução)

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No início, o que o une à Albertina é a circunstância na qual se encontraram, imprevista e casual. Posteriormente, é um sentimento de cumplicidade que se transforma rapidamente em paixão. Albertina é a personificação da esperança, do progresso de uma vida estacionada. Ela trabalha numa fábrica, no meio de máquinas, realidade muito distantes da realidade dos objetos rudimentares aos quais Adelino está acostumado, e deseja fugir, escapar da maledicência, dos boatos que contam a seu respeito. Dessa maneira, Mudar de Vida estrutura-se a partir do passado do protagonista e do seu futuro que se desenha, ambos acumulando-se no presente, que segue o ritmo de Adelino e o ritmo de Furadouro.

Ao fim, entre a celebração do povo que se reúne novamente para festejar (celebração mais uma vez filmada com olhos antropológicos por Rocha), Adelino ouve da boca de um colega que dali em diante serão pescadores de água doce. O navegante errático, atrelado à salinidade do mar, parece se distanciar aos poucos. O que tinha a aparência de uma realidade irremediável se revela ser, na verdade, a etapa de uma história que ainda se desdobrará, um rito de passagem a ser enfrentado na terra, na areia, na relva. Adelino começa abraçar o trabalho e aceitar o que lhe aconteceu e o que ainda pode acontecer. O sorriso que ele e Albertina dão, após escaparem de tiros, é a porta de entrada a essa nova vida, com todas as promessas, boas e ruins, que ela traz consigo.

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