por Miguel Forlin
Os filmes de Yorgos Lanthimos são difíceis. Quem desconhece o trabalho do diretor, ao entrar em contato pela primeira vez com algumas de suas obras, pode se surpreender negativamente. Há relatos de espectadores que saíram das salas de cinema antes do término da sessão e muitas pessoas se propõem a nunca mais ver os seus filmes. Ante o último projeto, intitulado O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer), as reações não foram diferentes. Em quase todos os lugares por onde o longa passou, comentários enraivecidos se seguiram à exibição.
Já para uma boa parte da crítica especializada, o cineasta grego é mais um dos autores surgidos nas últimas décadas que recorrem ao choque e à misantropia para conquistar a simpatia dos festivais e um papel de relevância no ambiente cinematográfico. Em outras palavras, é outro diretor a percorrer os mesmos caminhos de Lars Von Trier, Michael Haneke e Gaspar Noé. Um sujeito sem nada a dizer, mas inteligente o suficiente para dar aos seus filmes uma aparência de art house e alta intelectualidade.
No entanto, essa análise geral pode nos desviar dos verdadeiros motivos por trás da onda relativamente recente de cineastas “pessimistas.” Independentemente da justiça ou injustiça com que são louvados, é um exercício pedagógico especular acerca dos cenários em que eles aparecem. Ora, é inegável que vivemos numa época na qual o escândalo estendeu cada vez mais o seu campo de impacto. Além disso, há um entorpecimento ocasionado pelo excesso de elementos visuais e sonoros no cotidiano. Como se atrai a atenção de alguém para a auto-avaliação e assuntos maiores quando tudo o que está ao redor é um convite para a mesmice e o mediano?
Claramente, torna-se necessário que, depois de propor essa espécie de despertar estético e existencial, seja oferecido algo em troca. Em si mesmo, o choque não tem valor. É só quando precede a transmissão de um determinado conteúdo que ele deixa de ser uma provocação. Nos dias de hoje, quem parece compreender essa lógica é o próprio Lanthimos. Em O Sacrifício do Cervo Sagrado, por exemplo, isso fica evidente. Ao longo da narrativa, há várias cenas que fazem o espectador olhar embasbacado para a tela, se perguntando o porquê de ainda não ter levantado e saído do cinema.
Porém, elas servem a um propósito maior, o qual está fortemente ligado ao âmago do longa. Na primeira cena ? em que vemos, através de um plano plongée, a operação em um coração humano ?, Lanthimos já estabelece a perspectiva a partir da qual tudo se desenrolará: de cima para baixo. Esse recurso de percepção subjetiva, consagrado na memória coletiva com as diferentes fotografias de Asas do Desejo, de Wim Wenders, e usada recentemente por Andrey Konchalovskiy no excelente Paraíso, recria um ponto de vista que se coloca tematicamente acima do nosso campo de visão, o que já é um prenúncio do que será introduzido pela história.
Nos momentos seguintes, o emprego de grandes angulares geram visões amplas dos cenários. Entretanto, também participando da lógica visual existem elementos que rompem com esse universo tão bem enquadrado. Ao estilo de Kubrick, o diretor explora constantemente a perspectiva com um ponto de fuga, o que acaba distorcendo as laterais. Essas distorções, por vezes, rimam com dissonâncias musicais perturbadoras. Até mesmo a utilização de zoom-in é anulada posteriormente pelo movimento oposto (zoom-out), ocasionando o retorno ao afastamento que caracteriza a maior parte da mise-en-scène.
Quando a trama ? após desdobramentos perfeitamente controlados pela montagem compassada e pacientemente malévola ?, finalmente dá as caras, e o público entende quais eram as forças que estavam implicitamente em ação desde o início, é possível compreender a intenção que originou cada uma das escolhas técnicas. De todos os personagens que compõem o quadro humano do longa, o único que possui um controle das situações é Martin, o garoto vivido por Barry Keoghan. O poder que ele tem é sobre-humano e está simbólica e concretamente atrelado ao desconhecido.
No mundo de O Sacrifício do Cervo Sagrado, o agente que movimenta cada uma das peças nesse tabuleiro diabólico é de origem metafísica. Tanto a visão objetiva quanto a esterilidade da fotografia são aspectos do seu olhar. E tudo o que ele busca é justiça. Depois de perder o pai em razão de um erro médico cometido pelo protagonista (Steven Murphy, o cirurgião cardíaco vivido por Colin Farrell), ele está atrás de uma reparação, a qual será concretizada apenas quando um dos membros da família de Steven morrer. Na sua visão, a injustiça reinará até que isso aconteça.
Contudo, o que são as deformações visuais e sonoras constitutivas desse olhar transcendente? Por que essa força magnânima contém tais “falhas” em sua própria estrutura perceptiva? Vale lembrar que o roteiro escrito por Lanthimos e Efthymis Filippou é baseado na mitologia grega e na peça de teatro Ifigênia em Áulis. Esta conta a história de Agamenon e a oferta em sacrifício de sua filha para a deusa Artemisa, cuja ira irrompera após uma ofensa. O objetivo da ação é possibilitar que as tropas possam lutar na guerra de Tróia, e a coerência dessa troca é substituir um ato equivocado por uma outra vida, produzindo, assim, uma justiça cósmica. Porém, ao final, um mensageiro e Agamenon afirmam que Ifigênia pode ter sido levada pelas divindades e que, no seu lugar, morreu um cervo.
Em linhas gerais, a história termina com um possível ato de misericórdia. Já o longa de Lanthimos é finalizado da pior maneira possível: o filho mais jovem é morto depois de um jogo de azar. Isso acontece porque Martin é um deus sórdido. As suas intenções provêm do ressentimento mais torpe (ele se irrita muito mais com a falta de atenção por parte de Steven do que com a morte do pai). O rosto cheio de espinhas, os traços faciais grosseiros e a forma como se porta (as cenas em que come macarrão e bebe de um copo através do canudo exemplificam isso) são aspectos externos de uma intimidade disforme (daí o motivo das distorções).
Nesse retrato, a busca de Martin por justiça só produz mais sofrimento e injustiça. Nas suas exigências, não existe honra, coragem, equilíbrio ou martírio. É uma vingança torta e incapaz de ser completamente justificada. No século das reparações históricas violentamente impostas, em que falsos deuses são erguidos e cultuados no altar das causas sociais e políticas, Martin é a divindade da irracionalidade e do equívoco reiterado. São injustiças pagas na mesma moeda. O ciclo se repete e nada muda.
Em Ifigênia em Áulis, a substituição da filha de Agamenon por um cervo (caso tenha acontecido) se dá fora do palco, longe do olhar do público, como se fosse um momento destacado do tempo e espaço. No fim do filme de Lanthimos, tudo é mostrado: a morte e os instantes seguintes. Por que isso acontece? Porque o choque imagético se tornou necessário. Além do mais, Martin é muito parecido com a nossa realidade atual. Não se trata da Nêmesis, mas de uma representação desajeitada até das atividades mais horrendas dos deuses gregos. O seu poder ? a única coisa que o separa dos demais ? se converte em atos que, embora de maneiras diferentes, só um sujeito incapaz de sentir compaixão poderia cometer. É algo que se encerra no momento exato em que o seu plano se realiza. Em suma, um deus dos nossos dias e um símbolo que se esvai na temporalidade.