por Miguel Forlin
Talvez nenhum movimento tenha gerado tantas consequências na história da Sétima Arte como o Realismo. Tendo aparecido na forma de uma corrente literária e artística na segunda metade do século XIX, o seu desenvolvimento se cruzou cronologicamente com a invenção do cinematógrafo pelos irmãos August e Louis Lumière, em 1895. No entanto, embora os primeiros filmes fossem curtas-metragens sobre instantes do cotidiano, desde que George Meliès começou a experimentar com a nova mídia, as primeiras décadas do cinema foram marcadas pela alternância e atração mútua entre obras realistas e fantasiosas, em que o senso de espetáculo teatral exibia uma forte presença.
Foi só a partir da desilusão coletiva decorrente da Segunda Guerra Mundial e do surgimento do Neorrealismo italiano que o movimento estético, dentro das inevitáveis adaptações ao audiovisual, proliferou, desenvolveu a sua raiz moderna e abriu espaço para o nascimento da Nouvelle Vague francesa e japonesa, da Nova Hollywood e do Cinema Novo. Todavia, como quase tudo que se estende por muitos anos, a corrente artística que se manifestou originalmente como uma reação aos arroubos emocionais e estilísticos transformou-se em um pastiche de si mesma e aberrações como o Dogma 95 se tornaram possíveis.
Antes, embora buscassem retratar a realidade fielmente, cada um dos movimentos supracitados assimilavam a artificialidade inerente à linguagem cinematográfica e aceitavam que ela era essencial na construção de um registro fílmico. Aliás, havia até a inclusão de características totalmente externas ao conceito, como as do melodrama, no caso do Neorrealismo, para citar apenas um exemplo. Já o ambiente que possiibilitou a criação da escola idealizada por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, e que existe até hoje no cinema independente europeu, é dominado por noções equivocadas de realismo, baseadas em um total desprendimento da essência cinematográfica em prol de um retraro cru, o qual diz respeito não apenas ao aspecto técnico (como iluminação natural, câmera fixa, som diegético, poucos cortes e performances naturalistas), como também ao temático, com ilustrações reais e chocantes de violência e sexo, elementos dominantes de uma realidade que, visualmente, se manifesta quase sempre pela aparência.
Assustador, uma vez que cinema é sinônimo de artifício, esse cenário, com algumas variações, também é preenchido por um número grande de cineastas. Michael Haneke, os irmãos Jean e Luc-Dardenne e Gaspar Noé são os principais entre eles. Contudo, nos últimos anos, surgiram diretores que, apesar de fazerem filmes nos quais algumas dessas tendências contemporâneas são explícitas, buscam maneiras de escapar de tais amarras. Não dá para dizer se esses aspectos resultam de ações conscientes, mas os casos em que isso acontece são perfeitos para testemunhar um comovente gesto de liberdade artística, quase uma emancipação metafísica da temporalidade limitante.
Nesse sentido, o tailandês Apichatpong Weerasethakul e o mexicano Carlos Reygadas são os nomes que mais se destacam. Porém, enquanto o primeiro mantém uma estética seca (a ponto de transformar o fantástico em um elemento comum do dia-a-dia) e rompe essas barreiras através apenas da temática, a qual lida com seres e acontecimentos mágicos, o segundo pratica essa subversão a partir dos temas abordados e da técnica empregada. No seu primeiro filme, intitulado Japão, a cena inicial é composta de uma série de elipses que tiram o espectador da cidade e o levam ao deserto mexicano. Ao fazer isso, saímos artística e emocionalmente da zona de conforto e de um local de corrupção (nas obras do diretor, o urbano é sempre um símbolo de perdição) e somos transportados para uma região onde o homem pode reencontrar-se com a sua natureza e essência.
No entanto, esse reencontro, que constitui o coração dos seus filmes e que também pode ser considerado, para efeitos interpretativos, como um retorno geral a um cinema distinto, não dá as caras facilmente. Em muitos sentidos, os longas de Reygadas sofrem dos mesmos problemas que tantos outros. Tanto no seu debut quanto em Batalha no Céu, nota-se a formação de um estilo constituído de muitas derivações modernas. O que se vê nos planos estáticos, nos instantes impactantes e/ou na câmera na mão é um cinema à procura de uma identidade, mas, que, na ingenuidade de sua infância, se perde em repetições mecânicas de uma estética que se reproduz constantemente na atualidade.
Além disso, na peregrinação rumo a uma espiritualidade genuína ? e que também é sempre estética ?, há a problemática envolvendo a cultura mexicana. Assim como no Brasil e nas outras nações latino-americanas, o espiritual que existe no seu país se confunde constantemente com a superstição e o misticismo tacanho. Nas imagens, alguns símbolos podem até transmitir um conteúdo parecido, mas a essência pode ser composta por uma postura fingida e egoísta. Se usarmos o cinema de Glauber Rocha como parâmetro, veremos que o cineasta sul-americano (provavelmente, o artista que muitos consideram ter se aproximado ou atingido esse objetivo) entrega filmes em que o barroco perde o seu caráter sagrado e se coloca à disposição de uma elevação falsa da cultura popular brasileira. O caráter é epico e grandiloqüente, mas nunca metafísico.
Dessa maneira, o desafio que se postou diante de Reygadas era duplo: superar os seus vícios estilísticos e encontrar o verdadeiramente divino. A primeira guerra foi vencida através de um cinema mais minimalista. Claramente inspirado nos filmes e no trabalho téorico de Andrei Tarkovski, o diretor achou no ato de “esculpir o tempo” e nas exigências técnicas oriundas disso o caminho para transitar nas engrenagens da temporalidade e descobrir nelas a chave capaz de abrir os portões do Éden. Como disse Santo Agostinho: “o tempo é o problema mais vital da metafísica”. As cenas que inauguram Luz Silenciosa e Post Tenebras Lux ilustram isso perfeitamente.
A segunda, por sua vez, foi derrotada a partir da superação da cultura circundante (no longa de 2007, os costumes mexicanos se apagam naquilo que parece ser uma comunidade europeia, um ambiente isolado como a casa de A Palavra, clássico de Carl Thedor Dreyer; já no de 2012, vira somente o pano de fundo de uma trajetória subjetiva e onírica) e da transcendência do profano. Uma espécie de Jean Claude-Brisseau, o cineasta enxerga no sexo explícito, na violência brutal e no surreal não apenas características do comportamento humano, mas também meios pelo qual o Mal abolsuto pode agir. No reconhecimento dos opostos, chega-se a uma descoberta reveladora. Como se a presença do próprio Satanás no seu último filme não bastasse (em uma cena na qual, carregando uma caixa de ferramentas, ele entra no quarto de dois pais e dá início a uma jornada de dor e morte), o sexo oral que abre Batalha no Céu exemplifica essa ideia: a prostituta que realiza a felação, ao ter o seu choro aumentado pelo close-up e acompanhando por um trecho musical comovente, sobreleva o ato carnal e revela a sua alma.
Pertinentes, esses exercícios corajosos são vitais para que, sem muito alarde e lentamente, o realismo radicalizado da contemporaneidade perca sua força em razão dos exemplos contrários, e o artífice que usa as ferramentas cinematográficas para compreender a realidade perambule pela matéria que compõe o tempo, supere-a e nos oferça vislumbres da eternindade. Assim, o real é aprofundado e não modificado. Certa vez, Tarkovski fez esta afirmação sobre o século XX, época em que ele diagnosticava uma perda da espiritualidade: “A arte não deve apenas refletir, mas também transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade, como fez Dostoiévski, o primeiro a expressar de forma inspirada o mal da época.” Se anos atrás ele sentiu a necessidade de emitir esse comentário, nos dias de hoje a situação ficou ainda pior. Entretanto, podemos descansar as nossas preocupações lembrando que jovens cineastas, também cansados desse estado de coisas, estão encontrando maneiras de transpô-lo. Afinal, o cinema clama por isso.