por Josias Teófilo
Acordei perto das onze horas e olhei o celular; estavam lá várias mensagens sobre a exibição de O Jardim das Aflições que seria realizada às 16h daquele dia no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, tradicional ambiente de esquerda. As mensagens eram em sua maioria sobre a exibição – várias pessoas, inclusive os membros do grupo Desconstruindo a História, que organizou o evento, estavam preocupadas com ação dos militantes esquerdistas. Eu achava a preocupação um pouco exagerada porque durante a exibição do filme no Cine PE não aconteceu nenhuma hostilidade, apesar dos prognósticos contrários. Na noite anterior, entretanto, eu só consegui dormir tarde, e tive uns sonhos atribulados.
Larguei o celular tentando fugir das atualidades e fui ler o livro que estava na cabeceira da cama: A Guerra Secreta de Stálin, de Nicolai Tolstói, descendente do ramo central da família do grande escritor russo. O livro trata, entre outras coisas, das semelhanças entre nazismo e comunismo. Lá ele descreve como os primeiros membros do Partido Nazista foram quase todos recrutados do Partido Comunista, e como boa parte dos camisas-pardas vieram das fileiras comunistas. Goebbels, segundo Tolstói, acreditava que o nazismo e comunismo eram feitos do mesmo pano.
Lendo isso me lembrei do enfoque semelhante sobre o tema em Mircea Eliade. No livro Mito e Realidade ele mostra como o nazismo e o comunismo estão repletos de elementos escatológicos, ou seja, apontam para um destino final do homem e do mundo seguidos de uma era de abundância e beatitude a serem conquistados numa batalha decisiva entre os eleitos (os arianos ou o proletariado) contra as hostes do mal (os judeus, a burguesia).
Aquele era o tema que dominou a semana com a exibição do filme. Cartazes do Jardim das Aflições foram rasgados e aqueles que os rasgaram justificaram-se no Facebook dizendo que não era possível aceitar fascistas dentro da universidade. Um evento paralelo foi criado feito pelos militantes do PCO [Partido da Causa Operária] com um documentário sobre a ditadura militar. Eles nos acusavam de ser fascistas e nazistas na descrição do evento no Facebook.
Espalharam panfletos com os dizeres “esmague um fascista, esmague um nazista”, e textos impressos onde diziam que a exibição do filme era um avanço da direita fascista em direção a um golpe militar. Não pensem que esse tipo de acusação vem unicamente de simples militantes universitários: ouvi coisas semelhantes quando procurei profissionais no cinema pernambucano para trabalhar no filme.
Tomei um banho e fui para a casa de Daniela Gouveia para de lá irmos à UFPE. Foi ela que em 2008 me mostrou os DVDs da História Essencial da Filosofia, de Olavo de Carvalho. Daniela, por sua vez, entrou em contato com o pensamento de Olavo a partir de Ronaldo Castro Lima Júnior, astrólogo e especialista em simbolismo, que foi o responsável por trazer Olavo a Pernambuco há exatos 20 anos. Ele debateria comigo o filme após a sessão.
No caminho, fomos conjecturando sobre o que poderia acontecer. Eu dizia: “Não é possível que eles sejam tão burros a ponto de causar tumulto lá hoje – sabem muito bem que isso só favoreceria o filme. Cada polêmica aumenta o público e as vendas do filme, é uma publicidade gratuita enorme, já foi assim no Cine PE”. Daniela discordava. No carro, ela disse que estranhamente hoje a medalha de São Bento que ela mantinha no retrovisor do carro caiu
Cheguei e entreguei exemplares do meu livro O Cinema Sonhado para serem vendidos na porta do auditório, um livreiro estava lá vendendo edições voltadas para o público conservador.
O prédio do CFCH foi projetado pelo arquiteto italiano Mario Russo, e é o único prédio verticalizado do Campus. Na parte de baixo do prédio está o Audiotório Barbosa Lima Sobrinho, onde foi exibido O Jardim. O auditório fica no fim de um imenso corredor. Na entrada desse corredor, na parte exterior, os militantes do PCO fizeram o evento que começou com performances e teve a exibição do filme Porque Lutamos, de Fernanda Ikedo, projetado na parede exterior do prédio.
A escolha do local para o evento em protesto contra a exibição do Jardim já foi um ato de hostilidade: todo o público do filme teve que passar pelo evento deles para chegar ao auditório. É evidente que já aí iam começar as provocações mútuas. E foi assim que aconteceu: os apoiadores de Bolsonaro logo se aglomeraram na entrada do corredor. Os militantes do PCO estavam com megafone gritando palavras de ordem sobre a escravidão das mulheres negras, o fascismo contra a presidente Dilma, pela anulação do impeachment e contra Jair Bolsonaro.
Mas nada de grave aconteceu até o final da exibição do filme. Enquanto os cerca 400 espectadores do filme estavam dentro do auditório, poucas pessoas circulavam fora. Mas os esquerdistas foram se acumulando e gritando palavras de ordem ao redor do auditório: no corredor e fora do corredor, que era vetado por elementos vazados. Gritavam : “Um, dois, três, quarto, cinco, mil, com fascista se trata na ponta do fuzil” e etc. Um deles mostrou a bunda. Outros dançavam no meio do corredor. Outro ainda chegou bêbado, gritando, e foi rechaçado na entrada do auditório.
Lá fora estava um grupo de amigos com camiseta de Bolsonaro. Um deles ficou famoso com o video do confronto, o Tsu Klin. Um funcionário da UFPE pediu para eles se retirarem da entrada do corredor e eles vieram para próximo do audiotório. Na prática o funcionário nos deixou acuados no corredor, e os militantes de esquerda se apossaram da entrada do corredor e foram avançando. O que acontece depois está gravado no video: um grupo de dezenas de militantes acuaram um pequeno grupo de espectadores do filme com gritos e hostilidades. As agressões começaram quando um deles empurrou um sujeito magrinho com camiseta de Bolsonaro. Mais tarde ele próprio deu depoimento à reporter do Jornal do Commercio, dizendo: “Eu empurrei ele porque ele estava exibindo a camisa do Bolsonaro, e isso é inadmissível aqui nessa Universidade“.
Tsu Klin foi decisivo no conflito que se seguiu: bateu sozinho em vários militantes, e derrubou um deles com um soco. Em seguida a pancadaria foi geral. Nesse momento eu estava começando o debate no auditório e um dos espectadores entrou gritando que estava havendo agressões e os militantes de esquerda tinham o objetivo de entrar no auditório. Eu não quero nem imaginar o que aconteceria se eles tivessem conseguido de fato entrar.
Nesse momento eu fui fazendo uma transmissão ao vivo para a página do filme. Estavam aglomerados os dois grupos frente a frente no corretor trocando ofensas. As agressões físicas tinham cessado no momento e eu tentava fazer os espectadores do filme recuarem. Conversei com os militantes de esquerda e disse que tentaria fazer os demais recuarem. Chamei os que pareciam liderar e tentei convencê-los disso. Existia uma saída do lado do auditório que poderia ser uma alternativa para evitar o confroto direto e total entre os dois grupos. Ao mesmo tempo os esquerdistas gritavam “recua, direita, recua”.
Tive sucesso por um tempo, até que um rapaz simplesmente entrou no meio da concentração dos esquerdistas, causando confronto total e agressões para todo lado, aos gritos de “avança direita, avança”. De fato, os esquerdistas foram rebocados de volta para fora do corredor. Depois, disseram-me que o rapaz era um militante do PCO infiltrado do nosso lado.
Voltei completamente atordoado para o auditório, e na porta vi um dos espectadores do filme com o topo da cabeça sangrando, ele havia sido atingido por um porreto com um pedaço de metal. Tirei uma foto a pedido dele e a postei no Facebook.
Os militantes de esquerda têm acusado os espectadores do filme de portarem soco ingles e um porrete. As próprias fotos que eles compartilharam mostram que se trata somente de uma luva de motoqueiro, e o porrete, esse eu vi com meus olhos, foi apreendido na mão de um dos militantes de lá. Os videos disponíveis na internet mostram que aqueles que defenderam os espectadores do filme usaram somente as mãos, e foram bastante eficientes nisso. E se não tivessem agido, poderia ter havido um caos ainda maior, especialmente se acontecesse uma invasão do auditório lotado e com uma única porta.
Não fomos buscar o carro, que estava do outro lado da confusão. Ver o sujeito sangrando me deixou com medo real. Saímos do Campus da universidade enquanto aguardávamos uma carona. Eu estava física e emocionalmente exausto, e realmente triste com tudo que aconteceu. No caminho vi uma ambulância passando no sentido contrário e realmente temi que alguém tivesse morrido. Daniela me acalmou dizendo se algo de grave tivesse acontecido nós já teríamos sabido.
No caminho, fomos conversando sobre como isso foi acontecer mais uma vez exatamente no Recife. Daniela disse: “É a tradição libertária de Pernambuco, nosso destino é revolucionário mesmo”. O que ela falou faz sentido e para mim ecoa um trecho do livro O Recife sim, Recife não, de Gilberto Freyre, ele diz: “Toda crise política no Brasil tem tido no Recife um ponto de repercussão aguda. Toda revolução na vida cultural do Brasil – literária, artística, científica, educacional – tem tido, a mesma espécie de repercussão e algumas vezes mais do que isto: tem partido do Recife. Irradiado do Recife.”
Me lembrei também do que Gilberto Freyre teve que viver na sua própria terra: viu um companheiro ser assassinado ao seu lado num comício, teve sua casa com todos os bens da família queimada na revolução de 1930, e teve que fugir para a Europa onde chegou a passar fome.
Eu inscrevi O Jardim das Aflições em todos os festivais brasileiros. Foi recusado por todos, com exceção do Cine PE, no Recife de Gilberto Freyre. A polêmica todos conhecem. A produção do evento na UFPE foi totalmente espontânea, e eu que me ofereci para participar do evento que já estava agendado – tinha vindo ao Recife para o aniversário da minha mãe, que aconteceu no dia anterior.
Como pude subestimar o potencial explosivo desse evento? Não levei em conta o elemento de religião degradada intrínseco à ideologia marxista – esta que é hegemônica, mesmo atualizada com o discurso de minorias, tanto nas universidades brasileiras quanto no cinema nacional. Mircea Eliade diz que não existe homem arreligioso puro, ele guarda sempre comportamentos mitológicos e religiosos, mesmo que degradados até a caricatura. O esquerdismo é evidentemente uma religião degradada, com mitologias invertidas.
Ao exibir O Jardim das Aflições, sobre o filósofo que denunciou esta hegemonia, no CFCH, eu os afrontava no seu território sagrado. Profanei o templo da religião degradada do esquerdismo. E o fiz exatamente no Recife, “da beleza católica dos seus rios” como escreveu o poeta Joaquim Cardozo, onde a religiosidade tradicional é tão simbolicamente forte, assim como seu equivalente caricatural.
Josias Teófilo é cineasta, diretor de O Jardim das Aflições, filme vencedor do Cine PE 2017, e autor do livro O Cinema Sonhado.