por Miguel Forlin
No início de Stromboli, somos apresentados a um grupo de mulheres cujos rostos estão marcados pelo sofrimento e pelo anonimato. Ouvimos durante um tempo os seus comentários em relação aos soldados italianos até nos depararmos, abruptamente, com a face de Ingrid Bergman. Depois de um diálogo entre Karin, a personagem interpretada pela atriz, e Antonio, o seu amante (vivido por Mario Vitale), há uma sequência de imagens em que a protagonista é proibida de encontrar os seus parentes na Argentina e, como solução, aceita se casar e morar na ilha que dá nome ao filme.
Nos instantes seguintes, a casa em que os dois personagens morarão nos é mostrada, assim como o sofrimento de Karin ao perceber a realidade que lhe aguarda. Ou seja, tanto os personagens quanto o palco em que os seus respectivos dramas se desenrolarão se colocam à frente do espectador. Desse momento em diante, os que acompanham os filmes de Rossellini na ordem em que foram lançados ou aqueles que estão iludidos pela maneira como a concepção neorrealista de Cezare Zavattini se impregnou no imaginário popular (exposto no texto Algumas Ideas sobre o Cinema) sentem um choque. O afastamento da Segunda Guerra Mundial, o refúgio num local distante do continente e o mergulho no envolvimento psicológico de uma burguesa com uma terra estranha apontam para algo distinto daquilo que caracterizava o cinema italiano e a filmografia do diretor nos anos anteriores.
O célebre crítico italiano Guido Aristarco, por exemplo, viu uma aparente regressão em Alemanha, Ano Zero, a qual se tornou decisiva em Stromboli e Francisco, Arauto de Deus e totalmente catastrófica em Viagem à Itália e Europa 51. O motivo dessa involução, segundo ele, era a negação de realidades sociais e políticas explícitas. De fato, a ação de narrar uma história que se passa numa região muito específica da Itália e a opção de perscrutar o íntimo da protagonista contém a clara intenção, por parte de Rossellini, de fazer uma espécie de afirmação cinematográfica e moral. Já o crítico e cineasta francês Eric Rohmer, após ser profundamente tocado pelo longa de 1950 e analisando numa outra chave (menciono-o somente porque o seu comentário corrobora o sentimento de choque), definiu-o da seguinte maneira: “Grande filme cristão, é a história de uma pecadora tocada pela Graça”. Obviamente, um “filme cristão” sobre uma “pecadora tocada pela Graça” se desenvolve, majoritariamente, no interior da personagem em questão.
Sendo assim, não é de se estranhar que a percepção adotada por Aristarco e outros críticos de esquerda da época fosse cautelosa e excludente. Nos minutos iniciais, a própria montagem indica a forte subjetividade do longa. Através de fusões secas, é a decepção de Karin com o andamento de sua vida que se torna o aspecto mais explícito da história. Também é importante lembrar que, em 1950, nenhum dos grandes diretores do neorrealismo tinha se aventurado em searas mais individuais. À exceção de Michelangelo Antonioni ? que dirigiu Crimes da Alma no mesmo ano, um filme mais voltado ao universo interno dos personagens, apesar de conter elementos fortemente sociais ? Luchino Visconti e Federico Fellini realizariam Sedução da Carne e A Estrada da Vida somente em 1954.
Evidentemente, houve um rompimento na forma como os conterrâneos do diretor passaram a recepcionar os seus filmes posteriores. No entanto, em sua clássica carta enviada a Guido, “Em Defesa de Rossellini”, André Bazin faz apontamentos que conciliam tais divergências. Em certo momento, ele diz o seguinte acerca do trabalho do diretor em Paisá: “o que é neorrealista na direção de Rossellini é a sua apresentação dos eventos, uma apresentação que é, ao mesmo tempo, elíptica e sintética.”
A partir desse trecho destacado, é possível contestar as ressalvas feitas pelos críticos da época. Admitindo que o neorrealismo se define muito mais pela abordagem do que pelo assunto tratado, pouco importa se o filme é sobre operários tentando sobreviver em Roma ou sobre uma burguesa nascida na Lituânia deprimida por ter de viver numa aldeia paupérrima. A guerra tinha colocado muitos europeus em pé de igualdade. Se o interesse é artístico, estético e narrativo, a militância em busca de um retrato específico não tem nada a dizer. A realidade abarca essas duas situações e não faz distinções estruturais. Ambas são quadros específicos que se transformam num painel muito mais amplo no exato momento em que um diretor deseja direcionar a sua câmera para uma delas.
Além disso, não faz sentido em falar na ausência de uma realidade social explícita, mesmo quando o objetivo do comentador é se referir a algo atrelado a uma determinada ideologia (Bazin até menciona esse viés, mas a sua elegância o impede de continuar). Ora, se o filme de Rossellini não apresenta questões sociais pertinentes aos críticos que desejavam utilizar o seu trabalho para fins particulares (sejam eles estéticos ou políticos), ninguém pode afirmar que ele não explora dramaticamente (não espetacularmente) as paisagens e o povo da ilha.
Por um lado, a ambientação é usada para ilustrar a devastação interior da protagonista (o vulcão é um simbolismo evidente). Sobre o emprego desse recurso em Viagem à Itália (mas que também vale para Stromboli), Bazin escreveu: “É Nápoles filtrada pela consciência da heroína. Se a paisagem é nua e confinada, é porque a própria consciência burguesa ordinária sofre de uma pobreza espiritual. Entretanto, a Nápoles do filme não é falsa (a qual poderia estar ao lado de uma Nápoles mostrada num documentário de três horas de duração). É mais uma paisagem mental tão objetiva quanto uma fotografia e tão subjetiva quanto uma consciência puramente pessoal.” Por outro lado, há uma análise e um julgamento dos atos daquela população. Em nenhum momento, Rossellini os mostra como vítimas ou figuras simpáticas (esse, aliás, é um dos únicos pontos que poderiam ser considerados “antineorrealistas” em Stromboli). A presença do povo é opressora e se equipara com a maldade da protagonista. Pode-se dizer, inclusive, que se trata de um filme de horror, já que há uma forte atmosfera de pesadelo na trajetória de Karin.
Por fim, para adensar ainda mais essa confrontação, vale dizer que o arco dramático da personagem principal é um completo despojamento temático. O seu percurso é de uma mulher arrogante que se torna humilde, chegando até mesmo a se colocar sob o jugo de um Deus em que não acreditava. Aqui, recorro novamente ao Bazin: “Ter uma opinião sobre a realidade não significa acumular aparências. Pelo contrário, significa que alguém arranca as aparências de tudo o que não é essencial”. O neorrealismo também podia ser moral e espiritual, como o fim de Stromboli deixa claro. Na verdade, a realidade social de que falava Zavattini e alguns críticos era uma limitação artística sobre os autores, concebida para impedir que uma visão além dos imediatismos da Segunda Guerra Mundial e das lutas ideológicas pudesse ganhar forma. Ao imaginarem o real como um conjunto limitado de opções, acabaram por empobrecê-lo justamente quando pensavam fazer o contrário. Infelizmente, por cegueira política, não foram capazes de ver aquilo que Bazin enxergava tão bem.