por Miguel Forlin
Este artigo inaugura o Especial Andrei Tarkovsky, que terá um texto dedicado a cada um dos filmes do diretor russo.
Estos días azules y este sol de la infancia…
Antonio Machado
¿Por qué persistes, incesante espejo?
¿Por qué duplicas, misterioso hermano,
El menor movimiento de mi mano?
¿Por qué en la sombra el súbito reflejo?
(…) El hecho de no verte y de saberte
Te agrega horror, cosa de magia que osas
Multiplicar la cifra de las cosas
Al Espejo, de Jorge Luís Borges
No início da primeira cena de O Rolo Compressor e o Violinista, vemos o protagonista, o menino Sasha (Igor Fomchenko), saindo de casa. A câmera de Andrei Tarkovsky, posicionada na mesma altura dos olhos da personagem, está no lado de fora, num dos corredores do prédio. Instantes depois, após uma tentativa frustrada de fugir dos garotos que o hostilizam, Sasha é salvo por Sergei (Vladimir Zamanskiy), homem com quem tem amizade e que é o condutor do rolo compressor do título. Na primeira interação entre os dois, a câmera, novamente localizada no lado de fora (a rua do prédio), se encontra, agora, na altura dos olhos de Sergei. Há, nesse começo, a introdução de duas perspectivas: a infantil e a adulta; e, também, a introdução do mundo como o terreno em que elas coexistem.
Sob certos aspectos, O Rolo Compressor e o Violinista, filme de conclusão da faculdade, se encaixa nos moldes do cinema soviético da época. Como apontam Vida T. Johnson e Graham Petrie no livro The Films of Andrei Tarkovsky: A Visual Fugue: “Os primeiros filmes de Tarkovsky (…) podem ser vistos como pertencentes ao cinema soviético (…) O seu filme de diploma reflete a popularidade dos filmes de crianças dos primeiros anos da década de 1960”. Sean Martin, no ensaio Live In The House – And The House Will Stand: The Autobiography And Lived Experience In Tarkovsky’s Films And Aesthetic, diz: “A relação entre o artista (Sasha) e o operário (Sergei) é convencionalmente “soviética” e, sem dúvida, teria exercido um papel na obtenção da nota máxima na graduação”.
Já sob outros aspectos, embora Tarkovsky não o considerasse um membro do seu corpo de trabalho, o filme contém elementos do que viria ser a sua obra nos anos seguintes. Sean Martin admite que muito da estética antecipa o que seria desenvolvido em Esculpir o Tempo, e Vida T. Johnson e Graham Petrie afirmam: “Apesar de Tarkovsky parecer mais interessado em mostrar as suas credenciais técnicas na condução habilidosa de um assunto incontroverso, (…) certos temas e imagens-padrão que se tornariam centrais no seu trabalho subsequente já estão claramente presentes”.
Admite-se, portanto, que, ao mesmo tempo que O Rolo Compressor e o Violinista pertence a um tipo de cinema praticado na União Soviética nos anos 1950 e 1960, há a presença embrionária de temas e imagens que se consolidariam no futuro. A existência desses elementos seria suficiente para considerá-lo o primeiro filme tarkovskiano, porém, costuma passar despercebida uma característica marcante que, envolta em construções mais complexas em todos os seus outros trabalhos, aqui se mostra mais clara e evidente: a recuperação de um olhar puro e inocente sobre as coisas.
A história de O Rolo Compressor e o Violinista é inteiramente formada por um jogo dialético entre as forças do mundo e o universo criativo infantil. Há um embate silencioso entre cosmos existenciais distintos, no qual a visão adulta, materializada anteriormente na perspectiva formal de Sergei, se transfigura nos limites, obrigações e exigências de uma realidade que tenta, aos poucos, diluir, impedir ou até desfazer as habilidades imaginativas típicas de uma criança com sensibilidades artísticas. Logo no começo, quando Sasha sai de casa, ele vê a sua liberdade ameaçada por um grupo de garotos maliciosos que o ofendem por causa da sua timidez e do violino que carrega para todos os lados.
Essa lógica, que oscila conscientemente entre universos diferentes, se estende por todo o filme. Por exemplo: ao chegar no conservatório onde estuda violino, enquanto espera a avaliação, ele se vê ao lado de uma mulher adulta que o deixa desconfortável, quase obrigando-a virar o rosto noutra direção. Na sua vez de ser avaliado, após ver um garoto da mesma idade sair aos prantos em razão de uma nota baixa, percebe que a sua criatividade é limitada por um metrônomo e pela marcação cerrada da professora, que o dispensa lamentando que haja no menino um excesso de imaginação.
Momentos antes, quando se deixa levar por espelhos exibidos na vitrine de uma loja, e a imagem, refletindo o seu maravilhamento, se fragmenta como num caleidoscópio, são os ponteiros de um relógio que o trazem de volta à realidade dos homens, cheia de compromissos e horas marcadas. Por fim, já nos minutos derradeiros da história, depois de combinar de se encontrar com Sergei, a mãe o desanima ao lembrá-lo de visitas que chegarão mais tarde à casa. Como temas sinfônicos que crescem e desaparecem, os ímpetos imaginativos de Sasha são sabotados por intrusões da realidade.
No campo simbólico, esses ímpetos são associados ao Éden antes do Pecado Original, a uma espécie de paraíso compartilhado por crianças e sonhadores. Quando o protagonista está saindo do conservatório e partindo rumo à aventura do seu dia, o destaque dado à maça mordida por uma das suas colegas é um lembrete do poder que a vida tem de corromper as suas primeiras etapas históricas. No caso de Sergei, que ainda mantém parte do espírito infantil, o eco simbólico é encarnado pela garota, que, espreitando-o, torna-se uma representação do desejo sexual, da perda da inocência, da existência da realidade.
No entanto, entre as cenas em que o real se impõe, Sasha, sozinho ou na companhia de Sergei, manifesta o seu potencial, sempre acompanhado por transformações formais que alteram o cenário multiplicando-o em espelhos e refletindo-o em poças d’água. O uso recorrente de cores vivas e chamativas colabora para que o mundo, mesmo sendo o local de decepções e tristezas, seja o mundo esperançoso, promissor e colorido de uma criança, ou, ao menos, um mundo que reflita a maneira como uma criança o vê.
Pois, também conhecido por ser um cineasta dos espaços físicos e da natureza, Tarkovsky potencializa o olhar infantil em cada uma de suas escolhas estéticas, sobrepondo-o a todo o resto e tornando-o vencedor em termos narrativos e estéticos. Se o rolo compressor, manejado por adultos, é o símbolo de um mundo que passa por cima de tudo, ao colocar Sasha manuseando-o, Tarkovsky torna-o mais leve, mais harmonioso e menos opressor. A condução de Sasha é leve, rítmica e graciosa. O mundo não deixa de existir, e não há uma relativização das suas dificuldades ou sequer uma confusão sobre o que ele pode produzir de negativo, mas a percepção que se tem dele pode ser diferente.
O ápice desse recurso formal é a demolição de um prédio antigo, evento essencialmente violento cuja natureza é modificada pela ação de ressaltá-lo através dos olhos de Sasha, o que acaba por lhe dar um tom fantástico, mágico e duplo, pois, ao passo que representa paralelamente o pavor sentido por Sergei ao não encontrar o amigo no meio da multidão, também se transforma no espetáculo da realidade filtrado por olhos puros e impressionáveis. Já essa duplicidade é totalmente explorada no fim, quando, depois de marcarem uma ida ao cinema, o eterno refúgio dos solitários e sonhadores, Sasha e Sergei não conseguem se encontrar. Entretanto, a narrativa termina, mesmo assim, com a imagem dos dois juntos em cima do rolo compressor.
Realidade ou sonho? No fim, essa distinção não faz diferença. No cinema de Tarkovsky, tudo é uma questão de como ver.