por João Araújo
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uma parceria com À Pala de Walsh
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Uma Europa em reconstrução e um cineasta em formação: I Vitelloni (Os Boas-Vidas, 1953) é o terceiro filme de Federico Fellini (o segundo a solo), e surge, em 1953, num período conturbado do pós-guerra europeu, com uma Itália empobrecida depois de anos de fascismo e destruição, em busca de uma reconciliação e renovação, e também numa altura de indefinição na carreira de Fellini como realizador. Um ano antes de La Strada (A Estrada, 1954), a sua primeira obra-prima consensual, onde este começa a explorar uma linguagem poética entre a fantasia e a realidade, e depois de uma primeira obra pouco convincente [Lo sceicco bianco (O Sheik Branco, 1952)], Fellini está aqui ainda longe do estilo subjetivo e surreal que o irá celebrizar mais tarde com filmes como La Dolce Vita (A Doce Vida, 1960) e 8 ½ (Fellini 8½, 1963), envolto ainda pelo neorrealismo que dominou o cinema italiano na década anterior, movimento no qual o próprio teve um papel determinante como co-argumentista de filmes como Roma città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945) e Paisà (1946).
É neste contexto de indefinição e impasse que Fellini e dois dos seus colaboradores habituais, Ennio Flaiano e Tullio Pinelli, trabalham numa história sobre as suas memórias partilhadas sobre crescer numa pequena cidade junto ao mar, símbolo de um local que parece parado no tempo, precisamente sobre um grupo de personagens num estado suspenso, ligados sob o pretexto da amizade, mas também de um marasmo coletivo. I Vitelloni começa por ser curioso desde logo pelo seu título, uma expressão local que se refere a “alguém imaturo e preguiçoso, sem uma identidade clara ou sem uma ideia do que quer fazer na vida”, ou nas palavras do próprio Fellini, “os desempregados da classe média, os meninos da mãe — brilham na altura das férias, e esperar pelas próximas ocupa o resto do ano”. O título em Portugal foi traduzido para “Os Inúteis” e no Brasil para “Os Boas Vidas”, numa sintonia que faz justiça ao grupo de amigos aqui retratado.
A amizade deste grupo nasce primeiro de uma ligação geracional, já que têm todos a mesma idade (este tipo de ligação surge muitas vezes na escola, na divisão por idades), mas também por pertencerem todos a uma classe média, mesmo que debilitada (pode haver uma escassez de empregos e de rendimentos, porém mesmo assim as suas famílias têm negócios, criadas e automóveis, por exemplo), e por uma solidariedade inabalável entre eles, ora cobrindo os erros dos outros, ora validando comportamentos. Boêmios, todos perto dos 30 anos, vivem ainda como adolescentes: nenhum deles trabalha, e apesar de não terem muito dinheiro, gastam o que têm em apostas ou festas — sem um futuro assegurado, parecem pouco preocupados em mudar o rumo da sua vida, porque por enquanto ela é bela. Apesar de nenhuma destas personagens ser particularmente simpática, o argumento tem o mérito de conseguir criar empatia com as suas pequenas aventuras, acentuando um certo sentimento de inevitabilidade dos seus destinos, como se eles próprios acreditassem que não havia uma qualquer outra saída, exprimindo um olhar que, mesmo antes de ser de despedida, já é nostálgico.
As distinções entre os diferentes elementos do grupo, e em particular, um contraste entre personalidades, vai colocar as lealdades entre amigos em causa. O líder espiritual do grupo é Fausto, a personagem mais desprezível entre todos, o mulherengo infiel que rapidamente se vai encontrar casado com Sandra, depois de a engravidar, e que começa o filme a tentar fugir literalmente das suas responsabilidades; Leopoldo é o intelectual, aspirante adiado a dramaturgo e poeta, e Alberto e Ricardo são os brincalhões quase indistintos que compõem o grupo; no espectro oposto de Fausto encontramos Moraldo, irmão de Sandra, o mais jovem do grupo, mais recatado e sempre observador, que funciona como uma espécie de alter-ego do espectador, e do realizador, no filme.
À medida que o filme retrata a vida pacata nesta cidade — mais do que uma narrativa, o filme apresenta uma série de pequenos episódios que ilustram o adiar do encontro com a realidade que os espera — e à medida que os laços de amizade são confirmados pelos seus comportamentos de camaradagem, Fellini sublinha de forma magistral uma forte crítica social, que procura desmontar como esses comportamentos eram aceites e normalizados como reflexo de um conservadorismo que parece perpetuar um modo de vida, paralisando qualquer hipótese de progresso, numa sociedade retrógrada e organizada à volta do patriarcado e consequente machismo, onde a infidelidade masculina era desculpada e qualquer desvio à ordem estabelecida vista como uma ameaça.
Numa das situações apresentadas, Alberto, que vive com a mãe e desempregado, às custas do emprego da irmã, é apesar disso quem dá as ordens em casa, e a tragédia aparece quando a irmã “foge” para viver com um homem — a tragédia é que Alberto terá de procurar um emprego; noutra sequência, Leopoldo afirma-se como uma alma incompreendida pela sua sensibilidade artística, mas quando um conhecido ator de visita à cidade tenta uma aproximação, foge horrorizado com a sugestão de homossexualidade; noutra cena ainda, os amigos ao passarem de carro por um grupo de trabalhadores na estrada insultam-nos de forma gratuita, para acabarem a fugir a pé quando o carro avaria — Fellini usa o humor de forma certeira ao longo do filme, desde logo quando, na primeira sequência, uma festa é interrompida por uma tempestade e um dos personagens proclama que a festa ainda não acabou, contra todas as evidências.
O exemplo mais significativo acontece já perto do fim, quando perante mais uma infidelidade de Fausto, Moraldo fica à sua espera, não para o confrontar, mas para o proteger, de forma a que a sua irmã não descubra o que aconteceu. Este evento leva-o a considerar o seu papel na perpetuação de tais comportamentos — e que tanto desgosto causam nos que lhe são próximos, para além do seu grupo de amigos. Admite assim, finalmente, que naquela cidade, presa ao passado, condenada à tradição, nada irá realmente mudar, e a única coisa que lhe resta é partir. Decide então apanhar o próximo comboio, deixando tudo para trás, num gesto acompanhado por uma sequência inesquecível e um movimento da câmara de Fellini (que tinha até aí sido bastante sóbrio), ao intercalar o olhar para trás de Moraldo com imagens de todas as outras personagens a dormirem nas suas camas, adormecidas nas suas vidas, apagadas, perdidas e esquecidas, enquanto a câmara se afasta ligeiramente, despedindo-se delas, tal como Moraldo se afasta.
Fellini diria um dia que “a nossa missão como contadores de histórias é levar as pessoas à estação. Lá cada um irá escolher o seu comboio… mas temos pelo menos de levá-los à estação, a um ponto de partida” — I Vitelloni é o cinema como janela para uma nova perspectiva da realidade, mas também como janela para um novo futuro.
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