por Raquel Morais
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uma parceria com À Pala de Walsh
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“[S]e queres eu vou à frente, ou vou atrás de ti”
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Fernando Matos Silva[i]
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São dois os homens que se escapam da prisão de Montluc, em Un condamné à mort s’est échappé (Um Condenado à Morte Escapou, 1956, Robert Bresson). São dois, mas é como se fossem um, de tal forma a fuga de um depende da fuga do outro. A maior parte dos dias do tenente Fontaine são passados em isolamento, até a chegada inesperada, no último terço do filme, do jovem soldado François Jost.
Se Fontaine se ocupa, solitário, a desmontar, a partir do interior, a cela onde se encontra encarcerado, a sua existência, a sua sobrevivência são, acima de tudo, um fenômeno coletivo, tanto nas origens quanto nos frutos: nada do que faz é feito sem os seus companheiros e tudo o que faz é feito, em última instância, também para eles. Aquilo que leva Fontaine a ser perseguido é a sua associação à Resistência francesa, o que revela nele um sentido de compromisso e responsabilidade comum anterior à sua captura. No entanto, só depois de preso cresce em si a percepção de que o seu isolamento só o é na aparência. A sua detenção corresponde a uma espécie de entrada numa irmandade de resistentes de que fazia já parte, mas que a partir de então se estabelece como, mais do que nunca, basilar.
Na primeira cena do filme, passada no carro da polícia que o transporta, Fontaine age ainda a solo, ao lado de dois homens que, algemados um ao outro, são a imagem da aliança. Para o Fontaine de então, o único par são as suas mãos, cujas palmas se abrem em espelho na preparação de uma fuga que acaba por falhar. Na primeira noite que passa na prisão, ouve, antes de adormecer, o companheiro da cela ao lado bater na parede comum. Aquele som, pensa, serve de pouco perante a perda de coragem que o acomete. É ainda sozinho que adormece dessa vez.
Só nos dias seguintes começa a compreender que aquelas batidas são parte de uma complexa rede de comunicações e trocas existente na prisão, rede que, na verdade, se estende para além daqueles muros. Os homens e as mulheres de Un condamné à mort s’est échappé, aqueles que vemos, mas sobretudo aqueles que não vemos, são como um exército de formigas trabalhando, resistindo paciente, silenciosa, subterraneamente, passando de mão em mão notas escritas e materiais: os três homens de negro que se passeiam no pátio dão a Fontaine, sem pedir nada em troca, pequenas, mas imprescindíveis, coisas, como um pedaço de corda, primeiro sinal da ligação entre dois pontos, um alfinete vindo da ala das mulheres, as cartas, possibilidade de comunicação com o exterior. Esta rede de proteção e cooperação permite que a visão que cada um tem das partes individuais do sistema que os aprisiona se torne comum, fazendo de cada experiência isolada uma parte de um mapa maior de conhecimento partilhado.
O filme surge não como mera história individual, mas como símbolo da história de muitos milhares de pessoas, como aliás as primeiras palavras que vemos no ecrã anunciam. Mais até do que um símbolo, Un condamné à mort s’est échappé, através da sequência de encontros de Fontaine com outros camaradas que contribuem para a sua sobrevivência e para a sua fuga, torna evidente a necessidade da ação coletiva.
Se o desaparecimento do colega Terry, ou o fuzilamento de um dos primeiros companheiros com quem Fontaine, através das batidas dos dedos, estabeleceu contacto, o levam a sentir-se desamparado, será a presença de outros camaradas a devolver-lhe a esperança: ao senhor Blanchet, fechado na cela ao lado, e que inicialmente recusa envolver-se nas atividades de resistência dos outros presos, Fontaine diz que o observa e que isso lhe dá coragem — Blanchet dar-lhe-á também o cobertor que lhe permite acabar a corda com a qual escapar. Antes dessa fuga, Fontaine despede-se de Blanchet, que lhe diz, “Encontramo-nos numa outra vida, talvez”, ao qual Fontaine responde, “Nesta vida. Temos de acreditar”.
Mas, de facto, o contributo de muitos companheiros para a liberdade e fuga do protagonista depende, tragicamente, do seu desaparecimento: como lhe diz Blanchet a certa altura, foi preciso Orsini falhar para que Fontaine pudesse ser bem sucedido. A fuga de Orsini serviu como uma espécie de ensaio, de demonstração acerca de que passos era preciso melhorar.
A chegada de Jost vem responder de outra forma àquelas ausências. Depois de conhecer a sua sentença de morte, anunciada para daí a poucos dias, Fontaine sente finalmente a urgência da fuga e compreende a necessidade de aceitar as condições presentes, em vez de esperar indefinidamente pelas condições ideias, decidindo assim avançar. É precisamente então que Jost é colocado na cela de Fontaine, surgindo inicialmente como uma ameaça ao plano de evasão. A princípio, Fontaine desconfia dele, estranha-o, repudia-o. O corpo daquele novo homem é a primeira evidência material da grande rede de que o protagonista faz parte, deixando-o assim a mãos com o dilema de ter de escolher entre matar Jost ou levá-lo consigo. Se, pelo título, sabemos desde o início do filme que a fuga de um homem é certa, a surpresa que a secção final do filme traz será talvez a aliança com Jost, que se torna não apenas admissível, mas que prova ser absolutamente necessária para que a evasão possa vingar.
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Un condamné à mort s’est échappé era um dos filmes que o realizador português António Reis (1927-1991) tinha como essenciais e que estudava com os seus alunos na Escola de Cinema, onde ensinou desde a década de 1970 até à sua morte. O que aqui trago sobre o filme de Bresson relaciona-se diretamente com a obra de Reis e Margarida Cordeiro, companheira de vida e de trabalho.
A narrativa mais ampla criada em torno da figura de Reis após a sua morte e, em certa medida, também em torno dos filmes, por críticos, amigos, alunos, depende fortemente de conceitos como afeto, amor, comunidade, bem como da ideia de que a sua prática fílmica é indistinguível de uma forma de vida e de trabalho, tal como sugerido por Cordeiro ao descrever a sua relação criativa com Reis[ii]. Também Reis, numa entrevista dada a Serge Daney e Jean-Pierre Oudart sobre o filme Trás-os-Montes (1976), publicada nos Cahiers du Cinéma em 1977, dá conta desta relação íntima entre o a criação dos filmes e uma rede de relações: “Posso dizer-te que nunca filmamos um camponês, uma criança, um velho, sem antes nos tornarmos companheiros ou amigos deles”[iii], apontando para uma aprendizagem de um modo de trabalhar e de fazer cinema que se alimenta do seu convívio com aquelas comunidades rurais transmontanas.
A relevância de uma ligação pessoal e afetiva recorre também em relação a outros interlocutores de Reis, principalmente os seus alunos. Um sentimento de pertença a uma comunidade torna-se visível nos depoimentos de estudantes seus reunidos em publicações das últimas décadas (Coutinho, Lobo, 1997; Lima, 2018; Bogalheiro, 2020). Estes dão conta da construção de relações por meio de afinidades intelectuais e artísticas, e da constituição de uma educação estética através de ligações profundamente pessoais. Falando do mundo habitado por Reis, Cordeiro descreve precisamente uma tapeçaria de relações, um meio intelectual e cultural feito de amizades[iv].
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O investigador Paulo Cunha vê neste retrato um exemplo claro de um aspecto que considera recorrente no cinema português, um “cinema pessoal, confessional, contemplativo, ritualizado, esteticamente intransigente e rodado em espaços privados e caros aos seus cineastas”[v], muito devido à forma como estes filmes foram produzidos fora do contexto de uma indústria cinematográfica plenamente formada e por isso com meios muito limitados, através de formas de produção e organização quase artesanais. Os filmes de Cordeiro e Reis construíram-se como projetos de longa data, profundamente pessoais, que os realizadores conseguiram concluir trabalhando neles fora dos seus empregos normais, com escassos recursos financeiros e dependendo por vezes do apoio de pessoas que integravam a rede de relações que acima descrevi.
A importância de um sentido de proximidade é também perceptível quando Cordeiro menciona que as coisas mais fáceis de transpor para o filme seriam as que estavam mais perto dos realizadores[vi]. Esta proximidade à comunidade filmada surge no cinema de Cordeiro e Reis de forma concreta, visto que os filmes resultam de um confronto direto com condições materiais, nomeadamente por causa das referidas dificuldades de produção. Nesse sentido, ressurge aqui Un condamné à mort s’est échappé e a luta corpo a corpo de Fontaine contra o espaço da prisão, contra as suas grades, as suas paredes, as suas portas. Essa luta é vencida através do recurso aos poucos materiais de que dispõe (lápis, metal, arame, tecido), que frequentemente lhe chegam através dos seus companheiros, à semelhança dos metros de película que chegaram às mãos de Reis por causa da estima dos realizadores e seus amigos Alberto Seixas Santos e Fernando Lopes, que lhe permitiram criar, com Cordeiro, o seu filme Jaime (1974), também ele um filme sobre homens que coabitam entre os muros de um hospital que parecem os de uma prisão, filme que, através das palavras de Reis, lembra, precisamente, a obra de Bresson: “O Jaime arrisca-se na luta pela dignificação do homem, luta pela dignificação nas circunstâncias mais extremas. Arrisca-se num combate contra a coisificação. É, digamos, um grito pelo direito à vida. É, pois, um ato de solidariedade”[vii].
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Notas:
[i] Lobo, Maria da Graça (1997). “Entrevista a Fernando Matos Silva”, in Moutinho, Anabela e Maria da Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, pp. 96.
[ii] Moutinho, Anabela (1997). “Entrevista com Margarida Cordeiro”, in Moutinho, Anabela e Maria da Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, pp. 8.
[iii] Daney, Serge, Oudart., Jean-Pierre (1977). “Trás-os-Montes – Entretien avec António Reis”, Cahiers du Cinéma n. 276, Maio de 1977. Apud Moutinho, Anabela e Maria da Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, 1997, pp. 258.
[iv] Moutinho, Anabela (1997). “Entrevista com Margarida Cordeiro”, in Moutinho, Anabela e Maria da Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, pp. 9.
[v] Cunha, Paulo (2008). “Cinema do Umbigo”, in Doc On-line, n.05, Dezembro 2008, www.doc.ubi.pt, pp. 50-62.
[vi] Moutinho, Anabela (1997). “Entrevista com Margarida Cordeiro”, in Moutinho, Anabela e Maria da Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, pp. 11.
[vii] Reis, António (1974), “Cinema é um estilo de vida”, Capital, s/ind. de entrevistador, 15 de Agosto de 1974. Apud Moutinho, Anabela e Maria da Graça Lobo (org.) António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra. Faro: Cineclube de Faro, 1997, pp. 240.
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