por Ricardo Vieira Lisboa
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Este é o texto de estreia da parceria internacional entre À Pala de Walsh e o Estado da Arte
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O que aqui me traz é simples: uma abraço cinéfilo transatlântico que une dois espaços de reflexão sobre o cinema, o brasileiro Estado da Arte (Estadão) e o português À pala de Walsh. Une-nos também a língua, naturalmente, a história, com todos os seus aspectos doces e cruéis, e a cultura, cheia de transmutações locais. Tudo somado numa sensibilidade comum que talvez construa um semelhante modo de ver o mundo, ou apenas a sombra de uma conexão que se esfuma, mais e mais, a cada dia que passa. Esta é, portanto, a primeira missiva de uma série de trocas mensais que agora se inicia. Uma mensagem, enfrascada numa botelha, lançada ao mar, à espera de ser lida no outro lado do planeta. O mais certo é que se perca no oceano das comunicações digitais, como quase tudo o que se escreve nos dias de hoje. Aliás, foi exactamente para combater esse ininterrupto caminho para o esquecimento que aceitámos, com entusiasmo, esta parceria. Uma troca que nos fortalece.
Não há regras nesta partilha de afectos, mas achámos que seria uma cordialidade começar com um exercício de olhares cruzados. Isto é, ler o que o português tem a dizer sobre um filme brasileiro, e aguardar o que o brasileiro tem a escrever sobre um filme português (para depois, desfeitos os embaraços dos primeiros conhecimentos, se abrirem as comportas da cinefilia). É o princípio de uma hospitalidade carinhosa e preocupada, aberta aos mundos que o Outro carrega.
No entanto, o filme que escolhi como ponto de partida desta correspondência surge como uma espécie de inversão provocadora das poucas regras que havíamos estabelecido. Mau começo. Ou talvez não… Escolhi um filme brasileiro, de facto, mas realizado por uma brasileira franco-colombiana e rodado em Portugal. Ela, a magnânima, Paula Gaitán, o filme, Diário de Sintra (2008). A escolha, como talvez o leitor já antecipe, não foi inocente. Esse é um filme de luto, uma rememoração dos últimos meses de vida com Glauber Rocha, por parte da sua viúva, mais de vinte e cinco anos após a sua morte. Este triângulo composto por Gaitán, Rocha e Sintra é-me profundamente tocante.
Gaitán é uma das vozes mais singulares do cinema brasileiro das últimas décadas, e só este ano, de pandemia, já me fez salivar pelos seus dois novos filmes, É Rocha e Rio, Negro Leo (2020), sobre o músico Negro Leo, e o epopeico Luz nos Trópicos (2020), que marca o seu regresso à Amazónia, mais de tinta anos depois da sua estreia, Uaka (1988).
Rocha é o nome cimeiro do Cinema Novo Brasileiro, mas a sua ligação com Portugal é tão cheia de boas-esperanças e utopias que convocá-lo para o primeiro tomo desta parceria, mesmo que apenas de forma espectral, só poderia ser auspicioso. Rocha viveu a nossa Revolução dos Cravos, sendo um dos rostos que a fixou em película, tanto n‘As Armas e o Povo (1975), como no filme inacabado Lisboa Livre (1975). A sua amizade com alguns dos nomes do Novo Cinema Português, nomeadamente Paulo Rocha e Fernando Lopes, esteve, várias vezes, entre as décadas de 1960 e 1980, para dar origem a co-produções transatlânticas — que seriam sempre frustradas, mas que deram origem à escolha de Geraldo Del Rey para o papel principal de Mudar de Vida (1966). Glauber “queria que o Cinema Novo brasileiro fosse fraterno, expansionista”, como cita Paulo Cunha no recheadíssimo texto «Glauber, o amigo brasileiro», que escreveu para o À pala de Walsh.
Após a má recepção d‘A Idade da Terra (1980) no Festival de Veneza, Rocha exila-se em Portugal no início de 1981, após uma viagem por Itália. Escolhe Sintra como o seu novo poiso luso, onde reside cerca de seis meses, com a sua esposa, Paula Gaitán, e os seus dois filhos, Eryk Rocha e Ava Maíra. Será sobre esse curto período que incidirá o filme de Paula Gaitán, rodado só em 2007 mas contendo uma série de imagens em Super8 e 16mm filmadas pela própria à época, assim como diversos registos fotográficos da estada do casal e filhos em Portugal. Esse ano de 1981 — o mais marcante de todos os anos para o cinema português! — seria riquíssimo e também tristíssimo. Ano da chegada de Glauber em Portugal, ano em que a Cinemateca Portuguesa lhe dedica uma retrospectiva (intitulada Kynoperszpektyva 81), ano da elaboração do protocolo luso-brasileiro de cooperação cinematográfica, ano do filme-entrevista Abecedário (1981), com Glauber, realizado pelo português Manuel Carvalheiro. Mas também o ano em que Glauber contrairia a broncopneumonia que lhe causaria a morte por septicémica e o ano em que a Cinemateca Portuguesa, recém aberta, pega fogo (durante a dita retrospectiva dos filmes de Rocha), perdendo-se as várias cópias dos filmes exibidos e a exibir.
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Diário de Sintra não tem qualquer intenção histórica ou propriamente documental, no sentido mais jornalístico do termo. Bem pelo contrário, a abordagem de Gaitán, poeta e artista plástica, sempre rondou mais proximamente os modelos estéticos das vanguardas, tantos as primeiras como as segundas (como as “terceiras”, ou seja, aqueles que surgiram com a entrada do vídeo). Como explicou a realizadora, em entrevista à Mulheres do Cinema Brasileiro, “sou professora de vídeoarte e de cinema e na realidade faço um link entre o cinema dos primórdios, com as linguagens das vanguardas da década de 20 e com o cinema experimental americano. Faço todo um percurso, em cruzamento com a vídeoarte.” Poder-se-ia dizer, agora espaldado pela citação – e só a título de comparação (sempre injusta) -, que Diário de Sintra é uma espécie de Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972, Jonas Mekas) brasileiro filtrado pela dor de um Phantom Limb (2005, Jay Rosenblatt).
Tudo começa no breu. Durante mais de um minuto somos envoltos numa paisagem sonora de latidos de cães, uma trovoada que ruge ao longe e uma chuva que cai mansa. Depois o céu, azul brilhante, pontilhado pelo branco das nuvens. Eis senão quando a câmara torce, o azul gira sobre si, como se num desmaio, e os galhos de uma árvore seca, pelo frio do Inverno, rodam diante dos nossos olhos. O som de um riacho que corre por perto enche a banda sonora. A árvore despida é, como se sabe, símbolo de morte (como o Inverno é a estação do silêncio). Gaitán dá-nos essa imagem, entre a terra e o céu, um emaranhado de vides secas e mortas. Só que nessa trama de finos madeiros logo uma mão começa a fixar fotografias, com molas da roupa. Aos poucos a árvore despida enche-se de folhas, verdejantes de memórias. São imagens de Glauber.
Diário de Sintra descreve o rebentar e o florir dessas memórias diante de um lugar que agora se (re)visita, um lugar marcado pelo perda. Entra depois o som da rebentação das ondas e surge-nos uma textura, quase abstracta, da luz que brilha na superfície das águas revoltas. Nestes primeiros minutos de filmes Gaitán oferece-nos uma panóplia de sons, imagens, símbolos, metáforas e texturas aos quais regressará ao longo da hora e meia de filme que se segue. Uma dessas recorrências é a forma como a câmara e a mão se relacionam, confundindo-se as duas numa série de aproximações que tocam as coisas, moldando-as, naquilo que se poderá caracterizar como um verdadeiro cinema-háptico (ou à Glauber, um kyno-toque). Só que esse olhar que toca, na verdade, busca algo sem corpo, um fantasma. A mão pesquisa o mundo, a câmara sente as texturas das coisas, como se através delas pudesse sentir uma presença que se foi, uma presença imaterial.
Sintra é uma cidade especial (e também espectral). Conhecida pela sua dimensão romântica (da arquitectura e vegetação que a envolve) é uma terra de nevoeiros, junto à praia e ao mar. É um lugar muito querido por aqueles que, vindos de fora, vêm filmar Portugal (mais recentemente, por exemplo, Ira Sachs, Paul Auster ou Andrzej ?u?awski passaram por lá com as suas equipas). É também uma cidade fortemente marcada pelas narrativas que a literatura lhe ofereceu, em particular o “universo metafísico de Eça de Queiroz”. Embora nunca o faça de forma directa (além do título do filme, a realizadora faz poucas referências às especificidades daquele sítio), Gaitán convoca uma série de citações poéticas e literárias que incluem Sophia de Mello Breyner Andresen, Sylvia Plath, Gilles Deleuze, Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa ou Miguel Torga. Essa dimensão literária preenche o filme com palavras de luto, em particular uma passagem de Torga que parece resumir todo o propósito da realizadora, “uma viúva assemelha-se a uma árvore, um objecto-sombra.” Sendo o cinema uma arte da luz e do tempo, esta associação entre memória, cinema e arvoredo é particularmente certeira. A mesma luz e o mesmo tempo que dão corpo ao cinema fazem também crescer as plantas e espessar as memórias.
Se Diário de Sintra poderia ser apressadamente resumido como um filme-ensaio recapitulativo em estilo diarístico-funerário (que o é), essa descrição esqueceria a dimensão conceptual que agrega toda a empresa e que é explicitada, logo no início, de modo quase aforístico pela voz da própria realizadora: “o olhar segue linhas e esquece o peso da matéria, assim como da memória.” Essas palavras correm sobre uma longa panorâmica da linha de rio de Lisboa, perseguindo as linhas de continuidade criadas pelo tabuleiro da ponte 25 de Abril, que corta a paisagem e se prolonga além terra e além mar.
As linhas são o grande motivo formal do filme: as linhas da corda da roupa onde se estendem os lençóis, nas ruas típicas de Lisboa (e que Gaitán filma com enorme nostalgia); as linhas do caminho de ferro, onde correm os comboios que ligam Lisboa a Sintra; as linhas do tempo que cruzam entre as imagens do presente e as memórias do passado, entre as imagens do passado e as perspectivas de futuro; as linhas arquitectónicas que se esboroam nas neblinas atlânticas; a linha de água que percorre todo o filme (na trilha sonora e também na imagem) e que, a certa altura, corre sobre uma imagem de Glauber afundada no leito de pequeno riacho; as linhas da pesca que capturam os peixes que vemos serem amanhados com enorme violência (não deixando nunca se poética); et cetera.
Essas linhas, agora narrativas, que o filme segue levam-no, ao sabor do vento, por várias terras, e levam Gaitán a encontrar tanto pessoas anónimas que nunca viram um filme de Glauber (ou ouviram sequer falar dele — duas senhoras confundem-no com o ator português de “novelas” Nicolau Breyner) como alguns daqueles que com ele partilharam momentos de amizade e de trabalho, em particular os realizadores Paulo Rocha e Rui Simões. Só que a câmara da realizadora evita, com determinação, as “cabeças falantes” do documentário televisivo, focando-se muitas vezes, se não sempre, nas mãos (sempre as mãos!) que seguram e tacteiam fotografias onde surge Glauber figurado. Assim, através da mãos, Gaitán dá-nos as subjectividades de cada um daqueles olhares (mais ou menos informados). Um momento curioso encontra-se quando, perante a mesma imagem, pessoas diferentes projectam (como na sala de cinema) visões distintas: é “uma imagem de exílio”, diz Simões, é “uma imagem de paixão”, diz Rocha. E nem de propósito, será Paulo Rocha que lembrará as mãos (principescas) de Glauber, quando lhe transmitia o diagnóstico feito pelos médicos portugueses que acompanharam nesse fatídico Verão de 1981.
Como afirma a voz da realizadora, noutro momento, “a paisagem não é habitada, ela é vista por alguém que se encontra em exílio”. Refere-se, portanto, a um olhar que preenche o espaço, que o habita. E se esse é o olhar de Glauber, Gaitán procura também outros olhares que dão aos sítios o seu corpo.
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Como todos aqueles que perdem alguém, a realizadora torna-se numa recolectora de recordações. Cada uma das pequenas memórias daqueles que contactaram com o seu falecido marido são como pérolas perdidas no oceano de uma vida cheia. Recolhê-las é reactivar o baú das memórias, enchendo-o de tesouros secretos. Este modo de reviver o amor através de alteridades partilhadas é a razão de ser de Diário de Sintra, sendo que a expressão “diário” ganha aqui um novo sentido, qual caderno de notas de uma visita de campo ao passado. O filme mistura, nessa série de apontamentos, uma surpreendente dimensão etnográfica que oferece uma visão solar de Portugal (ainda que se oiça que “Sintra is nice place to die”). A voz de Gaitán declamará, pouco depois, os versos “um país sem nome / uma terra nua”, acrescentado, de seguida, “o nosso céu não é feito de luz, é feito de lamentações aquosas”, concluindo-se, já num excerto sonoro da própria voz de Glauber, “luz e som? Eu prefiro a alma”. Portugal pouco interessa, afinal. É uma circunstancialidade. É apenas mais uma sombra, no teatro de silhuetas que Gaitán encena nesta ópera de murmúrios lastimosos. Onde já nem as imagens chegam, onde já nenhuma forma é suficiente.
O filme cansa-se de correr (a 24 fotogramas por segundo). Ofega. E a imagem desacelera, inspira e expira, lentamente. Fixa-se nos momentos em que o ar se exala, dos brônquios corroídos. Os cabelos já estão brancos. O fim está próximo. A árvore regressa e as folhas/fotografias/memórias começam a cair. É Outono de novo. O Inverno está a chegar, e com ele o silêncio definitivo. O filme acaba, como uma lápide.
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