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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com a Persona Cinema. Hoje, Lucas Petry Bender fala sobre Little Odessa, de James Gray.
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Morrer de olhos abertos em Little Odessa, de James Gray
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por Lucas Petry Bender
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Um prolongado plano completamente escuro, ao som de um exuberante e vívido coral: eis os momentos iniciais do primeiro longa de James Gray, Fuga para Odessa (Little Odessa, 1994). Em esplêndida sincronia, no momento mais agudo e elevado da música surge, na obscuridade, um olho em super-close. Faz-se a luz, a pupila oscila como uma lente procurando ajustar-se à claridade — começa o filme. A gênese do cinema de Gray se dá a partir de um olho que se abre na escuridão, por obra de um som celestial. É nesse universo de luz e sombras que vai se desenvolver uma das filmografias mais consistentes surgidas nas últimas décadas, realizada por um nova-iorquino descendente de judeus ucranianos.
O olho que emerge das sombras é de Joshua Shapira (Tim Roth), um assassino a serviço de mafiosos russos em Nova Iorque. Com a frieza e a potência de uma espécie de anjo da morte, ele retorna a Little Odessa — como é conhecida a área de Brigthon Beach, no Brooklyn, onde se concentram descendentes de russos — para uma fracassada e nefasta parábola do filho pródigo: o pai (Maximilian Schell) não quer a volta do filho assassino, apesar do esforço de aproximação empreendido pelo filho mais jovem, Reuben (Edward Furlong), e da doença terminal da mãe (Vanessa Redgrave). O pai sente que a presença de Joshua é o mau agouro do que ele considera um castigo divino.
“Você acredita em Deus? Vamos esperar dez segundos e ver se Deus te salva”, diz Joshua com a arma em punho, prestes a executar a sua próxima vítima. Ficamos nos perguntando se essa possibilidade de misericórdia não é o desejo mais profundo e inconsciente do próprio assassino, se não é Joshua mesmo quem espera por algo para lhe salvar ou condenar — como um Raskólnikov que comete um crime, pois, afinal, espera o castigo que lhe abrirá o caminho de uma salvação. Crime e Castigo é expressamente citado em um diálogo do filme, e o diretor é bastante familiarizado com a cultura e a literatura russas (a propósito, poucos filmes são tão dostoievskianos quanto a obra-prima do diretor, Era uma vez em Nova York, lançado dezenove anos depois).
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Barro primordial
O primeiro longa de James Gray é sua obra mais sombria e gélida. Pode parecer quase desprovido de emoção num primeiro momento; seus longos planos buscam a expressão de sentimentos encobertos pelo frio do ambiente invernal e das almas soturnas. O gelo também queima, todavia. Atravessando a insensibilidade da superfície, chega-se ao lodo avermelhado sob a neve que vai derretendo (uma imagem cara a Dostoiévski, mais uma vez), chega-se ao barro com que parecem formados os personagens. A expressão de elementos subterrâneos do coração humano é acentuada pela trilha sonora de corais graves e obscuros, característicos da tradição russa, ao longo do desenvolvimento do filme — diferindo apenas nas cenas de abertura e de encerramento, em que os corais são solares, iluminados.
Exceto por produções do leste europeu, entre outras mais ou menos obscuras, Gray foi provavelmente um dos primeiros cineastas a utilizar composições do hoje consagrado estoniano Arvo Pärt. “A música é minha libertação e meu voo, mas também um doloroso espinho na minha carne e na minha alma”, disse o compositor, por ocasião do recebimento de uma homenagem. Substituindo a música pelo cinema, são palavras que imaginamos aplicáveis ao diretor, desde os primeiros instantes de seu primeiro filme, no qual a escuridão e a música celestial se encontram, criando um contraste de improvável harmonia.
Fuga para Odessa extrai da sua paisagem urbana o sabor da liberdade indômita da street culture nova-iorquina — presente, com mais ou menos força, nos cinco primeiros longas do diretor —, ainda que, paradoxalmente, envolta por uma teia de relações familiares, laços de sangue e afetos subterrâneos. Ver os irmãos Joshua e Reuben comendo qualquer coisa em pé ao ar livre, debaixo de uma nevasca que esvazia as ruas e parece isolá-los de todo o universo, enquanto trocam empurrões de brincadeira e apostam corrida até a esquina, sublimando a violência latente em gestos bruscamente afetuosos — aí está um dos mais belos retratos da libertação que carrega consigo um espinho interior. Nesse sentido, Fuga para Odessa está entre os mais admiráveis longas do diretor.
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Janelas da alma
Em um filme que abre com a imagem de um olho recebendo luz — análogo ao ajuste da lente da câmera e ao olhar do espectador que se habitua com o escuro do cinema —, chama a atenção sobretudo o olhar que têm os mortos. O que James Gray não nos permite ignorar é o perturbador olhar da mãe e do irmão de Joshua quando seus corpos jazem no chão com a vida recém expirada. Ambos têm os olhos abertos como se procurassem eternizar o derradeiro instante da vida, como se ainda houvesse uma última impressão visual a ser transmitida diante do limiar entre a vida neste mundo e o reino do ignoto.
Quão doloroso e lamentável é imaginar para sempre fechadas as pálpebras de Reuben, que devotava seu olhar solitário aos velhos filmes de desolados cinemas — situação que serve de ponto de partida para o brilhante ensaio de Luiz Carlos Oliveira Jr., identificando o efeito visual de uma película queimada na tela do cinema com o momento fatal no destino do jovem. E como cobrir para sempre os olhos penetrantemente azuis de Vanessa Redgrave, com o seu magnetismo metálico que frequentemente parece frio, mas que não perde o viço nas nossas memórias cinematográficas? Ou, pelo contrário, justamente para preservar esses olhares da corrupção do tempo, gostaríamos de poder realizar o gesto solene e tipicamente cinematográfico de fechar as suas pálpebras com a palma da nossa mão?
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A Paixão de Joshua
Joshua percorre a sua própria via-crúcis quando, coberto de sangue, carrega o corpo do irmão sobre os ombros, avançando aos tropeços sob um peso que parece descomunal — macabro caminho da cruz, em que o sangue é alheio e o sacrifício não é de si próprio! O anjo da morte, entretanto, está vulnerável pela primeira vez, padecendo sob o peso da morte. Quer recomeçar, renascer para uma nova vida, como sua mãe lhe dissera que era possível? Cria-se ao longo do filme a expectativa de vermos o olho de Joshua deixando escapar uma lágrima de dor, de sofrimento, de vulnerabilidade, de arrependimento. Esperamos por isso na magnífica cena em que visita a mãe moribunda, e ainda mais na cena em que se depara com o corpo sem vida do irmão. Mas ele apenas fecha os olhos. Não cai a esperada lágrima.
Há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento, diz o Evangelho de Lucas, no que parece uma injustiça para com os justos. Mas haverá alguém justo neste mundo? Eis a grande provocação existencial que se coloca, pois o que há, sem dúvida, são aqueles que se consideram justos – são os metaforicamente cegos, que não enxergam os recantos mais obscuros dos seus próprios corações. A alegria celestial, a exemplo do coral que abre o filme, é abundante diante daquele que abriu os olhos e viu que não é justo. Essa é a expectativa que o filme cria desde o olho iluminado de Joshua na abertura. Mas não há alegria em Little Odessa. Estão todos marcados pela queda. Os dois personagens que encarnam alguma inocência possível morrem de olhos abertos porque a morte é o momento dessa lucidez radical. É significativo, no entanto, que o mesmo coral de exuberância celestial retorne na cena final.
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Tempo ilimitado
Fuga para Odessa encerra com um plano que se aproxima lentamente da face de Joshua, ainda respingada com o sangue de sua via-crúcis maldita. O filme respira profundamente nos seus últimos momentos, pois aquele olhar mudo levado a cabo por Tim Roth é dos mais intrigantes, fascinantes e insondáveis que já vimos. Há, no coração humano, muitas lutas, disputas, conflitos, um turbilhão de forças secretas entrechocando-se, e a face perplexa de Joshua é um emblema disso. Estará o anjo da morte assombrado com o valor da vida, afinal? Com sua fragilidade, precariedade, transitoriedade? Terá ele finalmente compreendido que o que forma um homem não é uma arma, mas uma chaga aberta? Tendo chegado ao limite da sua solidão e do seu abismo interior, estará lentamente contando os segundos para a sua própria condenação? Não sabemos, mas o fato é que não cai a esperada lágrima.
No entanto, embora perdido num vazio indefinido, o seu olhar parece simultaneamente refletir uma estranha serenidade — impressão reforçada pelo lento movimento da câmera na sua direção, pelo retorno do mesmo coral luminoso da abertura na trilha sonora e pela luz que incide resplandecente sobre sua face, pondo um brilho faiscante nos seus olhos, aquele mesmo olho que reflete o fiat lux da gênese da filmografia de Gray. Divisando os limites da consciência humana, o olhar fixo de Joshua religa-se aos olhares do irmão e da mãe mortos, como que a reuni-los numa outra dimensão, fora do tempo e do espaço.
Harold Bloom, distinguindo os ethos clássico de matriz grega, de um lado, e bíblico de origem hebraica, de outro, faz uma afirmação que nos ajuda a perscrutar o conflito de Joshua, e que ilumina os dramas familiares que permeiam toda a filmografia de James Gray:
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“Um povo cujo ideal é a luta pela primeira posição, necessariamente, deixa de honrar pai e mãe, enquanto um povo que exalta a paternidade e a maternidade transfere a luta para a esfera temporal, esforçando-se não para ser o melhor, mas para herdar a bênção que promete mais vida em um tempo ilimitado.” (Onde encontrar a sabedoria?, ed. Objetiva, 2009, pág. 92-93)
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Estará Joshua finalmente vislumbrando tal promessa? Será um olhar visionário sobre todo o sofrimento e todo o mal — os espinhos na carne e na alma — que o cinema de Gray enfrentará em sua busca por amor, perdão e redenção — o seu voo libertador? Estará o olhar de Joshua mirando os horizontes infinitos da busca pelo âmago da realidade e pelo encontro com o absoluto que conduzem às jornadas para a Cidade Perdida de Z e através das estrelas de Ad Astra?
Se o cinema é a arte que extrai do olhar o seu máximo potencial, a gênese da obra de James Gray é uma revelação de tudo o que podem os olhos abertos.
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