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Este ensaio é uma parceria do Estado da Arte com a Persona Cinema. Na estreia, Leandro Costa fala sobre Decálogo, a série de Krzysztof Kieslowski.
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A mise-en-scène contra a morte
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por Leandro Costa
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A cidade de Varsóvia está tomada pelas sombras. Sob os tons escuros, os indivíduos assemelham-se mais a fantasmas do que a seres humanos. São pessoas hostis que desprezam umas às outras. Tal soturnidade imagética é um retrato da paisagem moral desses indivíduos: um espaço cheio de ódio e de rancor, vestígios de uma cultura decadente, subjugada por um regime político tirânico.
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Dentre esses fantasmas, somos apresentados às seguintes personagens: Piotr, um advogado recém-formado e imbuído de idealismo; Jacek, um jovem de comportamento desprezível; e Waldemar, um taxista não muito diferente de Jacek.
Eis aí, em síntese, a ambientação do quinto episódio do Decálogo, a série inspirada nos dez mandamentos bíblicos, realizada por Krzysztof Kieslowski para a televisão polonesa no fim da década de 1980. Mesmo isoladamente, todos os episódios possuem um alto valor artístico, podendo ser considerados como um marco da narrativa televisiva. Segundo o estudioso Sean O’Sullivan, o Decálogo teria sido responsável pelo grande refinamento que as séries de TV apresentariam nos anos subsequentes. [1]
Cada filme baseia-se na premissa teológica de um dos mandamentos. Contudo, isso não significa que exista algo como uma “moral da história”, nem que as narrativas imponham normas à conduta de suas personagens. Nada disso. O professor Joseph Kickasola, um dos intérpretes mais argutos da obra do cineasta polonês, escreveu: “muitas vezes, Kieslowski parece estar indicando o quão difícil é seguir os mandamentos, ou até mesmo compreendê-los, entre as complexidades da vida contemporânea”. [2]
Sim, à primeira vista, a linguagem desse quinto episódio do Decálogo é demasiadamente retórica. O filme já inicia com a voz em off de Piotr deixando a sua tese explícita: para ele, a pena de morte não previne os crimes futuros, mas é apenas uma vingança da sociedade contra os criminosos. De fato, essa tese serve de mote para os conflitos que nos serão apresentados. No entanto, com muita habilidade, Kieslowski consegue transformar o que seria um mero discurso retórico em fragmentos de poesia dramática.
Foi essa capacidade de transformar ideias em drama o que mais chamou a atenção de alguém como Stanley Kubrick, por exemplo:
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“Kieslowski e Piesiewicz [co-roteirista do Decálogo] possuem a rara habilidade de dramatizar as suas ideias, em vez de apenas falar a respeito delas. Se há um discurso, ele ocorre mediante a ação dramática da história. Ninguém está contando ao espectador o que está acontecendo, pois lhe é conferido o poder da descoberta. Essa é uma habilidade tão deslumbrante, que você nunca percebe como as ideias surgiram ali. É só muito mais tarde que você compreende a profundidade com que elas tocaram o seu coração”. [3]
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A série do Decálogo apresenta-se, então, como um grande exemplo de arte bem realizada: um modelo de como abordar determinados temas tal como eles aparecem em nossa vida concreta. No cinema, essa é uma questão de mise-en-scène. E é aí que Kieslowski demonstra-se um verdadeiro mestre dessa arte.
O filme é dividido em dois segmentos. Na primeira parte, temos a apresentação das personagens e a identificação de suas funções dramáticas, até o clímax com o assassinato de Waldemar, perpetrado por Jacek. Na segunda parte, assistimos ao julgamento do criminoso, culminando com a sua execução.
A compreensão do enredo é importante para que possamos observar como Kieslowski utiliza os elementos da mise-en-scène na criação dos conflitos. Por exemplo: enquanto Piotr presta o exame admissional para tornar-se advogado, precisamente no momento do filme em que ele está expondo a sua tese a um representante da justiça, este último nunca é mostrado pela câmera. É como se, no diálogo com a justiça, nunca houvesse uma interlocução concreta.
Tal impressão é reforçada quando relacionamos esse momento à cena posterior ao veredicto de Jacek. Exatamente na metade do filme, quando vemos, então, os juízes (e finalmente a “face” da justiça é revelada), é o advogado Piotr quem assume uma forma despersonalizada na composição: a profundidade de campo o transforma num objeto abstrato dentro do quadro. Piotr e o juiz estão no mesmo espaço, mas nunca são mostrados sob o mesmo foco. Tal ausência de identidade entre os interlocutores demonstra a distância entre a justiça e os homens. A justiça faz parte de um estamento burocrático abstrato que, no contexto do filme, não diz respeito a ninguém em particular; já os homens são indivíduos concretos que habitam uma realidade cotidiana, dolorosamente material.
Esse tipo de contraste se repete. Como em quase todos os outros episódios do Decálogo, o filme possui uma estrutura dialética de tese e antítese. Porém — é bom que se diga mais uma vez — tal estrutura é sempre apresentada mediante conflitos dramáticos e não por expedientes retóricos.
O mais evidente dos paralelos está nas duas sequências de morte: o assassinato de Waldemar e a execução de Jacek. Ambas as mortes são preparadas de modo quase ritual: Jacek prepara-se para o seu crime fingindo que nada acontecerá, fazendo uma pequena refeição em um café; contudo, o seu sorriso desesperado não é suficiente para esconder a perturbação do seu estado psicológico; o carrasco que executará o jovem prepara os elementos da execução de modo indiferente, como se o seu serviço fosse a mais simples e mais banal de todas as ocupações humanas ? para não falarmos do comportamento ligeiramente sádico do seu ajudante durante o cumprimento da sentença.
As duas sequências são longas (o assassinato de Waldemar é tido por alguns como a mais longa sequência de homicídio da história do cinema); os detalhes são bem acentuados; a crueza das ações é reforçada tanto pela ausência de trilha sonora quanto pela edição de som, que privilegiam a respiração das personagens e as interações entre elas e os objetos que lhes circundam. Tudo isso contribui para que o ato da execução de Jacek, operado pela justiça, seja semelhante ao assassinato por ele perpetrado. Aí, então, a mise-en-scène encarna, materialmente, o princípio teológico do quinto mandamento: o da sacralidade da vida humana. De fato, a impressão mais marcante provocada pelo filme é a de que o ato de tirar a vida de alguém, independentemente de qualquer justificativa, é uma coisa brutal e absurda, contrária ao propósito da existência. Nesse contexto, o castigo afigura-se, mesmo, um crime, como a corroborar a tese exposta pelo advogado Piotr no começo da história. E esse efeito não é produzido por um discurso, mas, como vimos, ele emerge da organização dos elementos essencialmente cinematográficos: disposição dos objetos, composição, profundidade de campo, edição de som, montagem.
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É uma história sem final feliz, cuja resolução não exibe um mundo mais luminoso. O desfecho defronta-nos com o sol nascendo no horizonte, mas, sob os seus raios, o que vemos é a revolta incontida do advogado Piotr, motivada por sua impotência frente à realidade.
Entretanto, Kubrick fora bastante astucioso, pois, além de uma consequência emotiva imediata, o filme obtivera outros resultados: a versão de cinema desse episódio do Decálogo, que foi exibida e distribuída sob o título de Não matarás, fora lançada, por acaso, no momento em que havia muitos debates a respeito da pena de morte, então vigente na Polônia. O filme de Kieslowski não foi o fator determinante para a alteração da lei, mas, sem dúvida, ele ajudou a incutir no imaginário dos poloneses a crueldade implícita no ato do homicídio. E o fato é que, no ano posterior ao lançamento do filme, a pena de forte foi abolida do código penal polonês.
Nas definições de arte, em geral, e da arte do cinema, em particular, é um lugar comum que ela seja caracterizada como uma experiência de anulação do tempo, uma tentativa de vencer a morte. Esse é um significado metafórico. Porém, no caso aqui ilustrado, temos um exemplo no qual, para além da metáfora, uma história fictícia, mero conjunto articulado de sons e imagens, foi literalmente capaz de vencer a morte.
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Notas:
[1] Cf. o ensaio The Decalogue and the Remaking of American Television, contido na coletânea “After Kieslowski: the legacy of Krzysztof Kieslowski”, editada por Steven Woodward (Wayne State University Press, 2009).
[2] Joseph Kickasola, The films of Krzysztof Kieslowski: the liminal image (Continuum International publishing, 2004).
[3] Ibid.
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