Por que ver (e ler) Eisenstein hoje?

É comum ouvirmos que a universidade é uma instituição em crise. No campo do cinema e das artes, isso é falso. A universidade nunca foi tão poderosa, influente e atrativa. Há alguma vantagem nisso? Convém duvidar.

por Rodrigo Cássio Oliveira

Ler os textos teóricos de Sergei Eisenstein sobre o cinema, hoje, é perceber o quanto as reflexões sobre os filmes vão deixando de ser feitas com a devida clareza, articulação lógica e embasamento na análise de obras. Apesar de ter desaparecido no discurso dos aspirantes atuais ao vanguardismo, o diretor e teórico russo tem lugar garantido na história do pensamento cinematográfico. No Brasil, ele foi especialmente discutido durante os anos do cinema moderno, sendo um dos grandes mestres de Glauber Rocha.

Essa influência importante entre nós fez com que alguns dos textos de Eisenstein fossem publicados por aqui, com destaque para os livros A Forma do Filme e O Sentido do Filme. No entanto, de poucas décadas para cá, a sua influência sofreu uma considerável redução, e sobretudo o modo como Eisenstein aborda o cinema acabou distanciando os teóricos e críticos mais novos.

Quando trabalhava no Proletkult (Primeiro Teatro Operário), em meados dos anos 1910, a obsessão de Eisenstein pela análise de aspectos formais dos filmes já lhe rendia acusações de “formalismo”. Nessa época, porém, o formalismo ainda não era visto como uma teoria da arte tão antiquada e restritiva como hoje. O descarte desse ponto de vista pelos modelos mais recentes de teoria do cinema é um dos motivos que fizeram as teses de Eisenstein deixarem de ser discutidas.

Há que se considerar que as primeiras décadas do século XX eram especialmente abertas a reflexões vigorosas e inventivas como as de Eisenstein, uma vez que o cinema ainda era algo novo. Mas o fato de que o cinema agora é algo velho, com um legado de mais de cem anos de teorias e críticas, não serve para justificar a relevância tão questionável dos textos que artistas, curadores e críticos escrevem no presente.

Para cada obra, uma teoria

Quando falo em relevância questionável, não me refiro ao sucesso ou insucesso das teorias. No campo das artes, a “atualidade” da bibliografia não é uma boa medida para julgar aquilo que se diz. Teorias de sucesso temos aos montes. Elas estão presentes na intensiva produção acadêmica e são festejadas em congressos temáticos de especialistas. O que faltam, porém, são as teorias que realmente ajudem a explicar o cinema, como aquelas que Eisenstein produzia, sem receio de pensar profundamente os seus próprios filmes, nem de ouvir e responder opiniões divergentes.

A influência desmedida do discurso acadêmico sobre o mundo artístico é um dos motivos que dificultam a influência de um autor como Eisenstein na atualidade. É comum ouvirmos que a universidade é uma instituição em crise. No campo do cinema e das artes, isso é falso. A universidade nunca foi tão poderosa, influente e atrativa. Há alguma vantagem nisso? Convém duvidar. Quando os textos acadêmicos mais herméticos, os manifestos dos artistas e os textos de curadores se igualam em estilo, forma de abordagem e até em cacoetes, torna-se difícil que eles ofereçam argumentos interessantes sobre a arte, e não é raro que sequer ofereçam argumentos algum.

As referências que as escolas de cinema e arte passaram a adotar nas últimas décadas também não ajudam. O deleuzianismo acadêmico é um tédio, e talvez o próprio Deleuze o veria assim, se pudesse conhecê-lo. Não é justo, porém, colocar toda a conta nas costas de Deleuze. Se não há Deleuze, há Rancière. Se não ouvimos vagamente sobre “potências” e “afetos”, ouvimos vagamente sobre “partilhas”. Mas se não for Rancière, será qualquer autor que a universidade recomende, de modo que alguns de seus conceitos sirvam de escora para a prática de artistas que, sem esse aporte, sentiriam-se nus e excluídos entre seus pares.

“Vivemos numa época em que, na filosofia e no pensamento em geral, a imaginação trata a razão como uma mera executante de sua vontade”, escreveu Jacques Bouveresse em seu estudo sobre a decadência do rigor teórico na filosofia francesa do século XX (Prodígios e Vertigens da Analogia, publicado no Brasil pela Martins Fontes). A consolidação dessa filosofia irracionalista como um paradigma nos estudos artísticos é um problema.

Mesmo assim, não é completamente justo colocar a errância teórica atual na conta da bibliografia mais lida. A transformação de obras e textos artísticos em dissertações de mestrado é um fenômeno que vai além das metáforas confusionistas de alguns filósofos. Há razões mais profundas para o ocaso do rigor teórico no campo das artes. Penso que Arthur Danto tinha razão ao dizer que a arte pós-duchampiana não sobreviveria sem manter correspondência com alguma filosofia. O cinema não esteve alheio a isso. Para cada obra, uma teoria.

O que não se poderia prever é que essa filosofia viria quase sempre em sua versão acadêmica, e que as teorias seriam dependentes de poucos conceitos que reaparecem o tempo todo, em textos de evidente caráter retórico. Quando os lemos, percebemos que suas motivações não estão exatamente ligadas a alguma escolha estética baseada no conhecimento da arte (como em Eisenstein), mas em assegurar a posição de um grupo no campo simbólico em que ele transita. Quando o rigor perde a importância, o desleixo teórico estimula e protege o arrivismo.

Pensar o cinema sem academicismos

Eisenstein demonstra que existem caminhos melhores para pensar o cinema. “O velho”, como era chamado pelos seus amigos da escola excêntrica de atores, não precisava da autoridade de uma bibliografia para discordar de Pudovkin sobre o que é a montagem de um filme. Bastavam bons argumentos, exemplos concretos, metáforas precisas: a montagem não é um agrupamento de planos que se organizam como se fossem tijolos em uma parede, mas sim uma ideia nascida do confronto, da colisão entre planos que se opõem ou diferenciam.

É notável a clareza da argumentação de Einsenstein, no importante texto em que essa discussão é realizada (“Dramaturgia da Forma do Filme”, publicado no Brasil em A Forma do Filme). O estilo da sua exposição evidencia o compromisso com a comunicação das ideias. Não há rebuscamento gratuito. Não há apelo aos “afetos” de leitores previsíveis. Em Eisenstein, a vontade de tomar posição não atropela o raciocínio.

Quando Dziga Vertov polemizou contra o filme A Greve (1925), Eisenstein também soube respondê-lo, em um belo confronto de ideias sobre a montagem de atrações, um dos seus primeiros conceitos. É certo que a concepção de montagem intelectual, produto mais refinado da longa reflexão de Eisenstein, não teria existido sem a noção filosófica de um movimento dialético, retido do marxismo. Mas a importância do conceito de Eisenstein está nele mesmo, em sua sustentação nas operações formais dos filmes, o objeto maior da atenção teórica eisensteiniana. Dialética, aqui, não é um jargão filosófico. É um ponto de partida.

Isso tudo é o contrário do que se passa no “excesso de teorias” em que nos metemos. As metáforas decorativas tomaram o lugar dos argumentos e análises que opunham aqueles jovens diretores russos de um século atrás. Reler os textos de Eisenstein, portanto, é redescobrir a possibilidade de um pensamento cinematográfico sistemático e propositivo.

A universidade recebeu a obra de Eisenstein como um patrimônio. Mas é um erro acreditar que o cinema receberá da universidade alguma coisa parecida. Assim como a prática real da filosofia não está ligada à pesquisa acadêmica em filosofia, um cinema capaz de pensar a si mesmo dificilmente virá de artistas e críticos dominados pelo academicismo. E não é que faltem condições para que uma postura diferente venha a existir. O que mais falta é interesse dos envolvidos.

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