A retomada dos festivais de cinema em Portugal

“Ver um filme em uma sala de cinema é parte essencial desta arte.” Por Giovanni Comodo, de Portugal, um ensaio sobre a retomada de uma vivência estética e coletiva em meio à pandemia.

por Giovanni Comodo

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Ver um filme em uma sala de cinema é parte essencial desta arte. A tela grande, ao redimensionar um rosto humano para o tamanho de uma casa e pequenos gestos para a dimensão de carros, nos mostra detalhes imperceptíveis, mas isso resume somente uma parte dessa experiência vertiginosa; é também estar em um ambiente escuro, sem distrações, com os problemas da vida do lado de fora da porta, apenas com as imagens e sons para nos inundar, acompanhado de outras pessoas — conhecidas ou não — que estão ali compartilhando um objetivo comum: encontrar o cinema. Pois a reunião acidental de pessoas em uma sala de cinema funciona como um catalizador das emoções que um filme pode provocar — que o diga quem já esteve em uma sala cheia durante uma comédia, um terror ou o lançamento mais aguardado da última semana —, isto para não mencionar as diversas conversas e novas amizades no corredor da saída depois dos créditos rolarem. Toda sessão é, portanto, uma vivência estética e coletiva.

Entretanto, a pandemia da COVID-19 privou os frequentadores dessa experiência no mundo inteiro. Adequadamente, as salas de cinema foram impactadas pelas medidas sanitárias de combate à transmissão do vírus. Festivais de cinema foram obrigados a adiamentos, cancelamentos ou migrações para o formato virtual, com resultados diversos — paradoxalmente, ganhou-se em acessibilidade e perdeu-se em diálogo e integração, sem os encontros físicos e acasos que eles permitem.

Enquanto a curva de contágio continuava subindo no Brasil, noutros países em que a situação da pandemia esteve mais controlada já era possível voltar aos cinemas e festivais em 2020. Estive em Portugal entre o final de novembro e início de dezembro e pude conversar com produtores, coordenadores e profissionais de três festivais de cinema de diferentes proporções, em Lisboa e no interior, que tiveram sessões físicas no período e compartilharam suas experiências de adaptação, em meio aos desafios de uma segunda onda incipiente.

É importante ressaltar que Portugal possui uma experiência muito diferente da brasileira em relação à pandemia: o governo vem agindo desde o começo com diversas medidas restritivas de circulação, o uso obrigatório de máscaras e controles de entrada de pessoas no país, ainda que sob diversas críticas. O resultado hoje é uma taxa de mortalidade de 1,62% dos casos (somente no estado de São Paulo, essa taxa é de 3,09%),[1] ainda que o índice atual de incidência a cada um milhão de pessoas seja mais alto que o brasileiro: 50.387 diante de 39.389;[2] porém, o número brasileiro deve ser visto com certa reserva, uma vez que o Brasil realiza muito menos testes.

Em meados de outubro, Portugal viu seu índice de casos disparar mais uma vez, obrigando-se a estabelecer novas medidas restritivas, inclusive com toque de recolher após às 13:00h durante os fins de semana e feriados — nos dias úteis, a partir das 23h.

Os festivais de cinema precisaram se adaptar. Desde o retorno inesperado das matinês e a restrição de convidados até o número menor de sessões diárias (as salas precisam ser desinfetadas após cada exibição), eles continuaram acontecendo num alinhamento entre seguir as medidas governamentais de segurança sanitária para a população e a vontade de preservar um espaço de convívio e trocas entre profissionais e público local.

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LEFFEST

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LEFFEST – Fachada do Espaço Nimas (Foto de Ana Paganini)

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O Lisbon & Sintra Film Festival (LEFFEST), que acontece anualmente de forma simultânea em Lisboa e Sintra, com convidados do mundo todo, estava com tudo pronto para começar suas exibições em 13 de novembro quando, cinco dias antes, o governo anunciou, tarde da noite, novas medidas de caráter imediato para contenção da pandemia — dentre elas, o toque de recolher à tarde durante os fins de semana, o que entrava em conflito direto com a programação, já impressa, divulgada e com centenas de ingressos vendidos.

António Costa, diretor adjunto do festival, conversou comigo sobre a decisão de manter o programa na íntegra. Durante a madrugada do anúncio das novas medidas, a solução encontrada foi estender o festival por mais três dias e rearranjar os títulos atingidos nas novas datas e manhãs dos fins de semana. Uma versão online nunca foi cogitada: “O espírito do nosso festival é o cinema ser uma partilha, ainda que bem diferente do início da pandemia”, disse, fazendo lembrar outros protocolos, como as salas com apenas 50% da capacidade em lugares alternados, uso obrigatório de máscaras durante toda a exibição e o guichê da bilheteria na fachada do cinema, o que permitia a formação de fila na calçada com distanciamento (“não choveu em nenhum dia, tivemos sorte nisso também”).

“Foi uma decisão de resistência e política nossa”, afirmou. “Um festival tem sua riqueza nos encontros entre as pessoas, entre os filmes”. Em sua programação, retrospectivas de Paul Thomas Anderson, Wong Kar-Wai e Clément Cogitore e os trabalhos inéditos de Pedro Almodóvar (The Human Voice, de 2020), Abel Ferrara (Siberia, de 2019 e Sportin’ Life, de 2020), Chloé Zhao (Nomadland, de 2020), Paul Vecchiali (Un Soupçon d’amour, de 2020), Christian Petzold (Undine, de 2020), Cristi Puiu (Malmkrog, de 2020), entre outros, aliando nomes conhecidos do público e outros novos a descobrir, em muitas sessões esgotadas.

Por se tratar de um festival que também promove simpósios, debates e concertos, a programação conta com diversos convidados — cerca de 50 no total. Em razão da pandemia, muitos não puderam comparecer. Outros cancelaram de última hora por razões logísticas. Porém, Costa reconhece que tiveram muito incentivo e agradecimentos dos realizadores na execução do festival — Wong Kar Wai, Ferrara e Petzold, por exemplo, gravaram vídeos especialmente para apresentação de seus filmes por não poderem estar presentes. Ainda, todos os convidados internacionais ficaram isolados no mesmo hotel, fechado exclusivamente para eles, não sendo permitida a saída para passeios — Portugal estava fechada para turismo, para todos os efeitos — uma situação inusitada, porém bem aceita pelos convidados: “Você poderia tomar um café no saguão com Peter Handke (um dos jurados de 2020) e ouvir o Piotr Anderszewki ao piano em seguida”, disse Costa, bem-humorado, citando alguns dos presentes no isolamento. Todos os convidados internacionais precisaram apresentar teste negativo de COVID-19 para entrar no país e toda a equipe do hotel e do LEFFEST foi testada antes do evento — e monitorada após o festival, sem que ninguém tenha apresentado sintomas.

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Doclisboa

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Doclisboa (Foto de Gonçalo Castelo Soares)

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Dos festivais portugueses, o Doclisboa foi o que se reorganizou mais radicalmente em razão da pandemia. Em vez de acontecer por dez dias no final de outubro, a programação foi dividida por seis meses, em uma semana por mês, entre outubro de 2020 e março de 2021, sendo que cada um desses momentos “tem uma ideia programática orientadora, que os filmes selecionados pensam e abordam”, segundo Joana Sousa e Miguel Ribeiro, os diretores do festival.

A ideia faz mais sentido do que parece. Primeiro, atende a uma demanda da própria produção de filmes no momento, diretamente comprometida pela pandemia, dando mais tempo para a conclusão de títulos e permitindo maiores procuras por novos filmes pela direção do festival. Segundo, o Doclisboa passa a ser um festival quase permanente, em estímulo contínuo para restaurar o público das salas de cinema, como dizem os seus diretores, que veem “um sentido de missão a que nos queremos juntar, o de reconstituir um público de cinema na cidade de Lisboa. Com esse modelo, o festival está a ter uma presença regular na cidade e, para o público, é possível acompanhar a programação, apesar das medidas preventivas em vigor a cada momento.”

Por fim, trata-se também de “deixar as pessoas respirarem” em uma resposta aos tempos intensos que estamos vivendo, como me disse a coordenadora de comunicação do festival, Patrícia Cuan — pois nesse formato não há sessões sobrepostas nem excesso de filmes oferecidos, como é comum nos festivais. São poucos, revelados mês a mês, a fim também de dar maior destaque às produções selecionadas.

Por certo, o festival abdicou de realizar uma mostra competitiva com prêmio, “nem seria justo”, disse Cuan, “com todos os intervalos de tempo entre os filmes”. As impossibilidades de reunir um júri internacional e diverso também pesaram nessa escolha, além das questões de exclusividade de exibição que também perderam força diante da crise provocada pela pandemia. “Uma sessão competitiva no Doclisboa requer a estreia mundial ou internacional do filme selecionado e tal, à vista desse contexto, não era prioritário. Paralelamente, sentimos que este era um tempo para potenciar outros modos de diálogo entre os filmes, longe de modelos competitivos mas sim com novas pontes que, num ano desafiante, garantissem a circulação de todos os filmes que aqui iniciam os seus percursos”, disseram Sousa e Ribeiro, por e-mail.

Os três representantes foram enfáticos na necessidade das sessões físicas para o festival. “Existem, hoje em dia, ferramentas online que possibilitam estabelecer ligações entre diversos agentes, mas existe um fator extremamente importante num lugar físico de encontro que é a possibilidade do acaso, do espontâneo, do imprevisto. A eficiência do online dá-nos a chance de ver os filmes e ter conversas e reuniões, mas as ligações humanas mais ricas que são criadas num evento onde o público, profissionais e filmes se encontram num confronto direto não são passíveis de reproduzir num contexto puramente online”, disseram os diretores. Cuan também afirma que “cinema é uma experiência coletiva. E passamos tanto tempo confinados vendo filmes no PC que sentimos a necessidade de voltar para as salas. Não é cinema quando se vê na sua casa”.

Cuan prossegue: um festival também é importante na visibilidade do cinema local, em dar a ver esses filmes para o público da região, com os realizadores presentes. “Um festival não é só um lugar onde se veem filmes, mas onde se nutrem redes de discussão, partilha e produção de conhecimento. Acreditamos também que um festival serve à comunidade na qual se insere — as salas, o público, os profissionais do cinema etc. — e desempenha um papel crucial no desenvolvimento cultural, intelectual e político do local onde tem lugar. Embora os festivais internacionais tenham a função de estabelecer um mapa de ligações globais, devem captar essas valências tendo sempre como primeiro objetivo desenvolver os meios locais”, complementam Sousa e Ribeiro.

Dentro dessa lógica de diálogos e desenvolvimento, o Doclisboa teve algumas conversas com diretores, realizadas virtualmente, e também um segmento online, o Nebulae, espécie de espaço para networking de profissionais, com mais de 50 países representados e bons resultados. “Se calhar presencial fosse mais europeu e assim atingimos muito mais pessoas”, disse Cuan, observando ali novas possibilidades de trocas e experiências.

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Encontros Cinematográficos

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Encontros Cinematográficos (Foto de Ana Rodrigues)

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Por sua vez, os Encontros Cinematográficos, realizados anualmente no Fundão, pequena cidade a duas horas e meia de carro ao nordeste da capital, viram-se obrigados a alterar completamente suas datas e até diminuir sua programação (leia aqui a cobertura exclusiva do Estado da Arte).

Se as datas de costume, na primeira semana de maio, tiveram sua logística atingida em cheio pelo primeiro e mais severo lockdown decretado pelo governo, as novas datas de dezembro — quando então se imaginava que o pior já seria parte do passado — coincidiram com a segunda onda do coronavírus na Europa.

Assim, fazer acontecer esse importante evento para a comunidade local tornou-se “uma questão de honra”, como afirmou o coordenador artístico do festival, Mário Fernandes. Ainda mais por 2020 marcar o aniversário de dez anos dos Encontros, com um grande catálogo reunido todas as suas atividades já pronto para o prelo quando do adiamento.

Uma edição online foi sequer cogitada: “O encontro entre as pessoas só acontece no físico, é algo que precisa ser vivido”, afirmou. Enquanto o festival não acontecia em maio, a pedido do Jornal do Fundão foi realizada em parceria com os Encontros a mostra 40 dias, 40 filmes, um ciclo em paralelo, sem nenhum título que havia sido selecionado para essa edição, em que um filme e um texto eram disponibilizados aos leitores a cada dia da quarentena, “já que ninguém podia sair de casa”, disse Fernandes.

Durante o festival, os protocolos incluíam a capacidade da sala reduzida a cerca de 30%, duas medições de temperatura do público antes de entrar no prédio do cinema e na sala, totens de álcool gel em todos os lugares, obrigatoriedade do uso de máscara o tempo todo, além da necessidade de desinfetar a sala após cada sessão e das restrições de horário de circulação, o que obrigou os responsáveis à realização de somente uma sessão por dia — fazendo parte do programa inicial ser cancelado, como as sessões dedicadas à realizadora Inês Sapeta Dias e também aquelas de “carta-branca”, nas quais os realizadores convidados podem escolher qualquer filme para exibir no mesmo dia em que o seu (como “justiça poética”, segundo Fernandes, o programa foi impresso na íntegra no catálogo do festival).

A título de curiosidade, as cartas-brancas foram as seguintes: Paulo Faria havia escolhido O Selvagem da Motocicleta (1983), de Francis Ford Coppola; Manuel Mozos, a sessão dupla Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro, com The Last Day of Leonard Cohen in Hydra (2018), de Mário Fernandes; Inês Sapeta Dias escolhera Trem de Sombras (1997), de José Luis Guerín, e Pedro Costa, Onna no naka ni iru tanin [The Stranger Within a Woman, 1966], um dos últimos filmes dirigidos por Mikio Naruse.

Tal como no LEFFEST, os convidados foram mantidos isolados em um hotel enquanto aguardavam as sessões, mantendo o máximo de segurança possível aos locais. Não foram registrados novos casos ou mesmo sintomas entre os participantes e profissionais nos dias seguintes. Vale ressaltar que, ao contrário do LEFFEST ou do Doclisboa, que possuem um grande número de entidades públicas e privadas como parceiros, os Encontros acontecem de forma independente, apenas com apoio da prefeitura para hospedagem e alimentação dos convidados. Mais do que nunca, os Encontros em 2020 foram resultado de resiliência, perseverança e união entre a coordenação artística, a cidade de Fundão, os convidados e o público, com resultados marcantes.

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E o futuro?

A grande questão comum a todos é o mistério quanto às condições de 2021 para a realização de novas edições presenciais de festivais de cinema. “Tenho receio que muitas salas irão fechar, como já vem acontecendo”, disse Mário Fernandes.

Enquanto isso, já há novos planos, como o LEFFEST, que está com suas datas marcadas para novembro novamente. “As pessoas precisam de cinema”, disse António Costa, antes de nos despedirmos.

A equipe do Doclisboa também vê o ano com mais otimismo — sendo que sua edição atual ainda prosseguirá até março. “Cremos que já haverá condições em 2021 para garantir que o festival volte a receber as sessões competitivas e que aconteça com uma rede significativa de profissionais do cinema envolvidos”, afirmaram os diretores. Cuan acredita que continuará a haver uma parte digital, com os aprendizados dessa edição, “desde que ajude a estender o festival, não a substitui-lo”. “Estamos todos juntos”, concluiu, fazendo eco com as campanhas de conscientização que estavam em todas as esquinas do país.

Hoje, em Portugal, em meio a um forte aumento no número de casos relacionado às festas de fim de ano, novas e mais severas medidas restritivas de circulação entraram em vigor na última sexta-feira, 15 de janeiro, inclusive com a suspensão das atividades em espaços culturais como teatros e cinemas — as sessões de janeiro do Doclisboa serão repostas assim que possível, segundo os seus diretores, “em uma sala de cinema”. São 8.384 mortos no país em decorrência da pandemia. A população de 10 milhões de habitantes já está sendo vacinada como parte de um calendário que pretende proteger a todos. Cerca de 28 milhões de doses estão contratadas.[3]

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Notas

[1] fonte: dados do Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University, https://coronavirus.jhu.edu/map.html, acesso em 15 de janeiro de 2021.

[2] https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&mid=%2Fm%2F015fr&gl=BR&ceid=BR%3Apt-419&pinned=%2Fm%2F02j71%2C%2Fm%2F015fr%2C%2Fm%2F01hd58%2C%2Fm%2F05r4w. Acesso em 15 de janeiro de 2021.

[3] https://www.publico.pt/2021/01/08/sociedade/noticia/covid19-compra-vacinas-comissao-europeia-antecipar-calendario-vacinacao-portugal-1945627. Acesso em 15 de janeiro de 2021.

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