Samson Raphaelson: o nome por baixo do título

“SAMSON RAPHAELSON, AUTHOR OF 'THE JAZZ SINGER,' IS DEAD”. Dizer isto é passar ao lado de tudo o que há de mais magnífico na vida e na obra de Samson Raphaelson. Um ensaio de Daniela Rôla, em parceria com À Pala de Walsh.

por Daniela Rôla, em parceria com À Pala de Walsh

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O leitor reconhece o nome de Samson Raphaelson? Talvez haja neste nome algo de familiar, mas será difícil associá-lo a algum papel específico na história do cinema. Para complicar as coisas, muitas vezes o nome surge como Samuel Raphaelson, em lugar de Samson Raphaelson. Na edição por nós consultada do dicionário biográfico de David Thomson, nada nos é dito sobre esta figura. Encontrar outra biografia não é também tarefa fácil, já que alguns dos livros publicados por Raphaelson (e aqui deixamos uma pista) se encontram há muito esgotados, sendo vendidos por quantias avultadas. Consequentemente, não tivemos também acesso ao potencialmente sumarento prefácio que sobre ele escreveu Pauline Kael em introdução a Three Screen Comedies by Samson Raphaelson.

O que se pede do leitor é, portanto, o seguinte: que siga a fórmula Lubitsch-Raphaelson, juntando 2 + 2, ou seja, que reúna os pedaços da história que aqui deixamos. E o leitor escreverá a narrativa, acrescentando ingredientes gulosos a seu bel-prazer a esta história inevitavelmente incompleta. “Just give them two and two and let them add it up. They’re going to do it for you. And they’re going to have fun with it.” — a citação é atribuída a Lubitsch, por via de uma entrevista de Billy Wilder, ele próprio famoso pelo seu especial talento em adicionar elementos ou reformular as suas histórias de cada vez que as contava.

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Samson Raphaelson

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Samson Raphaelson cresceu em Nova Iorque, tendo mais tarde frequentado a Universidade do Illinois. Ele confessava-se um produto das ruas da grande cidade, repletas de pessoas e de palavras, ele próprio tentando encontrar o seu lugar como pessoa nesse mundo. Um lugar para um rapaz franzino e de óculos, numa terra de oportunidades infindáveis. O seu momento eureka teria ocorrido quando comprou uma máquina de escrever. Como que a ferramenta inventou o autor. Raphaelson sabia, a partir daí, que queria escrever. Depois das respostas negativas iniciais, tão comuns ao caminho de qualquer escritor, começa a escrever contos para publicação em revistas e também peças de teatro. E, podemos dizê-lo, será ele a dar palavra ao cinema, logo por via da sua primeira peça de teatro, The Jazz Singer, adaptada ao cinema em 1927. E assim aprendia o cinema a falar com palavras (ainda que adaptadas) de Samson Raphaelson.

Há algo de irónico, pois, no seu encontro com Ernst Lubitsch, o mestre dos silêncios e das elipses. A sua primeira colaboração seria em Broken Lullaby (O Homem Que Eu Matei, 1932), o singular drama de Lubitsch. Raphaelson afigurava-se como uma escolha adequada, já que era também no drama que se sentia mais à vontade, era o gênero que tinha já experimentado. A descoberta da comédia vem logo de seguida, com The Smiling Lieutenant (O Tenente Sedutor, 1931), que se estrearia antes de Broken Lullaby, apesar de ter sido escrito mais tarde. E, a partir daí, a comédia passou a ser a sua casa. Raphaelson afirma que o encontro com Lubitsch foi uma espécie de coup de foudre. Ao fim de dois segundos sentia já que o conhecia há muito tempo, uma familiaridade quase instantânea, e o trabalho em conjunto haveria de prolongar-se de 1930 a 1947, traduzindo-se em nove filmes. Raphaelson descreve o método de trabalho da dupla da seguinte forma: “O nosso trabalho começava sempre a partir de uma peça, sempre europeia e geralmente desconhecida na América. Lubitsch contava-me a história em traços largos. Eu nunca lia a peça, porque ele não queria que eu fosse influenciado pelo texto de outra pessoa. Ele escolhia uma peça pelas possibilidades que ela oferecia, um material de partida que nos deixava livres para nos aventurarmos, inventando o que ficou conhecido como o seu estilo, um estilo que eu amava e nunca deixei de amar — por ele, não por mim.”

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Samson Raphaelson e Ernst Lubitsch

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A escrita acontecia todos os dias da semana, os dois fechados numa divisão, seis horas por dia. A escrita fazia-se falando, num pingue-pongue (num diálogo) de ideias. “Ele escreveu alguns dos meus melhores diálogos, eu contribuí para alguns daqueles momentos silenciosos que ficariam conhecidos com o ‘toque Lubitsch’“. Curiosamente, Raphaelson muito raramente visitava o set, alheando-se por completo da feitura do filme naquilo que ultrapassasse a criação do argumento.

Raphaelson avançava timidamente com algumas propostas que considerava absurdas, mas que eram prontamente acolhidas por Lubitsch, que adorava todos esses bombons escandalosos, fantasiosos, que Raphaelson propunha a medo, por considerar inviáveis. Em resultado deste vai-e-vem, os diálogos finais tinham tanto de sofisticação quanto de marotice. O diálogo inicial de Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova, 1932), entre Gaston e Lily, é disso um exemplo brilhante, com a deliciosa troca de palavras e competição entre os dois. As técnicas que cada um emprega são semelhantes, passam por tornar o roubo tão delicioso que a vítima não nota ou não quer notar que ele ocorreu. Acreditamos que Lily não só subtraiu a Gaston o relógio, como ainda teve tempo de acertá-lo sem que ele desse por isso? Pouco importa. A nossa mente está noutro sítio, imaginando que indagações andariam as suas mãos a fazer pelos interiores do smoking de Gaston que o levassem a ignorar o desaparecimento do relógio. Cada um retira um prazer muito especial do ato de vangloriar-se dos seus feitos perante o outro e é esta troca entre iguais que se torna sexualmente estimulante — cada um estando tão na lama ou tão no paraíso quanto o outro. Gaston e Lily portam-se com a maior educação e cortesia à mesa, degustando a sua refeição com a dignidade própria de um jantar de estado, mas deixam-nos imaginar tudo o que se passou fora do alcance dos nossos olhos, por debaixo da mesa. “It must be the most marvelous supper. We may not eat it, but it must be marvelous.” É através de palavras que cada um vai despindo a máscara de outro.

A sedução é feita, antes de mais, pela palavra. Mas cabe a nós a tarefa de estarmos igualmente atentos ao que não é dito ou ao verdadeiro sentido do que é dito. Quando, em Design for Living (Uma Mulher para Dois, 1933), Gilda afirma “I’m going to be a mother of the arts. No sex.”, sabemos com toda a certeza que ela não está propriamente a pensar numa vida feita de três refeições por dia e 100% de virtude (para roubar a divisa de Max Plunkett).

O facto de a palavra ser instrumento de sedução é ilustrado de forma esplêndida na máquina de escrever que Gilda conservou, a máquina oleada que é sinónimo da paixão ainda acesa. Só mesmo um escritor se lembraria de sexualizar uma máquina de escrever:

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— You didn’t keep it oiled.

— I did for a while.

— The keys are rusty. The shift is broken.

— But it still rings! It still rings.

— Does it?

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É um filme-triângulo todo feito de diálogos prodigiosos (em que, como era habitual, poucas frases restam da peça original, ainda que, neste caso, o seu autor fosse Noël Coward). Se em Design for Living, como em Trouble in Paradise e One Hour with You (Uma Hora Contigo, 1932), a forma dominante é o triângulo, já em The Shop Around the Corner (A loja da Esquina, 1940) identificamos duas linhas paralelas, dois níveis de sedução, dois níveis de diálogo — a relação tempestuosa que se estabelece entre Klara e Kralik na loja do Sr. Matuschek e a relação de enamoramento sem freios que se vai desenvolvendo na caixa postal n.º 237. “Oh, my Dear Friend, my heart was trembling as I walked into the post office, and there you were, lying in Box 237. I took you out of your envelope and read you, read you right there” — nunca ninguém leu uma carta tão eroticamente.

As máscaras que Kralik e Klara ostentam no campo de batalha laboral têm tanto de verdadeiro quanto as máscaras de pessoas da “boa sociedade” ostentadas por Gaston e Lily em Trouble in Paradise. Mas a face que corresponde à realidade não está também no romance epistolar, já que o jogo de sedução que aí se joga assenta, em parte, na mentira ou, pelo menos, na dissimulação. Assim é gerada a cena hilariante em que Klara lê a Kralik as palavras que ele próprio escreveu, estabelecendo-se entre ele e nós, o público, uma cumplicidade envergonhada. Já relativamente à troca de palavras e de silêncios da cena final, em que Klara pede a Karlik que puxe as calças e lhe mostre as pernas, apenas podemos dizer que é “inadjetivável”.

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The Shop Around the Corner (A Loja da Esquina, 1940)

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O Lubitsch dos anos 40 é um outro Lubitsch e Raphaelson soube embarcar com ele nessa vida nova. A década nasce com The Shop Around the Corner, num ambiente intimista, menos sofisticado, com pessoas simples, os empregados de uma loja, a “família” Matuschek (as pessoas simples que muitas vezes espreitavam por baixo do manto de sofisticação — veja-se, por exemplo, Kay Francis a molhar sorrateiramente o pão no café em Trouble in Paradise, tal como Lily havia feito anteriormente). Estamos mais próximos daquilo que Lubitsch sempre afirmou pretender, uma aproximação à vivência da sociedade americana, mas não abandonamos o cenário europeu. Raphaelson, o americano da dupla, tinha a seu cargo alimentar o diálogo para a sofisticação europeia. Era a palavra que ocupava os grandes espaços palacianos de Lubitsch, esses espaços vazios que permitiam a criação do ambiente requintado, contribuindo para a elipse. É um cinema americano que nunca sai da Europa.

A “americanidade” está toda na palavra. Raphaelson mencionava o seu afã em sair para as ruas de Nova Iorque de ouvidos bem abertos, tentando absorver aquela cultura que não existia na sua casa. Da mesma forma, Billy Wilder, o discípulo de Lubitsch, era frequentador habitual da Schwab’s Pharmacy em Sunset Boulevard, o ponto nevrálgico de Hollywood, sempre pululando de estrelas de cinema e aspirantes a estrelas — “kind of a combination office, coffee klatch and waiting room” – de ouvido atento ao que aí era dito e como era dito. À semelhança do seu mestre, Wilder formaria uma dupla portentosa com o americano Charles Brackett, também aqui fundindo e confundindo as raízes europeia de um e americana de outro. É este o retrato que a revista Liberty far de Billy Wilder e Charles Brackett num artigo de 1945: “The distinguished Viennese-looking gentleman is Charles Brackett of Saratoga Springs, New York. The tough New Yorkerish cherub is Mr. Billy Wilder from Vienna, Austria.”

Aquele exercício de “agarrar” a língua das ruas é justamente reproduzido por Wilder e Brackett em Ball of Fire (Bola de Fogo, 1941), de Howard Hawks, em que o grupo de eruditos encarregado de elaborar uma nova enciclopédia se vê forçado a recrutar para o grupo uma corista, para que ela os guie nos meandros dessa língua estranha, o calão, que eles desconhecem por completo.

Se Billy Wilder afirmava que a dupla com Brackett fazia deles “o casal mais feliz de Hollywood”, a dupla Lubitsch-Rapaelson não será certamente menos feliz ou memorável. Apeteceria, pois, dizer: ninguém se atreva a separar aqueles que Hollywood juntou! A colaboração com Lubitsch que anuncia o fim (o último filme de ambos a ser terminado ainda em vida de Lubitsch) não poderia ter acontecido de forma mais melancólica e mais mágica. Em Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar, 1943), a câmara fixa-se numa porta fechada, quando a enfermeira da noite entrou no quarto de Van Cleve e começamos a escutar a valsa da Viúva Alegre. A porta permanece fechada (essa derradeira porta lubitschiana!), a câmara começa a afastar-se lentamente, descendo calmamente as escadas, mostrando um espaço — a casa — que se tornou triste e vazia pela vida que deixou de habitá-la.

Wilder prestou ao seu mestre e à filmografia saída das mãos da dupla Lubitsch-Raphaelson a mais bela das homenagens, dialogando com essa obra na linguagem que melhor conhecia – falando cinema. Esse tributo aconteceu em Love in the Afternoon (Ariane, 1957), a primeira colaboração de Billy Wilder com o seu segundo mítico companheiro de escrita, I.A.L. Diamond. Trata-se de uma história de amor passada em Paris (decadentismo das tardes de amor!), em que muito acontece atrás de portas fechadas e em que até Maurice Chevalier é (re)convocado para viver o “pesadelo” de ser o sogro de si próprio, com direito a trocas de palavras deste calibre:

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— What does he export and what does he import?

— Oh, he uh — he exports perfume and imports bananas. There’s a fortune in it. Do you realize that for one bottle of perfume you get twelve bananas?

— Twelve bananas for one bottle of — doesn’t sound like such a hot deal to me.

It’s a tiny bottle of perfume and very large bananas.

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E, uma vez que falávamos de duplas que misturam sensibilidades europeias e americanas, não podemos deixar de citar esta preciosa boutade:

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— They’re very odd people, you know. When they’re young, they have their teeth straightened, their tonsils taken out and gallons of vitamins pumped into them. Something happens to their insides! They become immunized, mechanized, air-conditioned and hydromatic. I’m not even sure whether he has a heart.

— What is he? A creature from outer space?

— No. He’s an American.

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Suspicion (Suspeita, 1941) de Alfred Hitchcock

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O trabalho de argumentista de Raphaelson não se limitou, como é óbvio, à sua colaboração com Lubitsch. Não podemos deixar de referir um outro notável argumento, o de Suspicion (Suspeita, 1941), de Alfred Hitchcock. Contrariando a frase de Gaston, “beginnings are always difficult”, o aspecto que se refere inevitavelmente quando se fala do argumento de Suspicion é o seu final problemático. Raphaelson pôde encontrar em Hitchcock uma característica reminiscente do seu anterior parceiro, já que o realizador britânico, tal como Lubitsch, era conhecido por rejeitar qualquer especial reverência pela obra original no momento de adaptá-la ao grande ecrã. Contrariando drasticamente o final do livro de Francis Iles, o final do filme é todo feito de uma certeza muito incerta, num jogo perigoso entre a ambiguidade de Cary Grant e a concupiscência de Joan Fontaine, também ela embriagada pela sua própria ousadia. Mesmo que tenha resultado de imposição do estúdio, não deixa de ser um final genial. E reconhecemos o nonsense e a elegância típicos de Raphaelson no jogo de sedução entre Lina e Johnnie:

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— Don’t do that.

— Why not?

— Because your ucipital mapilary is quite beautiful.

— What’s an ucipital mapilary?

— That.

— You don’t need to touch it.

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Enfim, diríamos que o “ucipital mapilary” estará para o cinema clássico americano como o esternocleidomastóideo, localizado na mesma zona corporal, está para o cinema português [esta zona do corpo da mulher encerra um certo fascínio cinemático, já que encontramos esta mesma fixação corporal em The English Patient (O Paciente Inglês, 1996, de Anthony Minghella)].

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Samson Raphaelson

Na entrevista concedida a Bill Moyers, em 1982, para a série Creativity with Bill Moyers, identificamos em Samson Raphaelson um certo lamento, a possibilidade de ter havido mais, porque ele sentia a ânsia de ser creditado apenas em seu nome, viver a glória sozinho. Uma mágoa carregada muitos anos, com origem em traumas antigos, dos tempos da juventude. Uma necessidade de afirmação em nome próprio. Afinal, escrever e ser reconhecido como escritor foi, para ele, o equivalente a tornar-se pessoa. Mas, simultaneamente, Raphaelson lamenta o tempo perdido a perseguir aquilo que achava que queria, não apreciando devidamente aquilo que tinha conquistado na sua parceria tão fecunda com Lubitsch.

O obituário publicado pelo New York Times em 17 de Julho de 1983 ostenta o seguinte título: “SAMSON RAPHAELSON, AUTHOR OF ‘THE JAZZ SINGER,’ IS DEAD”. Dizer isto é passar ao lado de tudo o que há de mais magnífico na vida e na obra de Samson Raphaelson..

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