por Miguel Forlin
A estreia de Democracia em Vertigem dividiu parte do público e crítica: de um lado, apareceram os entusiastas exagerados, afobados em dizer que o novo documentário da diretora Petra Costa é uma das produções mais importantes dos últimos anos, um olhar lúcido e estético sobre a loucura que tomou conta do país a partir do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff; do outro, tivemos os céticos do espectro oposto, rápidos em fechar os olhos para qualquer mérito que o filme pudesse vir a ter, certos de que fazer uma análise crítica seria desperdício de tempo.
Essas reações são rotineiras no cenário cultural brasileiro. Engana-se quem acha que o caso de Democracia em Vertigem é um evento raro, destinado a poucas obras que têm a coragem de abordar assuntos polêmicos, passionais, divisíveis. Na verdade, é somente mais um filme a extrapolar os limites da arte e se posicionar no campo ideológico, abrindo-se, assim, para que diferentes grupos o vejam pela lente de suas preferências políticas, sociais e econômicas.
Claramente, a natureza polissêmica da arte permite apropriações. Uma vez que o filme saiu das mãos do seu realizador, inaugura-se uma série de interpretações possíveis, até as enviesadas, empregadas para fins escusos e inteiramente distintos da intenção original do artista. Há, nesse tipo de repercussão, sintomas de um ambiente cultural doentio, é verdade. No entanto, a situação é muito mais preocupante quando isso é detectado entre críticos, pior ainda, entre os próprios diretores, que não se envergonham de tornar públicos os seus interesses políticos mesquinhos e manchar as suas criações com a panfletagem mais rasteira.
Democracia em Vertigem, assim como tantos outros filmes brasileiros dos últimos anos, se posiciona ativamente a favor de uma visão política específica, sem espaço para contrapontos ou perspectivas distintas. Isso faz com que o problema da ideologização indevida, tão presente no nosso país, se encontre na própria base dos esforços artísticos. A maneira como uma parcela do público e da crítica reage não é uma manifestação destacada, à parte do registro, mas sim a sua consequência natural. Não há como reagir de outro jeito senão politicamente.
Em Hipótese-Cinema, Alain Bergala escreveu: “Um cineasta digno desse nome não é aquele que faz seu filme principalmente para dizer o que ele tem a dizer sobre tal assunto, mesmo se o assunto é crucial. O verdadeiro cineasta é ‘trabalhado’ por sua questão – que seu filme, por sua vez, trabalha. É alguém para quem filmar não é buscar a tradução em imagens de ideias das quais ele já está seguro, mas alguém que busca e pensa no ato mesmo de fazer o filme. Os cineastas que já têm as respostas – e para os quais o filme não tem que produzir, mas simplesmente transmitir uma mensagem já pronta – instrumentalizam o cinema. A arte que se contenta com enviar mensagens não é arte, mas um veículo indigno da arte; isso vale também para o cinema”.
Já o diretor Paul Vecchiali costuma definir o filme político como aquele em que a visão do diretor está presente, mas sutilmente, no meio da apresentação de duas ideias contrárias. Pois bem, quantos dos filmes brasileiros lançados recentemente deixam que as suas questões “trabalhem” os cineastas ou contrapõem as próprias perspectivas com perspectivas opostas? Atualmente, uma parte significativa do cinema nacional foi instrumentalizada, tornando-se um meio do qual cineastas indignos do nome se apropriam para enviar mensagens formuladas de acordo com as pautas do dia e de determinados grupos ideológicos. A questão formal, por sua vez, que, no Brasil, sempre chegou atrasada, décadas após ter sido discutida em outros centros, fica completamente esquecida, deixada de lado, como se não importasse. Na mentalidade que enxerga valor apenas no conteúdo transmitido, a forma é somente um veículo desprovido de maiores significados.
Não é exagero algum ver nessa postura o mesmo sentimento de intransigência que transformou a mera existência de filmes como Vazante, O Jardim das Aflições e Real – O Plano Por Trás da História em polêmica. E o fato de que tanto cineastas quanto críticos se reuniram ? em alguns casos, assinaram até manifestos ? para expor o seu desprezo e descontentamento é o indicativo definitivo de um ambiente extremamente politizado e hostil. Não estamos diante de um problema novo: essa confusão entre cinema e política existe há um bom tempo, e, ao longo dos anos, alguns cineastas e críticos tentaram fazer algo a respeito, o que acabou criando momentos saudáveis de produção artística, não curiosamente, os melhores de nossa história.
Porém, nunca enfrentamos o problema na intensidade com que o enfrentamos atualmente. Não à toa, o cinema brasileiro passa por um dos seus momentos mais pobres, independentemente dos textos críticos que veem, a cada lançamento, o surgimento de uma nova obra-prima. Criou-se uma bolha em que uma elite intelectual autodeclarada fala somente para ela mesma, falseando a realidade a fim de corroborar a sua visão de mundo e nela acreditando quando a vê projetada numa tela. Se vier com o carimbo de um festival aclamado, melhor ainda.
Do outro lado do problema, uma das consequências desse domínio cultural massacrante são as soluções que já nascem viciadas. No Brasil, embora mais tolerante do que aquele que está no controle, ainda dá os primeiros passos um cinema adversário, um contendor disposto a entrar no ringue. Mas essa é uma briga que se dá no território político, onde se combate ideologia com ideologia, conteúdo com conteúdo, esquerda com direita. Pode até sair um vencedor da luta. Todavia, os derrotados serão sempre o cinema, a forma, os temas.
Lamentavelmente, o Brasil delimita o seu horizonte de preocupações e não percebe que, ao fazer isso, se fecha cada vez mais nas suas inquietações particulares e regionais, como um animal acuado em seu canto, ignorante do mundo ao redor. As dimensões metafísica, psicológica e emocional do ser humano estão condicionadas ao papel social que ele desempenha, mudando somente a subjetividade com que esse papel é visto, dependendo do grupo que está no poder ou que tem o controle cultural. Aqui se respeita pouco o cinema e se dá importância demais à política, desequilíbrio típico de um país enfermo.
Por fim, na crítica que escreveu sobre Corrida Sem Fim, de Monte Hellman, o já mencionado Paul Vecchiali termina fazendo a seguinte afirmação: “Filme sem propaganda, de pura informação, Corrida Sem Fim me parece o mais perfeito exemplo daquilo que deveria ser o filme político”.
Qual foi a última vez que um crítico independente pôde dizer o mesmo de algum filme político brasileiro?