por Adriano Moraes Migliavacca
No artigo O rosto de Jano das luzes, publicado no Estado da Arte no mês passado, tivemos contato com autores de origem africana que deixaram obras que se somaram ao corpus literário-filosófico da civilização ocidental. Se tais obras nada tinham de propriamente africano, a seus autores não faltava identificação com seus povos de origem, os quais em geral defendiam na teoria, na arte ou na ação. A discussão nesse artigo – creio – deixou bem evidente o conhecimento, por parte da elite intelectual europeia do século das luzes, da plena capacidade dos africanos de produções intelectuais de altíssima sofisticação, capacidade essa que passou a ser negada, por meio da fantasmagoria racista, exatamente pelo perigo que representaria uma classe intelectual negra no Novo Mundo (as leis que proibiam negros de aprenderem a ler e escrever só confirmam isso). O que não ficou evidente é se as sociedades tradicionais africanas teriam produzido conhecimento filosófico. No Brasil, é bastante comum a ideia de que os negros são tão capazes quanto os brancos de grandes feitos intelectuais; simplesmente não as produziram em suas sociedades autóctones, tendo o Ocidente permitido a existência de um Cruz e Souza ou Machado de Assis. No entanto, parece bastante estranha ideia de um povo que, durante sua longa história, não produziu nenhum conhecimento válido.
Antes de qualquer observação, deve-se sempre relembrar que a homogeneidade que frequentemente se atribui à África é realmente ilusória. A ideia de que a África é um país já se tornou uma piada comum. No entanto, se nos damos ao trabalho de lembrar a diversidade aduaneira do continente, nem sempre o fazemos com relação à diversidade cultural. Há uma ideia geral de “cultura africana” como uma elusiva e folclórica “cultural tribal”. Em primeiro lugar, essas culturas – que, em sua maioria, nada têm de tribal, sendo o termo “cultura tradicional” mais acertado – são bastante diversificadas entre si. Em segundo, além da variedade dessas culturas, há na África, há muito tempo, a presença das matrizes culturais do Islã e do Cristianismo.
Antes da chegada de colonizadores europeus, o Cristianismo já vicejava na Etiópia, com belas catedrais, um sistema de escrita próprio e uma literatura poética e filosófica vigorosa. No âmbito da filosofia, surge em primeiro lugar a figura de Zera Yacob, cujo nome se traduziria como “Semente de Jacó”. Homem de origem humilde, estudou em escolas tradicionais etíopes, concentrando-se sobre os Salmos de Davi – textos que constituiriam o húmus de sua reflexão filosófica. Devido a uma divergência religiosa com o rei Susenyos, Zera precisou abandonar Axum, sua cidade natal. Passou dois anos vivendo isolado em uma caverna, onde aproveitava o silêncio para meditar diariamente sobre os Salmos e os antagonismos humanos. O resultado foi uma autobiografia em que, a partir de vivências pessoais, deduziu princípios filosóficos sobre a existência de Deus, a justiça e a injustiça, a imortalidade da alma, a constituição divina da natureza, entre outros temas teológicos. Ao retornar para a vida em sociedade, Yacob teve um discípulo na figura de Walda Heywat (nome que significa “filho da vida”). Heywat desenvolveu muitos dos princípios do mestre, não tendo a mesma originalidade, mas fazendo uma filosofia de cariz mais pessoal. No todo, as filosofias de Yacob e Heywat são consideradas metafísicas e racionalistas.
O mundo islâmico africano também gerou contribuições importantes. No antigo império do Mali, na cidade de Timbuktu, houve um célebre centro de ensino onde as disciplinas corânicas eram estudadas em profundidade. Segundo o lógico e islamólogo senegalês Souleymane Bachir Diagne, a cena intelectual de Timbuktu por volta do século XVI poderia ser facilmente comparada à do Marrocos da mesma época. Sua figura mais proeminente foi Ahmad Bâbâ, sábio que, ao longo de sua vida, derivou entre o Marrocos e Mali, já naquela época unindo dois polos da África islâmica. Nesse ambiente, onde os traços da oralidade levavam às vezes a uma predominância do verso sobre a prosa – os principais tratados sobre lógica aristotélica sendo escritos em forma de verso –, destacou-se em especial o tawhîd, âmbito da teologia (então, chamada kalâm) que tratava da unicidade de Deus.
Campo mais recente – e, sem dúvida, mais polêmico – é aquilo que se convencionou chamar, não sem boa dose de crítica, “etnofilosofia”. Tal campo teve seu primeiro exemplo notável na obra La Philosophie Bantoue, de 1945, do missionário belga Placide Tempels. Baseado em trabalho etnográfico conduzido em meio aos balubás, do Congo, Tempels deduziu o que cria ser uma filosofia geral que se poderia atribuir aos povos bantos como um todo, em que a noção de ser era substituída pela noção de força, e a natureza estática da filosofia europeia cedia lugar a uma visão dinâmica da vida, onde uma série de forças entram em relações produtivas e destrutivas, regenerativas e degenerativas. Talvez o efeito mais importante que teve a empresa do Padre Tempels foi a influência que exerceu sobre outro padre, em Ruanda – esse um africano nativo: Alexis Kagame, cuja tese de doutorado em filosofia trazia o nome de La Philosophie Bantu-Rwandaise de l’Être, de 1956. Reduzindo seu escopo para a filosofia banta tal como encontrada em Ruanda, o padre Kagame baseou seus estudos na solidez das estruturas linguísticas da língua kinyarwanda. Segundo Kagame, as palavras em kinyarwanda podem ser encaixadas em quatro categorias: muntu, kintu, hantu, kuntu, representando, respectivamente: o ser humano e coisas capazes de se moverem por si próprias; as coisas que não têm movimento próprio; lugar e tempo; e modalidade. O radical ntu, mais do que energia substantiva, designa uma essência que une todas essas categorias, não tendo nunca independência gramatical dos prefixos que o fazem se constituir nessas diferentes forças. Curiosamente, outros exemplos do que poderíamos chamar de “filosofia africana tradicional” nos surgem não de tratados filosóficos, mas de obras de antropologia, crítica literária e crítica de arte, entre outros; além, é claro, de importantes obras de teologia como as de John Mbiti e Bolaji Idowu.
Tais empreendimentos nem sempre são bem-vistos. O filósofo marxista Paulin Hountondji, por exemplo, critica a “etnofilosofia” e tudo que se derivou dela como uma pura forma de exotismo e de subserviência às classes dominantes europeias e crê que a filosofia africana faria melhor em se afastar do legado duvidoso dos ancestrais e se aproximar daquilo a que chama “filosofia universal”. Por outro lado, se tais ideias talvez pisem em território em falso quando vertidas para o idioma da filosofia formal, parecem surgir em todo seu esplendor intelectual em obras literárias como Things Fall Apart, de Chinua Achebe, Death and the King’s Horseman, de Wole Soyiknka e os poemas de Mazisi Kunene. Isso sem falar em quando tais ideias se mostram triunfantes em textos produzidos nas Américas como os da escritora mineira Conceição Evaristo, nos quais vemos as noções de tempo cíclico, reencarnação, infusão da matéria pelo espírito e memória ancestral em uma prosa sutil, vigorosa e elegante.
A envergadura filosófica das culturas autóctones da África é algo a ser pesquisado. Acima de tudo, me parece importante deixar de lado qualquer tipo de exclusivismo que queira eliminar qualquer uma das vertentes. Nos anos de 1980, o cientista político queniano Ali Mazrui, ele mesmo muçulmano, lançou a série documental The Africans: A Triple Heritage, na qual avaliava o que via como as três principais vertentes das produções culturais africanas – islâmica, ocidental (incluindo nela, o Cristianismo) e africana tradicional. Levando em conta o grau de intercâmbio que há entre elas, não se pode desprezar nenhuma, para que se possa ter uma visão menos parcial do cenário filosófico africano.