por Juliana de Albuquerque
No dia nove de novembro de 2016, despertamos com Donald Trump eleito presidente dos Estados Unidos. Não bastasse a gravidade dessa notícia, as reações individuais ao resultado das eleições norte-americanas deixaram muito a desejar. Espalhados pelos quatro cantos do mundo, os meus amigos entraram em histeria coletiva como se aquele resultado jamais pudesse ter sido previsto. Como se, às vésperas de 2017, vivêssemos o Apocalipse.
Diante de tanta afetação não me restou outra alternativa senão recusar o desespero como opção. Além de histéricas e despropositadas, muitas das reações foram desrespeitosas em relação ao processo democrático, às liberdades individuais e ao direito de manifestação.
Ao testemunhar tanto as reações à vitória de Trump como as reações ao Brexit, eu percebi que há algo de fundamentalmente equivocado conosco e que o argumento liberal para preservação da democracia corre sérios riscos de se tornar excludente e autoritário.
O que será que todas essas reações apaixonadas dizem sobre nós e sobre a maneira de nos relacionarmos com o mundo? Foi pensando nessa questão que eu resolvi voltar a minha atenção aos autores que me informam, ao exemplo de Freud, Nietzsche e Hannah Arendt, sempre na oposição ao desespero.
Assim, neste momento de renovação e incerteza da política internacional, em que cada vez mais nos deparamos com escolhas políticas guiadas pelo ressentimento, qual deve ser a reação daqueles que se prestam a fazer oposição? Será que a solução para o nosso problema é essencialmente política e econômica ou será que ela é, também, emocional?
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud descreve como lançamos mão de medidas paliativas para conseguir suportar as pressões da vida. Dentre essas medidas, ele cita, por exemplo, a apreciação e a criação artística, o consumo de substâncias tóxicas e os prazeres substitutivos.
Embora Freud acredite que cada uma dessas medidas seja importante para a manutenção da nossa sobrevivência, ele também nos adverte que o preço da conservação daquilo em que acreditamos dever ser, revela, igualmente, tanto o nosso desamparo diante do mundo quanto a nossa ignorância sobre nós mesmos.
Indefesos diante da vida, sempre lutamos para que, apesar das mudanças, as coisas permaneçam como as conhecemos ou as concebemos. Afinal, pergunta-nos Freud: “Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez?”[1]
É claro que não. No entanto, essa estratégia revela-se problemática porque, invariavelmente, o nosso primeiro encontro com a felicidade sempre se traduz numa primeira experiência de dependência. Quando crianças, a satisfação que obtemos ao receber os cuidados dos nossos pais coloca-nos numa situação bastante precária diante do mundo. Percebemos que, sem a intervenção dos mais velhos, não temos como satisfazer os nossos próprios desejos.
Aprendemos que não há como obter qualquer prazer sem antes agradar aos outros e, deste aprendizado, surgem sentimentos de lealdade que, mais tarde, em vez de nos fortalecer e validar as nossas escolhas, irão sabotar a nossa busca por independência, autodomínio e autoconhecimento.
Assim, o que Freud soube identificar, e o fez melhor do que ninguém, é que a nossa luta por conservação muitas vezes resulta num movimento de fuga de nós mesmos. Isto quer dizer que, embora o homem tenha sido capaz de grandes avanços, seja no campo das artes e das humanidades, seja no campo das ciências, ele ainda não se sente confortável no papel de senhor do próprio destino.
O desconforto do homem na Civilização não é outra coisa senão a expressão do medo que ele sente de si próprio. Nós sentimos medo daquilo que nós não conhecemos ou daquilo que não podemos controlar.
De fato, o homem parece ter medo de si próprio porque, como nos explica Nietzsche, “Qualquer que seja o grau que alguém possa atingir no conhecimento de si, nada pode ser mais incompleto que a imagem que se faz dos instintos que constituem seu ser.”[2]
Assim como Freud, Nietzsche pertence a uma tradição de pensamento que busca a sua inspiração na literatura clássica alemã e no exemplo do indivíduo autônomo deixado por Goethe. Ambos acreditam que as nossas emoções condicionam a razão. Consequentemente, tanto para Nietzsche como para Freud, a conquista da nossa autonomia individual inicia-se com a análise e a educação das emoções.
As reações à política da nossa época são exemplos de como falhamos em educar as nossas próprias emoções e, consequentemente, do medo que sentimos de assumir o risco pelo exercício da nossa própria liberdade. Para o homem incapaz de autodomínio, a liberdade torna-se um pesadelo. Inseguro de si e descrente da sua capacidade de enfrentar os próprios problemas, esse homem acaba recorrendo a lealdades político-ideológicas que refletem a sua posição de desamparo diante da vida: menoridade.
Independente do nosso posicionamento, quer estejam as nossas opiniões à direita ou a esquerda do espectro ideológico, todas as nossas lealdades políticas precisam ser revistas em relação às nossas motivações pessoais. Alguém que, por exemplo, se sente indefeso e incapaz de prover a sua própria segurança é, também, alguém que sente raiva e, consequentemente, o seu posicionamento político será guiado pela violência e pelo ressentimento.
O racismo e o isolacionismo dos discursos de direita, a radicalização do politicamente correto, os discursos liberais sobre as minorias e a ênfase de um conceito vazio de empoderamento não são outra coisa senão expressões de descontrole.
Estivéssemos mais atentos a nós mesmos, certamente não teríamos nos surpreendido com o Brexit, ou com a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. A cegueira com a qual nos posicionamos politicamente não representa outra coisa senão uma atitude de impotência e ressentimento diante de uma vida que desconhecemos e somos incapazes de nos assenhorear. O racismo e o isolacionismo dos discursos de direita, a radicalização do politicamente correto, os discursos liberais sobre as minorias e a ênfase de um conceito vazio de empoderamento não são outra coisa senão expressões de descontrole.
Ora, a violência é típica da hegemonia do descontrole e, conforme escreve Hannah Arendt, embora poder e violência apareçam sempre em conjunto, permanecem fenômenos distintos: “a violência sempre pode destruir o poder; o cano de uma arma…” e, no caso em tela, o discurso do ressentimento dos homens e mulheres que, independente das suas conquistas individuais, ainda se sentem desassistidos ou preteridos: “… emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá disto, é o poder.”[3]
Embora não tenhamos como fazer uma previsão de quais serão as exatas consequências históricas de Trump e do Brexit, podemos dizer que, olhando em retrospecto, o nosso despreparo para enfrentar os eventos e os progressos científicos e culturais das últimas décadas coloca-nos na infeliz situação em que nos encontramos.
Antes disso irromper, já em 1998, Richard Rorty advertiu os seus leitores de que algo estava prestes a acontecer. Para ele, foi possível perceber a insatisfação das populações dos menores centros urbanos distantes dos grandes polos culturais e científicos dos Estados Unidos.
Segundo Rorty, essa gente mantinha a opinião de que o sistema havia falhado; de que advogados, burocratas e acadêmicos se haviam atribuído o direito de ditar as regras do jogo e, por isso, ele não ficaria surpreso se todo ressentimento dos americanos de pouca educação finalmente encontrasse expressão.[4]
Hoje essa previsão tornou-se realidade. Cabe-nos, agora, depois do choque inicial da notícia, recobrar a sobriedade e o autocontrole. Reexaminar, a partir das nossas motivações pessoais, os nossos posicionamentos ideológicos e assumir responsabilidade pelas nossas próprias carências. Caso seja possível uma oposição ao desespero, devemos finalmente admitir que não cabe ao discurso político arvorar-se de resolver o desajuste das nossas emoções. Esta resolução é uma tarefa árdua, dificílima, porém, exclusivamente nossa: absorver-se para não se ser absorvido.
[1] Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completes de Sigmund Freud. Vol. 21, p. 89.
[2] Nietzsche, Friedrich. Aurora, Livro II, Seção 119.
[3] Arendt, Hannah. Sobre a Violência, p.70.
[4] Rorty, Richard. “Achieving our Country”. In The New Yorker, “Obama Reckons with a Trump Presidency,” https://goo.gl/y86WMC.
Juliana de Albuquerque é doutoranda em literatura e filosofia alemã pela University College Cork, Irlanda.