Andrea Faggion abre nossa seção de Filosofia avaliando a polêmica reforma do Ensino Médio.
por Andrea Faggion
As mudanças previstas na medida provisória relativa à reforma do ensino médio atualizaram o debate sobre a razoabilidade da inclusão obrigatória da filosofia, dentre outras disciplinas, no currículo das escolas. Dado o inegável fracasso do nosso sistema educacional em universalizar a alfabetização funcional e o domínio de operações matemáticas básicas, muitas vezes, argumenta-se que o ensino médio deveria ser reduzido à busca desse objetivo mínimo, com a eliminação da obrigatoriedade de disciplinas que avancem para além desse mínimo. Porém, por mais sentido que faça buscarmos concentrar recursos na eliminação de deficiências básicas, que impedem a obtenção das mais variadas formas de conhecimento, também é bom mantermos em mente que o ensino médio não deve ser um mero prolongamento do ensino fundamental com outro nome.
Assim, convém não confundirmos os problemas do ensino fundamental com os problemas do ensino médio, mesmo que venhamos a concluir que uma das soluções para os problemas do ensino fundamental seria o encurtamento do ensino médio em seu benefício. No mais, também é perfeitamente possível nos opormos à proliferação enciclopédica de disciplinas no ensino médio sem advogarmos a supressão de grandes áreas como arte e filosofia. Por sinal, a reflexão sobre a razoabilidade dessa supressão, independentemente de estar sendo efetivamente proposta pelo governo ou não, é que me interessa fundamentalmente aqui, em especial, no tocante à filosofia.
Em primeiro lugar, tenhamos em vista que o debate sobre a razoabilidade da imposição, por parte do governo federal, de quaisquer disciplinas e conteúdos curriculares às escolas de todo o país deve ser cuidadosamente distinto do debate sobre a razoabilidade de uma formação escolar que não contemple essa ou aquela área. É possível que julguemos sempre criticável que uma escola elimine determinada área de conhecimento de seu currículo obrigatório sem que acreditemos que a questão seja uma matéria de Estado, ainda mais, na esfera federal.
Naturalmente, quando alguém com formação específica na área de filosofia se põe a refletir sobre a razoabilidade de uma formação escolar sem filosofia, sempre existe o risco de uma acusação de corporativismo em caso de resposta negativa. Mas esse é um argumento ad hominem que não deve nos desviar da devida discussão do mérito da questão. Para entrarmos nesse mérito, duas considerações preliminares se fazem relevantes. Primeiro, a filosofia não é uma ciência dentre outras. Podemos pensar em artes, ciências e filosofia como três grandes formas distintas (tanto entre si quanto da forma natural) de recebermos experiências, darmos sentido a elas e nos expressarmos. Em segundo lugar, é preciso entender que a peculiaridade da filosofia é tal que torna difícil sua própria definição. No entanto, parece certo que ela se caracteriza sempre como um discurso de segunda ordem ou um meta-discurso, quer dizer, a filosofia é um discurso sobre outras formas de discursos e práticas.
Exemplificando, se alguém afirma que é errado roubar, a reflexão filosófica será iniciada por perguntas como “por que fazer ou deixar de fazer algo seria errado?”; “o que significa ‘errado’ com respeito a uma ação ou omissão?”; “o que entendemos por ‘roubar’?”; “por que não podemos todos tomar os objetos que por bem entendermos?”; “se há leis que proíbem o roubo, isso significa que roubar é errado?”; “por que seria errado violarmos uma lei e arriscarmos o recebimento de uma sanção?”; etc. Se perseguimos as respostas para todas essas perguntas, logo nos deparamos com certas perplexidades, de tal forma que afirmações que nos pareciam tão triviais podem se revelar como dilemas teóricos até insolúveis.
Ora, nota-se aqui que a filosofia é uma forma de pensar que tem justamente a peculiaridade de nos levar a um distanciamento da prática para a reflexão, e uma reflexão que nunca tem propriamente um fim. Aprender a se guiar pelos meandros dessas reflexões é indispensável? Indispensável para quê?
Bem, talvez, uma questão ainda anterior diga respeito à possibilidade de que um jovem possa aprender a levantar tais questões e refletir com rigor sobre elas. Desde os gregos, afinal, problematiza-se a capacidade do jovem de filosofar antes de amadurecer e mesmo adquirir conhecimentos científicos. Contudo, há que se ter em vista que o ensino médio, de qualquer maneira, não formaria filósofos, como não forma matemáticos ou linguistas. Se bem-sucedido, ele apenas colocaria o jovem em contato com todo um universo de indagações e problematizações das respostas. Mas a formação escolar de qualquer um precisa incluir o contato com esse universo, ou uma boa escola pode esperar que, algum dia, o aluno sinta-se inclinado a tentar descobrir do que trata a tal filosofia?
Parece indiscutível que um adulto possa ser perfeitamente funcional sem ter tido qualquer contato com os grandes mestres que levantaram questões e construíram argumentos filosóficos. Ademais, também pode-se dizer sem muito medo de errar que uma ampla formação filosófica não necessita a formação de um bom caráter. Para que então a filosofia seria indispensável? Eu arriscaria responder “para nada”.
Filosofia, como também se costuma pensar desde os gregos, é o tipo de atividade que, se tem valor, tem valor em si. Mas um valor em si também não é, necessariamente, um valor moral ou um valor que cada um de nós deva perseguir (e na mesma proporção) para ter valor como pessoa. Assim, é bem possível, e não é especialmente problemático, que nosso jovem deixe seus estudos de ensino médio com filosofia sem qualquer disposição para desenvolver sua curiosidade filosófica.
Mas, se dizemos que a filosofia tem valor em si, em vez de negar-lhe qualquer valor, estamos também dizendo que é inteligível afirmarmos que alguém capaz de levantar questões filosóficas e refletir sobre elas de forma clara e rigorosa está em melhor situação do que alguém desprovido dessas capacidades. Não é inteligível, afinal, valorizarmos tais capacidades para além de seus efeitos práticos e materiais? Se é, ou seja, se a filosofia tem, de fato, valor intrínseco, uma boa escola pode permitir que um jovem amadureça intelectualmente sem travar qualquer contato com ela?
O fato do jovem estar em uma escola ou ter qualquer espécie de tutor, ao que tudo indica, implicaria que cabe ao tutor ou à escola selecionar previamente ao menos o mínimo que deve ser incluído em sua formação. Assim, se admitirmos que uma escola em nível médio deve selecionar conteúdos, competências e habilidades a serem providos a alunos já alfabetizados e capazes de realizar operações matemáticas, essa escola não deveria colocar esse aluno em contato com formas peculiares de conhecimento dotadas de valor em si? Quer me parecer que a resposta seja “sim”, a menos que entendamos todo o ensino médio, necessariamente, como um ensino técnico-profissionalizante.