A fim de proclamardes as virtudes

Na sociedade do espetáculo o exibicionismo moral inevitavelmente transforma a virtude em 'virtuose'.

por Fabrício Tavares de Moraes

Julian Huxley dizia que “os melhores homens das melhores épocas são simplesmente aqueles que cometem os menores disparates e os menores pecados”. Ironicamente, porém, estamos inclinados a afirmar que as piores épocas, se as há, são aquelas em que os homens ostentam seus maiores arroubos de sabedoria e suas grandes virtudes. E se, de fato, nos encontramos na famigerada “sociedade do espetáculo”, o exibicionismo moral inevitavelmente transforma a virtude em virtuose.

O virtue signalling, termo criado há alguns anos por James Bartholomew, difundiu-se de tal modo no debate público que de um modo que somente as contingências e abusos humanos são capazes, tornou-se, paradoxalmente, ele mesmo parte do arsenal do novo farisaísmo. E, falando nisso, há mesmo repreensões contra o uso da palavra “farisaísmo”, que guarda tão pouca relação com seu referencial original quanto a designação não menos moderna de “filisteu”, ou incircunciso.

Contudo, deparamo-nos com dificuldade até mesmo com a tradução da expressão virtue signalling: “ostentação” de virtude? “exibição” de virtude? Ao fim, descobrimos, todavia, que se trata apenas da mais recente variação de um vírus de antiga cepa – o moralismo, a redução do espírito à letra da lei, a mentalidade do inspetor Javert em Os Miseráveis, de Victor Hugo, que classificando os homens entre opositores ou defensores da sociedade, considerava o sistema legislativo como a única fonte da justiça e legitimidade.

O apego de um Javert à lei, por vezes em detrimento da própria justiça, tem como sua principal desvantagem a rejeição ingênua de todo drama moral, que é a própria base dos mitos e das grandes religiões que fundamentaram os sistemas jurídicos. De fato, se os princípios e ditames morais fossem fácil e diretamente aplicáveis às contingências humanas, certamente estaríamos livres de quaisquer dilemas morais.

Nesse caso, portanto, o que resta não é mais um sistema moral, um conjunto de preceitos e sanções. Pelo contrário, conforme diria Bernanos, temos aí a transformação de uma doutrina em mero instrumento de constrangimento das consciências.

Obviamente nem mesmo as obras de representação escapam dessas sentenças irrecorríveis. Tendo sido acusado de preconceito racial por causa de seu filme O Nascimento de uma nação (1915), D.W. Griffith lançou, no ano seguinte, a película Intolerância, no qual demonstrava a luta entre intransigência e caridade que se passa em cada alma humana.

Numa das cenas, um fariseu realiza sua prece em praça pública e a plenos pulmões (pelo que se deduz das legendas deste filme mudo), atraindo a atenção para si, enquanto uma jovem camponesa, tendo que interromper seus trabalhos por causa do costume religioso da época, tem que suportar o peso da cesta em seus braços. O filme jamais recebeu o devido reconhecimento, sendo desde então alvo de olhares blasés e achaques moralistas.

Ora, é única e exclusivamente no recinto da consciência que se dá a vivência efetiva da moral. No que toca aos pensamentos e intenções que jamais se exteriorizam, há somente duas instâncias que têm legitimidade e capacidade para julgamento: o autoexame, a dolorosa sondagem que os filósofos (Sócrates, em especial) e profetas de todas as grandes religiões ensinaram; ou o juízo final, que exige não somente a fé específica, mas também a paciência pelo advento dos tempos designados.

(Fonte: Ethics Alarms)

De todo modo, em qualquer uma das alternativas acima, a mente está resguardada da intrusão dos mecanismos e aparatos de um julgamento moral de outro homem, exceto no caso dos fanáticos e dos totalitarismos, os quais buscam avidamente o nivelamento e fusão da vida interior e vida exterior, a fim de possibilitá-los a exercer o domínio sobre o indivíduo em sua inteireza, numa espécie de arremedo de juízo final.

De modo análogo, na tentativa de sondar o coração e os pensamentos mas julgando-os segundo as aparências, os moralistas midiáticos se tornam uma espécie de donatistas, os hereges que importunaram Agostinho ao negarem o perdão e a salvação da alma daqueles que anteriormente se desviaram da fé. Isto é, na volúpia de executar, aqui e agora, o juízo final, os nossos novos donatistas fecham a porta do arrependimento, colocando um ponto final na história.

Mas não somente o futuro é decidido pelo presente, como todo o passado dos indivíduos é julgado a partir de um “pecado original” do presente. Daí talvez o virtue signalling seja, nessa nova religião, o atalho para santidade, “a redescoberta da simonia nesta era da informação” (Nassim Taleb).

Curiosamente, esses juízes, à parte de suas sentenças, nada têm de severos ou intransigentes. Afinal, num fenômeno tipicamente moderno, a direção moral e espiritual dos homens pertence não mais a uma casta sacerdotal-intelectual ou aristocrata-militar, mas à classe que Edgar Morin chamava de “olimpianos”, os grandes nomes da indústria do entretenimento.

Com esse deslocamento do eixo ou prumo moral para a opinião das celebridades – pessoas que, numa estranha tautologia, se destacam pelo simples fato de serem objetos de exposição excessiva –, temos não mais, nas palavras de Roberto de Campos, uma transa adúltera entre os filhos de Marx e Coca-Cola, mas o casamento perfeito do virtue signalling com a histeria por justiça social. Dito de outro modo: no caso dos astros e estrelas, quanto mais moralista e feroz a condenação do comportamento alheio, não poupando nem mesmo as miudezas das fraquezas humanas, maior é sua contribuição para a consecução da justiça social.

Já no grosso da humanidade, a ênfase nos próprios atos de caridade ou filantropia, sendo ampliada ainda mais pelas redes sociais, coexiste, de modo um tanto cômico, com uma crescente rejeição ou ares de superioridade de quaisquer tradições morais.

Em contrapartida, é evidente que as condenações das atitudes moralistas de outrem podem se tornar, elas mesmas, moralistas e sinais de ostentação da virtude. Neste ponto, surgem inúmeras dificuldades, que exigem mais do que talvez estejamos dispostos a admitir, pois como o conde de Maistre (Joseph-Marie de Maistre) dizia, talvez com ressaibos de soberba, “não sei o que pode ser o coração de um vilão – só conheço o de um virtuoso e que é medonho”.

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