A gravata do filósofo: Ortega y Gasset, a metáfora e a tradição intelectual humanista

Para José Ortega y Gasset, a metáfora confronta e testa, em cada circunstância concreta, os limites da linguagem humana. Eduardo César Maia estreia sua coluna no Estado da Arte examinando a riqueza da filosofia do autor espanhol.

por Eduardo Cesar Maia

“É o fato sempre irracional da arte, é o absoluto empirismo da poesia. Cada metáfora é o descobrimento de uma lei do universo”
(José Ortega y Gasset, La deshumanización del arte)

“Isso que o senhor Prieto considera ‘uma vistosa gravata’ é, na realidade, minha coluna vertebral que transparece”. Tal resposta que, para além de engenhosa, esconde uma significação muito mais profunda do que aparenta à primeira vista foi dada pelo pensador espanhol José Ortega y Gasset a um interlocutor que insistia no argumento de que o estilo do autor de La rebelión de las masas não era compatível com a “verdadeira filosofia”, porque demasiadamente floreado e metafórico.

Diversos comentadores já versaram sobre a centralidade que a literatura assume no pensamento e no estilo ensaístico de José Ortega y Gasset. Nem sempre esse predicado, no entanto, foi bem entendido – e bem recebido – entre seus pares da filosofia. Uma (falsa) disjuntiva era insistentemente colocada: seria Ortega um filósofo de fato ou “somente” um grande escritor, um excelente ensaísta literário? 

Para um de seus principais discípulos, Julián Marías, no pensamento de Ortega a estrutura dramática da linguagem, quer dizer, o estilo e a força narrativa presente em cada ato de comunicação – seja uma crítica, um ensaio, um livro ou uma simples conversação – resultava ser não apenas fator indispensável para sua eficácia retórica, mas também condição essencial para sua verdade. Para compreender, portanto, o caráter particularíssimo do pensamento orteguiano, e sua dupla condição de literato e filósofo, seria preciso levar em consideração que sua maneira de filosofar se dá justamente pela atenção radical à linguagem, através do uso inventivo – analógico e metafórico – das palavras. 

A partir de alguns escritos de Ortega y Gasset e de seu tão peculiar estilo autoral, é possível vislumbrar, ainda que ele não a tenha sistematizado, uma concepção bastante particular do papel da metáfora na linguagem e no conhecimento. A intensa utilização, em seus textos, de procedimentos metafóricos não reflete somente uma preocupação de ordem retórica ou estilística: em Ortega – assim como na tradição filosófica marginal à qual pertencem pensadores como Leonardo Bruni, Baltasar Gracián, Juan Luis Vives, Lorenzo Valla ou Giambattista Vico –, a criação metafórica apresenta uma dimensão também cognitiva, de investigação da realidade, e, portanto, uma autêntica estatura filosófica. 

Tomando como exemplo uma expressão bastante comum – “fundo da alma” –, Ortega aclara sua concepção: “ao dizer da alma que tem fundo, referimo-nos primariamente ao fundo de um tonel ou coisa parecida, e logo, desvirtuando essa primeira significação, extirpando dela toda alusão ao espaço corporal, atribuímos à psique. Para que haja metáfora, é preciso que levemos em conta essa duplicidade”. O pensador apresenta a metáfora como uma espécie de artifício intelectual que permite que consigamos captar um aspecto da realidade que extrapola os limites de nosso acervo linguístico-conceitual prévio: “Com o mais próximo, e o que melhor dominamos, podemos alcançar contato mental com o remoto e mais arisco. É a metáfora um suplemento a nosso braço intelectivo, e representa, em lógica, a vara de pescar ou o fuzil”. No entanto, não foi tarefa trivial para o autor de España invertebrada – e este título já é exemplar para o que tratamos aqui – enfrentar toda uma concepção hegemônica de filosofia que partia de premissas radicalmente distintas.   

O veto racionalista

A perspectiva da tradição racionalista e idealista levou a uma concepção de critério filosófico-científico como rigor formal: o valor de verdade das proposições é garantido pela adequação lógica em relação com as premissas estabelecidas: essas proposições, para serem verdadeiras,  além do critério de adequação do dito ao real, devem obedecer a uma dedução lógico-racional, e nenhuma forma de linguagem comum, cotidiana, pragmática ou artística, que se valha de imagens, analogias e metáforas, pode ter pretensões de conhecimento autêntico. A característica comum a todas essas formas de racionalismo é a ambição de, em algum momento, chegar à palavra definitiva: substituir a opinião pelo conhecimento e acabar com o que poderia parecer uma conversação interminável sobre os mesmos temas – embora seja, ironicamente, exatamente o que até hoje foi a filosofia.

Ultrapassar o uso cotidiano e pragmático das palavras e chegar a uma espécie de idioma transcendental (ou uma linguagem ideal, como diriam os positivistas lógicos do século passado), que apresentasse a verdadeira natureza das coisas, da realidade, independentemente de pontos de vista individuais (subjetivos) e dos vocabulários peculiares de cada época, era a máxima pretensão filosófica. As famosas críticas de Platão – representante maior da tradição racionalista ocidental – aos poetas e, também, aos retóricos sofistas fundamentavam-se justamente nesse projeto de atingir uma forma de conhecimento superior, universal e não-contingente. Para chegar a esse grau de conhecimento (episteme) de uma totalidade perfeitamente inteligível e coerentemente organizada, era necessário abandonar a esfera do meramente sensível e transitório: “O filósofo desdenha as aparências porque sabe que são perecíveis”, escreveu María Zambrano.

Mesmo a tradição racionalista moderna, de base cartesiana, parte da premissa de que as deduções lógicas e a linguagem estritamente racional, em que nenhuma ambiguidade pode ter lugar, são as únicas que podem reclamar validade científica e categoria de autêntico conhecimento. O veto à linguagem figurativa e analógica se fundamenta na consideração de que a metáfora não tem conexão necessária com o real, visto que é somente transferência de significados entre palavras, e não funcionaria como linguagem explicativa dos processos da realidade. No entanto, para certa linhagem da tradição humanista (de cunho antiplatônico), o processo poético-retórico da metáfora e das analogias é um modo de conhecimento válido e útil, mas que possui uma natureza distinta do conhecimento lógico-formal. Segundo Ernesto Grassi, pensador italiano cujo conjunto da obra é justamente uma tentativa de reabilitar filosoficamente essa vertente marginal do humanismo, “O mundo humano não surge a partir de teorias filosóficas que se derivam racionalmente de primeiros princípios, mas a partir do acto ingenioso”, do poder criativo e cognitivo da linguagem metafórica.

O limite intransponível da linguagem racional – supostamente a única rigorosamente filosófica e científica – é o de que ela não pode fundamentar a si mesma: esse é um artifício possibilitado pela linguagem figurativa e metafórica, que lhe é precedente. Miguel de Unamuno costumava ironizar os filósofos que “ingenuamente” negavam o uso filosófico da metáfora. Para o autor de Niebla, tais pensadores simplesmente não se davam conta de que “aqueles que se creem mais livres dela, andam entre suas malhas enredados”. É impossível, pois, escapar: as palavras nascem como metáforas.

A força estética e cognitiva da metáfora

No que diz respeito especificamente a Ortega y Gasset, não é difícil encontrar referências à metáfora em ensaios sobre temas tão diversos como história, ciências, política, arte ou epistemologia. Em todos eles, o procedimento metafórico é tratado desde os pontos de vista da Estética e da Teoria do Conhecimento. À dimensão estética da metáfora, Ortega acrescentava a capacidade cognoscitiva, a aptidão criativa de nos levar a conhecer aspectos “difíceis” da realidade: “Quando um escritor censura o uso de metáforas em filosofia revela simplesmente seu desconhecimento do que é filosofia e do que é metáfora”. O importante, segundo o filósofo, é que fique claro que essa figura de linguagem tem um papel na poética, e outro, distinto, na ciência.

Diferentemente das definições usuais da figura retórica da metáfora como simples comparação e transferência de sentido entre dois termos, Ortega a compreende como método de criação de objetos novos: “Em toda metáfora há uma semelhança real entre seus elementos, e por isso se tem acreditado que a metáfora consiste essencialmente em uma assimilação, […] em uma aproximação assimilatória de coisas muito distintas”. Contudo, para ele, tal entendimento é equivocado porque as semelhanças parciais entre duas coisas não são o importante para a força estética e cognitiva da metáfora. A semelhança positiva é o que sugere a metáfora, o que a possibilita, mas não a define ou a constitui em essência. O mecanismo metafórico funciona como uma ferramenta de irrealização: parte-se de uma semelhança parcial entre duas coisas e conclui-se por transformá-las em uma coisa nova, de qualidade e natureza diferentes das anteriores. A qualidade de beleza fundamental – a “célula bela”, dirá ele – que o filósofo atribui à metáfora vem do mesmo processo sutil e engenhoso de sua construção: a metáfora confronta e testa, em cada circunstância concreta, os limites da linguagem humana. O já mencionado exemplo da “alma-tonel” pode servir aqui para elucidar o procedimento: através da expressão metafórica passamos a perceber como organizável espacialmente algo que, a princípio, não o é; isso abre espaço para uma série de “investigações”, inaugurando para nós mesmos a possibilidade de entender a alma – ou recriá-la sob nova clareza, o que talvez equivalha a entendê-la – como tendo um lado esquerdo e um direito, uma entrada e um fundo, conter coisas até o limite como um recipiente que de repente se pode romper ou esvaziar-se… A metáfora, como meio de intelecção, permite um reordenamento das experiências.

Em consonância com uma concepção basilar da tradição intelectual humanista, no pensamento do autor das Meditaciones del Quijote, a arte transcende o puro esteticismo e pode ser entendida como uma forma autêntica e muito particular de acesso ao real.

Referências

GRASSI, E. (1993). La filosofía del humanismo: preeminencia de la palabra. Barcelona: Anthropos.

MARTÍN, F. J. (1999). La tradición velada: Ortega y el pensamiento humanista. Madrid: Biblioteca Nueva.

ORTEGA Y GASSET, J. (2004). “Ensayo de Estética a Manera de Prólogo” en Obras Completas (OC), Tomo I, pp. 664-680. Tauros, Madrid.

______________. (2004). “Las dos grandes metáforas” en Obras Completas (OC), Tomo II, pp. 505-517. Tauros, Madrid.

UNAMUNO, M. (1917). Ensayos. TOMO V (Vol. V). Madrid: Publicaciones de la Residencia de los Estudiantes.

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