por Marcio Luiz Miotto
Abro o WhatsApp e recebo mais uma corrente. Como tantas outras, essa também tem um daqueles personagens “indignados” de certa idade que, de tanto incorporar outros memes, resolve também fazer o seu. Ele emite a mensagem de que as eleições precisam ser vencidas já no primeiro turno. Diz: “nós” precisamos “vencê-los” agora, pois o candidato “deles” começa a abrir margem e então há o risco de que “eles” vençam.
Questão de pouca importância? Sim, caso isso tudo não ensinasse sobre como a falta de informação e a proliferação de fake news se alastram como pólvora acesa. Aspecto que pode afetar resultados eleitorais.
O vociferador do Whats App enxerga uma divisão radical, absoluta, no país. Segundo ele, de um lado há o capitalismo (e a aliança com os EUA), os empresários, o livre comércio, o mérito individual (oposto às cotas raciais) e a iniciativa privada, unidas a um governo militar e a escolas “com disciplina” e “sem partido”. Tais quesitos envolvem valores como a proibição radical das drogas e do aborto, com penas severíssimas a crimes como o assassinato; a castração química de estupradores, o armamento policial e o extermínio de bandidos. Para amparar tudo isso, “teríamos” o cristianismo e a “família tradicional”.
Do “outro lado” ele lista os antípodas: o “socialismo” e o alinhamento do Brasil com países como Cuba, a Venezuela e a Coréia do Norte; a inexistência de bancos ou comércio, a “assistência” irrestrita do Estado (definida como desobrigação de trabalhar), a distribuição de “bolsas” a toda sorte de “vagabundos”, a doutrinação das escolas, a ausência de polícia, de exército ou de autoridade, os traficantes soltos nas ruas, as drogas liberadas, o aborto à vontade, a dissolução da divisão entre os sexos, a “pedofilia livre” e a possibilidade de cometer qualquer crime, pois não haveria mais nem cadeia.
O modo pelo qual esse meme (e tantos outros) agrupa os candidatos nesses “lados” é curioso. Para ele, não há maiores diferenças de propostas, “ideologias” ou trajetórias nos candidatos definidos como “nós” ou “eles”. Já está tudo definido. Não há nuances. É como se os ensinamentos da economia, da sociologia e a política do século XX inteiro de repente se apagassem em nome da decisão nua e crua: somos “nós” ou “eles”. Se você não acredita em “nós”, adivinhe de que lado está.
Há nisso algumas operações psicológicas mais do que dignas de atenção, não propriamente pela novidade. Mas alguém poderia dizer que são dignas de atenção “enquanto há tempo”. Pois, não havendo nuances e nem complexidade do mundo e dos jogos políticos – enfim, não havendo mais política–, o que sobra? É preciso ver que sobram, sim, algumas coisas.
Ausência de crítica
Em primeiro lugar, sobra uma total ausência de crítica, ou de auto-crítica, sobre as ditas nuances do mundo e dos jogos políticos. Para dar apenas um exemplo recente: relatos como o de Miriam Leitão (jornalista da Globo), sobre a tortura que sofreu do exército durante o regime militar, não parecem evocar alguma contradição à gente que acabou de ajuntar os termos “liberalismo” e “governo militar” como solução para o Brasil em seus memes. Isso porque as auto-justificativas (auto-enganos?) chegam mais rápido do que a razão. Substitui-se o julgamento por frases-gatilho, de compreensão automática, tais como “ela mereceu a tortura porque era comunista”, “se estava lá é porque algo fez” etc..
O “encanto” dessas chaves de leitura é precisamente o de não precisarem dar a pensar. Nada precisa então ser dito sobre a tortura, ou a legitimidade de um governo torturador diante de seu povo e do resto do mundo. Nada, ainda, sobre a diferença entre um estado legítimo e um estado de exceção. Nada sobre os ideais que definiram os países modernos, esses que nasceram ao menos desde o projeto de independência dos EUA ou da Revolução Francesa. Nada, enfim, sobre o quanto as mesmas crenças que alinham “governo militar” e “liberalismo” são contraditórias: os países democráticos avançados possuem exércitos, mas eles não interferem na vida pública normal e na liberdade individual (há exemplos recentes bastante contundentes); regimes como os da Coréia do Sul e os de Cuba também patrocinaram intervenções militares contra as liberdades civis; potências capitalistas patrocinaram ou apoiaram regimes ditatoriais, do Irã à América Latina. Nuances, contradições, leitura de contexto? Nada disso importa: “somos” apenas “nós” e “eles”.
O mesmo em relação à eventual caricatura do “outro lado”: governos como o de Lula são pintados como “socialistas”, pura e simplesmente. Mas e quanto aos lucros exorbitantes dos bancos? A proliferação, consolidação e capitalização do ensino privado? As privatizações? Os conluios diversos com a velha política brasileira, anteriormente tão criticada pelo PT, mas que guinou para o eixo PMDB-PSDB e agora sinalizou apoio à extrema-direita? Enfim, o que dizer das nuances que valeram inclusive acusações contra o PT vindas da própria esquerda, com dissidências que resultaram na debandada de políticos para outros partidos, ou mesmo a criação de outros partidos? Mesmo quem passa a ser visto por “eles” é bastante contraditório.
Mas nada disso importa. Se houve contradição em quaisquer de minhas avaliações, basta então inventar um critério ainda mais amplo para generalizar. São os argumentos do tipo “em algum sentido”: “eles” são “em algum sentido” pró-Estado (e aí qualquer economia que esbarrou na palavra Estado vira “socialista”), ou “em algum sentido” corruptos (direta ou indiretamente), ou “em algum sentido” anti-cristãos (a defesa da descriminalização do aborto de alguns setores transformando-se numa espécie de cultura “abortista” e no apoio indiscriminado a ele). Sob tais justificativas, as frases-gatilho do gênero “em algum sentido” tem poder mágico. Do “lado de lá”, elas permitem fazer exatamente o inverso: o “meu” candidato é corrupto, aceitou propina, participou de partidos do mensalão? O seu “foi mais”. O “meu” apóia valores anti-cristãos como a tortura ou o extermínio como medida de governo? O seu, “em algum sentido”, é mais…
Voltando ao “lado de cá”, há outros argumentos-gatilho para deixar no bolso. O candidato da extrema direita já foi fã de Hugo Chavez (comparando-o a Castelo Branco) e, em meio às circunstâncias, adulou “companheiros” como José Genoíno e Aldo Rebelo? Ora, “as pessoas mudam de opinião”, “há quem evolua” etc. (o mesmo argumento fora empregado para justificar as mudanças na trajetória do próprio Lula, aliás). Junto com as frases-gatilho do tipo “em algum sentido”, vemos aqui que também há aquelas que reduzem os jogos políticos a simples decisões pessoais. Assim, o candidato “deles” pode ser acusado de “burro” por não ter escolaridade ou não saber falar, enquanto o “nosso” é facilmente justificável se não sabe de economia (pois é alguém “humilde” ou “sincero”) ou comete agressões verbais (pois é alguém “autêntico” ou “verdadeiro”, mesmo que isso fira o decoro republicano ou resulte com frequência em processos).
Os exemplos são numerosamente multiplicáveis para ambos os “lados”, embora as auto-justificações possam sempre caber à mão conforme o caso. Assim, as sensibilidades diante dos acontecimentos também podem se distribuir perigosamente em cada lado. Ou senão, lembremos de como pessoas e candidatos lidaram recentemente com acontecimentos tais como: o assassinato de Marielle Franco, os tiros contra a caravana de Lula ou a facada contra o candidato do PSL; o tiro de bala de borracha contra o candidato a deputado estadual paranaense Renato Almeida Freitas (PT); as acusações de Palocci contra Lula e as da ex-esposa contra o candidato do PSL; as falas do General Mourão sobre o brasileiro ser “indolente” como o índio, “malandro” como o negro e “gostar de privilégio” como o português, ou ainda o 13º salário ser uma “jabuticaba”; as falas de ambos os “lados” sobre alterar a constituição, e assim por diante. Sob a mesma violência (de fato ou das palavras), o perdão e a condenação são bem diversos e afastam a razão, dependendo do “lado” em que você “está”.
Acabar com o contraditório
Como se vê, a ausência de crítica requer um segundo ponto: o fim de tudo o que represente o contraditório. De repente não há mais contradições, mas oposições puras e simples, apenas vitória ou derrota. O comportamento político toma as figuras do futebol, embora hoje se aproxime mais da guerra, do “exterminar” ou “metralhar” o adversário. Só há Palmeiras ou São Paulo, Flamengo ou Fluminense. E igual ao futebol, há uma série de outras auto-justificativas, frases-gatilho para usar como instrumento político. Se todos os subterfúgios derem errado e eu for flagrado na “derrota”, é simples: há várias formas retóricas de não aceitar.
Por exemplo, é sempre possível reverter a situação com uma contra-acusação: “estou errado? Mas e você que…” É outra rápida fabulosa frase-gatilho (imensamente utilizada por certos candidatos), pois faz com que o desvio da atenção rumo ao outro oculte a minha recusa de precisar pensar sobre a contradição.
Ou ainda, pode-se vencer o outro pelo cansaço. Basta recusar-se a ouvir (ou ler), e então repetir mais uma vez tudo o que já se havia falado – velho argumento das retóricas de pregação religiosa, mas dessa vez aplicado à política. Não deu certo? Há sempre outras opções: é possível apelar ao “preserve meu lugar de fala” ou ao “eu tenho minha opinião e você tem a sua”, artifício de “respeito inibidor” para qualquer debate. Mas se nada der certo mesmo, no fim é sempre possível anular qualquer assunto político com alguma dose de desprezo, ironia, chacota ou simples silêncio.
O que todas essas opções representam? O simples apagamento do interlocutor. Trato os rumos da política como leio o Facebook ou o WhatsApp, esquecendo que o modo de tratar a informação digital ou as relações políticas com o outro são coisas bem distintas. Ajo de forma que, se a barra de rolagem não levar o lixo embora, fecho a janela ou aperto o botão delete.
Adversários e inimigos
Em terceiro lugar, resta que a noção de adversário político seja substituída pela de inimigo. Isso denota o fim da política, mesmo que sob as aparências de uma política. Quando um adversário político sofre algum tipo de violência, é fácil reconhecer o limite entre a democracia e a falsa democracia que anuncia a guerra: basta ver se o adversário demonstrou preocupação e apoio, ou então ironia, omissão ou desprezo. As palavras e os gestos falam por si próprios. Mas claro, é sempre possível passar por cima disso com alguma das auto-justificações acima.
Há pouco, o historiador americano Timothy Snyder disse que apenas a realização de eleições não supõe que seus eleitores sejam democratas. Snyder alude a outros casos históricos, mas alerta sobre a onda anti-democrática corroendo por dentro a democracia do Brasil (não é o único). Pois abundam, aqui, declarações sobre retirar dos representantes do povo as decisões sobre o país (inclusive sobre a Constituição), colocando-as ao cargo de “notáveis”, tais como militares e outras figuras sem critério claro, ou ainda aumentar o número dos ministros do STF, colocando ali diversos “isentos” (do “outro lado” houve também bastante alarde sobre uma nova constituinte) . Mas ora, as auto-justificações acima são rápidas e já existem várias respostas-gatilho. Por exemplo: “é claro! Retire-se as decisões do povo, pois do jeito como está, não dá mais pra ficar”. Com esses gatilhos, não precisamos nem pensar que fomos nós mesmos os que escolheram todos os corruptos anteriores. Ou que esse sistema político de bastidores e corrupção com propinas já existia e foi preparado bem antes da Constituição de 1988 (exemplos trágicos não param de aparecer). As soluções são simples, grosseiras, desobrigam que eu ou meu candidato falemos sobre nuances. Afinal, ninguém mais precisa se explicar (até planos de governo são formatados como apresentação de slides).
O fim das análises
Em quarto lugar, a impossibilidade da nuance, a negação do debate e a redução do adversário ao inimigo tornam inúteis, ou desnecessários, os textos de análise. Conforme já consagrado na gíria de internet, texto é “textão”. Inclusive, análise cheira a falta de ação. Prova disso são os inúmeros memes que apresentam intelectuais, especialistas e pesquisadores como nerds desligados da realidade ou sem qualquer vivência prática, o que demonstra igualmente nossa absoluta falta de sensibilidade para com questões como a pesquisa pura e a produção científica. Não à toa as universidades públicas e a pesquisa agonizam (mesmo que eventuais incêndios às vezes deem algo a lembrar). Questões históricas? Há pouco, gente influente disse que os livros que não digam “a verdade” sobre a história precisam ser descartados.
Uma vez que não valem mais análises e argumentos na dita democracia, o combate de fato se trava nos slogans e nos memes, no vídeo “lacrador” e na conclusão impactante. O convencimento é afetivo, muito mais do que racional. Vem daí o encanto do meme. Ele arranca de qualquer um com algumas crenças pré-arranjadas um “é verdade!” (mesmo que, sob análise, não seja bem assim). Ou ainda, a repetição infinita dos memes também é capaz de criar predisposições, sem que o tema propagado precise de qualquer compromisso com a verdade.
A simples presença e repetição do meme político age como um estímulo controlador (parte importante de uma eleição seria definida por técnicas de “controle de estímulos”, poderiam dizer os psicólogos behavioristas): ele está ali, persiste e não deixa o slogan lacrador cair no vazio, mesmo que não implique maior atenção do internauta. Mas sua presença, repetição e propagação não passam sem deixar marcas. Inclusive porque, mais do que o horário eleitoral, muito dessas eleições se definirá pelas redes sociais. Elas já nos deram a Primavera Árabe, mas agora dão Trump e tantos outros acontecimentos, visados inclusive por aqui. Notícias que pareceriam banais, como as sobre controle do WhatsApp, tornam-se decisivas.
A projeção em imagens
Em quinto lugar, o “outro” pintado pelas atitudes acima e pelo meme político não passa de uma imagem abstrata, ideal, embora aplicada como se regulasse a existência dos casos concretos. Por exemplo, já é mais do que provado que não existiu qualquer projeto de pregar sistematicamente uma espécie de “sexualização infantil precoce” ou “ideologia de gênero” nas escolas (pauta forjada com muita desinformação sobre campanhas contra violência ou discriminação sexual, misturada com paranóia pura e simples, inclusive reprovada pelo TSE). Ou ainda, é fato que muitos regimes “socialistas” do século XX perseguiram homossexuais. Mas imagens que identificam “socialistas” com “ditadura gay” e “pedófilos do MEC”, nos últimos anos, começaram a pairar no ar, como numa espécie de “mundo das ideias”. E elas têm uma função bastante precisa: permitem identificar como “outro” qualquer um que se preste a discordar de quaisquer das “minhas” ideias. Note-se que o que define o “outro”, aí, não é propriamente a adesão dele ao pacote das “outras” ideias (pois esse outro ideal não existe), mas a discordância dele com algum aspecto das “minhas” ideias.
Ou ainda: basta que o “outro” concorde com qualquer traço das “outras” ideias para ser enquadrado no ideário inteiro do inimigo. Falou em “social democracia” porque viu algo sobre as estatais norueguesas do petróleo? Ora, se falou de “estado”, então no fundo se é “socialista” como os chineses ou os norte-coreanos seriam. É “socialista”? Então é “pró-aborto”, “pró-cartilha do MEC”, “pró-bolsa-vagabundo” etc.. Afinal – lá vem outro gatilho –, “todos esses esquerdistas são assim” (artifício de generalização que, aliás, não é exclusividade de quaisquer dos “lados” – há sempre alguém do “outro lado” disposto a jogar um “seu conservadorzinho de…”).
Mas há algo ainda mais perigoso do que encaixar o outro em ficções: a capacidade de me reconhecer como adequado à imagem, e a partir disso julgar todos os outros como “adequados” ou “inadequados”. Se você não concorda comigo, então você concorda com os candidatos que pregam coisas como a sexualidade infantil e a pedofilia (mesmo que tais pautas sejam fictícias, fake news etc.) e, logo, é claro que você admite o inadmissível.
A projeção do outro com base em ideias permite reforçar o “meu” lado e o “meu” candidato, ou ao menos destruir o “seu”. Não porque a idéia existe ou porque minhas teses estão certas, mas porque, opondo-se a mim, as suas supostas idéias só podem estar erradas.
Figuras de Salvador da Pátria
Finalmente, se a projeção do outro sob ideias pode ser algo perigoso, resta o perigo dos perigos: a personificação da anti-política, do lado idealizado, sob a figura de um partido ou – pior – de um candidato. Já é velho o tema de que o brasileiro oscila entre a anarquia e a figura de um “salvador da pátria”. Nos anos 1930, gente como Sérgio Buarque já dizia que o brasileiro oscila entre uma sociedade de “fidalgos” (a política feita por meio de conluios particulares e temporários entre pretensos “notáveis”, de vínculo personalista ou “cordial”), e a figura de um poder central messiânico, igualmente personalista – uma Ditadura ou o Santo Ofício –, um grande Pai que poderia arrebatar a fidalguia e enfim governar sob mão forte, “colocar as coisas em ordem”, “corrigir o que não dá mais”.
Um pouco dessa projeção das esperanças do brasileiro num “homem-ideia” se entrevia nos anos 2000, quando alguns – inclusive na academia – começaram a falar de “lulismo” e erigir Lula como uma espécie de ideal. De um lado – diziam – havia o “lulismo”, personificando a força do pobre e a potência de transformação e criatividade do brasileiro; de outro, concorriam os velhos poderes das velhas políticas brasileiras, oligárquicas, de curral. Pouco se prestou atenção – ao menos a princípio – sobre as manobras do PT para manter-se no poder, trazendo para perto de si políticos de ocasião e eventualmente partidos de “baixo clero”. Permaneceu em muito a ideia de um PT não corrompido e sem necessidade de auto-crítica (tal como Noam Chomsky acabou de recomendar). Nem as últimas eleições municipais pareceram servir de lição. Nesse jogo de ilusões puristas, recentemente o próprio Lula comentou: “não sou mais uma pessoa, mas uma ideia”.
Algo desse jogo de “ideais” diz bastante sobre a polarização das eleições 2018, cujos resultados serão definidos em grande parte entre quem é pró ou contra Lula (ou, o que não deveria ser exatamente o mesmo, o PT). Em torno de Lula, os últimos anos sedimentaram algumas hagiografias e muitas demonizações. Bem ou mal, falou-se diariamente dele. Mas talvez seria melhor colocar assim: cada vez mais se falou dele bem ou mal, de forma cada vez mais concentrada e com menor margem para nuances, impondo posicionamentos que apenas poderiam ser pró ou contra.
A situação avançou a tal ponto que a pauta anti-petista, reiterada diariamente e associada ao combate contra a corrupção, passou a conviver com uma contra-pauta que denunciava desmedidas contra o PT, atribuídas como “seletivas” (por não enquadrarem outros partidos pertencentes aos mesmos esquemas) ou “rigorosas demais” (por não enquadrarem com a mesma intensidade outros políticos). Tais embates tiveram efeitos. Por exemplo, foram flagrantes as manobras de Michel Temer para manter-se no poder, mesmo sob acusações ainda mais pesadas do que as feitas contra Dilma, sem que isso criasse no brasileiro a mesma revolta que há pouco o mobilizava “contra a corrupção”. Ou ainda, outros jornalistas aguerridamente anti-petistas, como Reinaldo Azevedo (popularizador do qualificativo “petralhas”), mudaram de tom. E não por acaso, recentemente Tasso Jereissatti fez um mea-culpa do PSDB, no qual declara que o partido foi capaz de pisar em princípios para reforçar a pauta anti-petista. Tais coisas deixam marcas.
Do lado do PT, além da contra-reação às atribuídas desmedidas, criou-se um clima de paranóia e alarmismo, contra “ameaças” que poderiam vir de todo lugar. Esse tipo de estratégia (que inclusive desgastou termos como “fascismo”) já ocorria há tempos. Pode-se dizer que o alarmismo do PT – e de certa esquerda que não se identifica com o partido, mas “orbita” em algumas pautas coincidentes – deu cada vez maior visibilidade a figuras pequenas e do baixo clero da política, não porque essas figuras tivessem relevância, mas porque o PT julgava reforçar sua importância e “purismo” fazendo-se de vítima contra supostos alheios.
“Se o PT é contra, então sou a favor!”, eis a reação natural. Afinal, “ser contra o PT” identificou-se com “ser contra a corrupção”, não importando se os novos adversários tenham sido corruptos, figuras de atuação pífia ou de baixo clero, ou ainda prestado serviços à ditadura militar. Se a ocasião faz o ladrão, políticos irrelevantes (até ex-aliados) tornaram-se de repente “ameaças” e – passo seguinte – “grandes” figuras públicas. As idas e vindas do (anti-)petismo criaram um circo de horrores. Apelando por auto-defesa, o PT e certa esquerda orbitante promoveram gratuitamente a visibilidade de muita gente, enquanto deixavam de repensar sobre as próprias posturas.
Mas isso não ocorreu apenas com políticos. Também surgiram pautas que se consolidaram como se fossem inerentemente ligadas a um dos “lados”. Por exemplo, houve quem notasse a “ascensão meteórica” de movimentos liberais, conservadores, anti-comunistas etc., como se de repente gente com apelos muito diferentes se julgassem reunidos numa espécie de “desejo de justiça”.
Com as pautas ditas micropolíticas (gênero, aborto, raça etc.), ocorreu o mesmo. Temas com diferentes históricos e lutas, como discriminação LGBT e “socialismo”, passaram a ser agrupados por muita gente como se tivessem as mesmas chaves de leitura. Assim, conforme mencionado, no imaginário de muitos brasileiros tornou-se fácil “acusar” alguém de ser “esquerdista, petista, ‘socialista pró-estado’, pró-Cuba e pró-LGBT”, no mesmo movimento em que países como Cuba historicamente condenaram práticas LGBT, pautas liberais também apóiam movimentos LGBT, boa parte da esquerda discorda do PT e existem economias de bem-estar social bastante avançadas. Houve quem identificasse qualquer valoração ao Estado como algo de “esquerda”, chegando-se ao recente vexame de brasileiros ensinando os alemães que o “nazismo é de esquerda”!
As posições se sedimentaram. Sob a agenda (anti-) lulista, também parece óbvio que restaria uma vaga – lugar de pura reatividade – para quem personalizasse o papel de opositor. O candidato do PSL é quem mais capitalizou essas sedimentações do anti-petismo (reforçadas ainda pelo alarmismo petista). Expressões macarrônicas, do tipo “Lula x Joaquim Barbosa” e “Lula x Moro”, de repente parearam Lula e o representante da extrema direita. A ponto das figuras se inverterem e hoje as pessoas falarem “ele sim” ou “ele não”.
Dessa vez, surpreende que a imagem do Antípoda (ou do Salvador) tenha vindo dos porões da política brasileira, reunindo perfis como o do baixo clero e as memórias da ditadura. Partidos como o PRTB, do general Mourão, há pouco não passavam de players irrelevantes da baixa política. O líder Levy Fidelix era apenas lembrado pelas falas da eleição anterior sobre o “aerotrem” e o “órgão excretor”. Quanto ao PSL do candidato da extrema-direita (que ali chegou depois de transitar em partidos classicamente corruptos e de baixo clero, costurando posteriormente alianças com figuras que vão do “príncipe” Philippe de Orleans e Bragança a Magno Malta e Valdemar Costa Neto), é o partido mais fiel aos interesses de Michel Temer. Antes da candidatura, o atual líder na corrida eleitoral buscava um partido que se submetesse “por inteiro” a seus desígnios, sem margem para oposição. Em sua chegada no PSL, houve uma debandada do movimento mais liberal, que pretendia efetivamente liberalizar e “reformar” o partido.
Disso, a candidatura da extrema-direita tem se retroalimentado com todas as frases-gatilho e posturas enumeradas acima. É, por assim dizer, uma grande usina de reatividade. Muitos chamam a candidatura de “massa de bolo”: quanto mais bate, mais cresce. Que a massa pôde crescer, isso é evidente. Mas cresce pela massa ou pelas batidas? Enquanto se olha para as batidas, pouco se confere sobre a qualidade da massa, do que ela é feita.
A massa é feita de alguém que afirmou que não reconhecerá o resultado das eleições caso não vença. Alguém que prega a eventualidade de umanova constituição sem a participação popular ou múltipla representação, arrematando que um colegiado de “notáveis” seria capaz dela. Sem contar a redução de parlamentares, o voto restrito à bancada e a ampliação no número de ministros do STF para 21, para escolher os que chama de “mais isentos”. É alguém que já sinalizou que ameaças poderão ser respondidas com autogolpe. Que ou aceitará o velhocentrão como base de apoio (e já tem nas mãos a velha política das bancadas do Boi, da Bíblia e da Bala), ou recorrerá a um governo de militares – lembrando que, segundo o historiador Pedro Henrique Campos, o regime militar estabeleceu as bases da economia de propinas atual, e cujos crimes até hoje não foram apurados. Alguém que deliberadamente (ou ocultadamente) investe no corte de direitos adquiridos e numa agenda ultraliberal. Em suma, é alguém que, diante do sistema já existente, trocará seis por meia dúzia.
É alguém cujos critérios econômicos não são claros e diversos especialistas chamam a atenção a contradições e lacunas, inclusive desconhecimento do próprio plano de governo. Alguém que prega escolas militares devido ao critério solto da “disciplina” (esquecendo-se de inúmeras questões importantes, especialmente a da pedagogia, trocada por um solto “é preciso respeitar o professor”), mas não menciona o amplo sucesso das escolas federais já existentes nos rankings de educação. Alguém cujas falas contra diversos temas da democracia constituída não são apenas equívocos pontuais, mas cujos pontos, pelo tom e frequência, permitem traçar várias curvas.
Mas lembremos que o presente texto não é sobre falas de candidatos que perigosamente se identificam com as questões e “lados” enumerados acima, nem sobre a falta de reexame de certos partidos. Conforme visto, trata-se de chamar a atenção à atitude psicológica do cidadão, essa sim, capaz de criar as condições para o fim da democracia e até o fascismo. Aspectos como o fim da crítica, a negação das contradições e nuances, a acusação de um inimigo interno ou externo recusado como interlocutor, as projeções fictícias baseadas em confusões e falsa propaganda misturada com algumas questões reais, a divisão sem conciliação entre “nós” e “eles” e, enfim, a projeção num messias redentor, nada disso é novidade.
A História é boa conselheira (embora ande em desuso) para não recairmos em excessos ou rupturas. Por exemplo, vale lembrar, em pleno fim da II Guerra, a filósofa Hannah Arendt chamando a atenção sobre não ser a notícia mentirosa a característica principal da propaganda de ódio (ou daquelas sociedades que, em sua época, abriram as portas ao fascismo), mas o jogo que ela pode estabelecer entre a realidade e a verdade. Em certo sentido, a “mentira” é a alma de qualquer propaganda. Mas, misturando fatos enviesados com algumas mentiras inconfessas ou desatentas, seria possível fazer passar como efetiva, “verdadeira”, uma pauta política sem qualquer consistência, inclusive uma pauta antipolítica. Uma vez que se conquiste a sedimentação da pauta, o próximo passo é então fazer com que ela conviva com as outras discussões como se tivesse o mesmo peso, como se todas tivessem a mesma validade política e racional. Mas a nova pauta é a do “nós” contra “eles”. Uma vez conquistada a posição, para Arendt torna-se difícil qualquer crítica, pois afinal, contestar ou afirmar a posição de quem colocou pautas de ódio já implica que ele subiu ao palanque da discussão pública e o ódio já se apresente como opção válida junto às outras. Tornamo-nos então capazes de “escolher” entre pautas democráticas ou antidemocráticas, como se isso configurasse escolha e como se a pauta antidemocrática não colocasse a impossibilidade de escolher:
“É por isso que qualquer argumentação contra os fascistas – a chamada contrapropaganda – é uma absoluta insensatez: é como discutir com um assassino em potencial se a futura vítima estará viva ou morta, esquecendo por completo que o homem é capaz de matar e que o assassino, ao matar a pessoa em questão, prontamente fornecerá a prova de que a asserção está correta”
Na mesma época e sob os mesmos desafios – recompor a Europa após a formação e derrota do fascismo –, outro filósofo – Albert Camus – colocava as mesmas perguntas (Défense de l’Intelligence): como lidar com o ódio quando ele se tornou inerente ao espaço público? Ora, as “marcas mais vergonhosas do ódio” só podem ser aquelas que são deixadas “no coração”. Então “a mais difícil vitória a fazer sobre o inimigo deve ocorrer em nós mesmos”: “não ceder ao ódio, nada conceder à violência, não admitir que nossas paixões tornem-se cegas, eis o que podemos fazer ainda pela amizade”. É preciso fazer com que “jamais a crítica se mescle ao insulto” – ceder à tentação é dar a chance para que quem prega o ódio seja visto como sério, neutro ou desinteressado.
Como, então, lidar com o ódio? “Isso significa – dizia Camus – que devemos preservar a inteligência”. Ao dizer isso ele tinha em mente uma fala de Hermann Goering: “quando me falam de inteligência, eu tiro meu revólver”. Contra a política feita pela ruptura com o “outro” (com todas as consequências afins), talvez a inteligência ainda sirva como recurso, ao menos para quebrar o ódio ou para deixar bem claro sobre quem odeia. Trata-se de recuperar o espaço possível para a “compreensão”, restituir as nuances, os contextos e os argumentos, quebrar as idealizações, os purismos e as rupturas “nós-eles” (em suma: restituir o outro como interlocutor e desarmar os recursos emocionais e recusas que fogem à postura democrática). Arendt alertava sobre a dificuldade de discordar de quem odeia, quando o ódio chegou à praça pública e toda palavra, ao colocar-se contra a violência antevista pelo ódio, torna-se clichê. Camus sugeria que, se ainda existe praça, o não-ódio – a inteligência – é um recurso possível.
Se tais palavras do passado nos servem de advertência ou não, empresas importantes como a Cambridge Analytica estão aí para o dizer:
“Pessoas processam informação através da esperança e do medo, muitas vezes inconscientemente. Nosso trabalho é ir fundo para descobrir quais são estes medos atávicos. Não adianta disputar uma eleição com fatos, mas sim com emoções. E tudo precisa acontecer sem parecer que seja propaganda. No momento em que as pessoas acham que é propaganda, vão perguntar quem produziu. Precisamos ser sutis. Botamos informação na corrente sanguínea da internet e a vemos crescer”.
Marcio Luiz Miotto é professor do Departamento de Psicologia do Instituto de Humanidades e Saúde da Universidade Federal Fluminense.
(Com agradecimentos a Ricardo Cabral)