A impressão que se tem ao ler Parerga e Paralipomena, o último livro e o mais popular do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788–1860), publicado em 1851, é a de que ele fala para o século 21. Trata-se de uma miscelânea de ensaios que, segundo o filósofo, não conseguiram ser inseridos em nenhum de seus livros anteriores.
Em um deles, “Sobre como lidar consigo mesmo”, em tradução de Vilmar Schneider, Schopenhauer afirma, por exemplo, que “Toda limitação torna a pessoa feliz. Quanto mais estreito for o nosso campo de visão, ação e contato, tanto mais felizes seremos, quanto mais amplo, tanto mais frequentemente nos sentiremos aflitos e intimidados. Pois, nesse caso, multiplicam-se e ampliam-se as preocupações, os desejos e os temores”. Em tempos de informações rápidas, consumidas sem que se possa digeri-las ou questioná-las, a afirmação de Schopenhauer não poderia fazer mais sentido. Obviamente a “limitação” a que ele se refere nada tem a ver com falta de instrução, mas com falta de tempo para assimilar as mensagens e chegar às “próprias ideias como objetivo direto de seus estudos”.
A propósito, o filósofo acreditava que “nada é mais prejudicial ao pensamento próprio […] do que uma influência muito forte de pensamentos alheios” (essa e as tradução seguintes são de Pedro Süssenkind). Schopenhauer parece anunciar até mesmo o advento da Inteligência Artificial quando afirma que “com o conjunto das opiniões alheias que leu, ele [o leitor comum] constrói um todo, que se assemelha então a um autônomo constituído com a matéria alheia. A construção de quem pensa por si mesmo é, em contrapartida, como a criação de um ser humano vivo. Pois ela foi gerada à medida que o mundo exterior fecundava o espírito pensante, que depois procriou, dando à luz o pensamento”.
Parece um contrassenso escrever sobre a importância de ideias próprias me valendo de ideias alheias, contudo, elas estão aqui para demonstrar que essa discussão não é inédita nem começou no século 21 com o avanço das redes sociais. Schopenhauer já havia se debruçado sobre o assunto, mas analisou esse excesso de informação sem reflexão apenas numa classe letrada, mais especificamente na academia.
O que Schopenhauer disse há aproximadamente dois séculos, parece-me, está se concretizando agora. Aliás, quem constrói uma “opinião” a partir de pensamentos alheios são as plataformas de Inteligência Artificial. O usuário não se dá nem mais ao trabalho de ler o que lhe é oferecido. A resposta ou proposta é aceita imediatamente como fato consumado. É claro que, em 1851, os estudantes e estudiosos que tinham “em mira apenas a informação e não a instrução” precisavam se esforçar um pouco mais para chegar até ela. Hoje, os usuários, de todos os níveis, recebem todas as informações confortavelmente das inteligências artificiais, como resposta aceitável (e desejada) a todas as questões. Além disso, atualmente, a informação é ostensiva e massificada e, futuramente, ao que tudo indica, nem mesmo as decisões básicas serão tomadas sem a ajuda da máquina. O que não mudou ao longo desses anos foi o fato de, tanto naquela época como agora, não ser admitido por ninguém que a “informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco valor por si mesma”.
No que diz respeito à literatura, o cenário parece ter se mantido, visto que, de 1851 até os dias de hoje, nenhuma alteração muito substancial ocorreu na produção e na circulação de textos. Schopenhauer afirmava que “as revistas literárias deveriam ser o dique contra a crescente enxurrada de livros ruins e inúteis e contra o inescrupuloso desperdício de tinta de nosso tempo”. E prosseguiu: “elas deveriam fustigar sem pudor toda a obra malfeita de um intruso, toda a subliteratura por meio da qual uma cabeça vazia quer socorrer o bolso vazio”. Nos dias de hoje, nem todos os bolsos, seja do autor, seja do editor, estão tão vazios, alguns estão cheios (pois o mercado do livro cresceu) e pretendem continuar assim (lançam mão de estratégias seguras para atingir esse objetivo).
O filósofo destaca os grupos de escritores que se apoiariam mutuamente, “cada um dá muita atenção ao outro; é assim que surgem todas as resenhas elogiosas sobre livros ruins das quais são compostas as revistas literárias”. Não bastasse isso, “o público é tão simplório que prefere ler o novo a ler o que é bom”.
A relação entre revistas, livros e escritores não é tão simples assim, ela vai além das amizades, teria a ver também com o poder das editoras, dos autores e da influência que exercem nas mídias: “normalmente as resenhas são feitas no interesse dos editores e não no interesse do público”. Não causa surpresa, portanto, que, aos olhos do filósofo, tenham “diminuído as obras excelentes”, tratando-as a crítica “astuciosamente como se fossem insignificantes para desviar a atenção delas”. Outros fazem a seleção de obras que devem ser indicadas à leitura levando em consideração não a importância do livro, mas “as recomendações dos compadres, os coleguismos ou mesmo as propinas editoriais”.
Com muito humor Schopenhauer vai concluindo a sua análise sobre o panorama literário: “a grande maioria dos livros é ruim e não deveria ter sido escrita; consequentemente, o elogio deveria ser tão raro quanto é atualmente a crítica, sob a influência de considerações pessoais e da máxima: acedas socius, laudes lauderis ut absens [Entra, companheiro, e elogia para ser elogiado quando ausente]”.
Em “Acerca da Ética”, também em Parerga e Paralipomena, o pensador alemão discorre sobre o “mundo civilizado”, que não passaria de um grupo de pessoas mascaradas: “Ali encontramos cavaleiros, padres, soldados, doutores, sacerdotes, filósofos, e o que mais! Porém estes não são o que representam: são simples máscaras, sob as quais, via de regra, se situam especuladores financeiros (moneymakers)” (tradução de Wolfgang Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola). No século 21, a diferença é que ninguém precisa mais usar máscaras para cobrir sua verdadeira identidade de especulador financeiro, uma vez que eles estão em alta. Ao contrário, diria, muitos usam a máscara de especulador financeiro para esconder uma profissão e um estilo de vida não tão glamoroso! Vemos então indivíduos desqualificados e sem posição sólida proferindo discursos neoliberais como se fossem grandes moneymakers.
Em Schopenhauer como educador, Friedrich Nietzsche lembra que o filósofo alemão, assim como Goethe, conseguiu resistir a uma “sociedade presa ao habitual”, mas o efeito dessa resistência mostra-se “em muitos traços e rugas: sua respiração fica mais pesada e o tom de voz facilmente se torna demasiado veemente” (tradução de Clademir Luís Araldi). O isolamento acabou sendo um refúgio para Schopenhauer e não poderia ser diferente, pois, como complementa Nietzsche, “onde existiram poderosas sociedades, governos, religiões, opiniões públicas, em suma, onde houve alguma tirania, ali o filósofo solitário foi por ela odiado. Pois a filosofia oferece um asilo ao homem, para onde nenhuma tirania pode penetrar”. Em 2024, ninguém precisa ser um filósofo para ser odiado, pois a mais rasa reflexão ou alguns questionamentos são suficientes para acionar a política do cancelamento.
Depois de ler algumas das ideias mais incisivas de Schopenhauer, o leitor atento precisará de tempo para refletir, então, com a cabeça do século 21, avaliará por si mesmo o que é possível fazer com elas, a fim de assimilar criticamente o mundo atual.
Dirce Waltrick do Amarante é professora do Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, tradutora e escritora, autora de Interferências: Censura, apagamento e outros temas contemporâneos, no prelo pela Editora Iluminuras.