Aos que não conseguem dormir enquanto alguém estiver errado na internet

Na introdução de seu livro Philosophical Explanations (1981), infelizmente ainda sem tradução para o português, Robert Nozick fala em filosofia como uma atividade coercitiva.

por Andrea Faggion

Na introdução de seu livro Philosophical Explanations (1981), infelizmente ainda sem tradução para o português, Robert Nozick fala em filosofia como uma atividade coercitiva. Ele começa chamando a atenção para a terminologia que usamos aos nos referirmos a argumentos como sendo poderosos e derrubando a posição do adversário, que é então forçado a aceitar uma conclusão contra sua vontade. Naturalmente, trata-se de uma analogia e Nozick tem em vista o quão fraca é a punição disponível para o filósofo aplicar ao seu adversário: se o adversário não ceder, terá que arcar com o ônus de ser considerado irracional.

Naturalmente, o que Nozick diz sobre a intenção de forçar outros a acreditarem em certas coisas não se aplica apenas a filósofos ou a questões filosóficas. É da natureza de um debate qualquer que cada parte procure premissas que a outra parte não estaria disposta a abandonar, para mostrar a essa outra parte que ela não pode evitar a crença em uma dada conclusão, por mais indesejável que essa crença seja.

Note-se ainda que estamos falando aqui dos debates idealizados, onde a lógica, como conjunto de regras para a transferência da verdade de certas proposições para outras, seria uma ferramenta preponderantemente utilizada. Imagine então os debates reais, nos quais, via de regra, uma parte tenta vencer a outra pela pura agressividade verbal ou, simplesmente, pelo cansaço. O ponto de Nozick não é denunciar o jogo sujo dos debates reais, crivados de falácias, mas nos guiar a um questionamento de nossa própria necessidade de mudarmos a opinião do outro para a mesma que a nossa, por mais que o outro demonstre não ter vontade de fazer isso, e ainda que usemos apenas a lógica para fazermos isso.

O ambiente do debate poderia ainda ser improdutivo para a própria mudança nas crenças pessoais, pois ele nos inclinaria a vermos ideias novas perante às nossas como ideias adversárias, das quais deveríamos nos proteger, para não sermos derrotados. Não é raro, inclusive, que seja dito por debatedores que seu fim não é convencer o adversário, pois este último se fechará até o fim para ideias diferentes, ao ter que erguer suas defesas. O debate, para esses tipos especialmente belicosos, é então um meio para mudar as ideias daqueles que estão assistindo, passando-se ao público uma mensagem do tipo: “vejam como meu adversário é um perdedor por ter essas ideias, vocês deveriam querer ter ideias vitoriosas como as minhas”.

Mas será que é tão importante fazer de certas ideias as ideias vitoriosas? Por quê? Não seria mais interessante se pudéssemos simplesmente explorar diferentes modos de pensar, adotando aqueles que, no momento, nos parecessem mais próximos da verdade? Não seria mais profícuo para a aquisição de conhecimento se não despendêssemos tanta energia na tarefa de erguer muros ao redor de nossos sistemas de crenças, ao mesmo tempo em que tentamos penetrar as defesas adversárias? Como Nozick questiona, queremos ampliar nosso entendimento do mundo, ou produzir uniformidade de crenças, bancando a polícia do pensamento?

A esta altura, porém, uma outra questão, certamente, já apareceu na mente do leitor que me acompanhou até aqui. Como seria possível defender com argumentos que as pessoas se importem mais com o problema doméstico de suas próprias crenças, em vez de tentarem mudar o sistema de crenças de outras pessoas? Não se trata de uma posição auto-contraditória? Eu estou aqui, afinal, tentando convencer as pessoas de que elas não deveriam dar muita importância à tarefa de convencer outras pessoas de seus pontos de vista.

Na verdade, o que me parece é que uma posição como a de Nozick não despreza o uso da lógica e a construção de argumentos. Trata-se, apenas, de aceitar, em um nível ético, que estamos fazendo convites para certos modos de pensar, e não enviando intimações. Uma maneira de fazermos isso é privilegiarmos a livre concorrência das ideias, em vez da confrontação direta de pessoas com pontos de vista opostos aos nossos. Claro que duas pessoas podem cooperar em uma investigação, trocando seus pontos de vista diferentes acerca de um mesmo problema. Objeções e respostas são um material rico na própria história da filosofia. Mas poucas vezes esse nível é alcançado quando se fecham dois debatedores em um auditório lotado para que um tente vencer o outro com argumentos, ou mesmo nas tão comuns trocas de comentários em tempo quase real nas redes sociais.

Uma ética para quem está em busca da verdade, em vez de estar em busca da uniformidade de ideias, parece requerer, por exemplo, que se dê ao outro todo tempo e espaço de que ele precisa para preparar suas respostas, admitindo também que ele possa simplesmente não querer participar desse jogo. Querer falar em público, afinal, não é o mesmo que querer duelar com alguém em particular acerca daquela ideia divulgada. Assim, quer me parece que a melhor atitude por parte de uma pessoa que não esteja convencida de que seu modo de pensar é o único modo possível, e, portanto, deveria ser o modo de pensar de todos, é propor suas próprias reflexões, em seu próprio espaço, sem intimar outro a se defender do crime de ter pensando assim.

Claro que uma ética assim, colocada em prática, pode criar uma zona de conforto, onde as pessoas se sentirão mais à vontade para dizerem qualquer coisa em público, coisa que não acontece nas redes sociais atualmente. Mas isso não seria justamente o desejável? Em um ambiente virtual em que todos possam publicar seus pensamentos livremente, contra ou a favor do que quer que seja, as melhores ideias não tendem a ter alcance mais longo?

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